“Quem tem trigo d'Ascensão
Todo o ano terá pão.”
diz o ditado popular baseado em tradição antiga e cujo sentido ainda nos nossos dias é tido em conta, pois que muita gente, quer por devoção, quer por costume, quer pela confraternização resultante, se desloca aos campos à volta da cidade a fim de «colher a espiga» para a trazer para casa com fins protectores e apelativos de abundância.
Podemos ler uma pequena notícia no desaparecido jornal eborense Democracia do Sul de 27 de Maio de 1922, com o título «Dia da Espiga», referindo: «Respeitando a tradição, Évora despovoou-se na quinta-feira. A cidade ficou deserta.» Ainda nos dias de hoje há Serviços, e algum comércio eborense, que encerram as suas portas durante a parte da tarde a fim de permitir que os funcionários e empregados possam cumprir com a tradição. E ela não deixa de se cumprir embora cada ano que passa seja mais difícil encontrar-se espigas de cereal...
Quando terá sido instituído o «Dia da Espiga», coincidindo com o Dia da Ascensão do Calendário Litúrgico Cristão, ninguém o saberá dizer. Constata-se tão somente a solenidade da Festa, simultaneamente pagã e litúrgica.
Pagã no sentido etimológico das palavras latinas pagus/paganus, isto é, referente a aldeia/campo, aldeão/camponês.
Reminiscências do latino paganus (aldeão, camponês ou a eles relativos), o que semeia a terra ao longo das estações do Ano, o que “combate” a Natureza com a Natureza - por exemplo, ao colocar ramos de oliveira por cima das portas e das janelas por causa das trovoadas; ao colocar um ramo de espigas em casa, para “dar sorte” durante o resto do ano; etc. -, o que presta culto à Terra-Mãe celebrando as diferentes festas agrárias anuais - como por exemplo as Maias, também coincidentes por esta altura da Primavera -, ele liga-se e entrega-se totalmente à Terra que cultiva. Segundo o erudito antropólogo e historiador das Religiões, Mircea Eliade, para o camponês, a terra é compreendida como a Grande Mãe: que possibilita a sua sobrevivência e lhe dá simultaneamente a felicidade e o sofrimento nesta vida, tendo as festas e cerimónias, através das diferentes manifestações e ritos, como objectivo final, inconsciente ou não, a Saudação à Mãe Terra, à Tellus Mater, que se manisfesta através dos ciclos naturais e anuais de germinação, floração e frutificação, fundamentais para a própria continuidade física e espiritual do homem.
Litúrgica porque nos templos católicos, nesse mesmo dia, se celebrava a reza da hora, do meio-dia à uma, mas hoje praticamente em desuso e votada ao esquecimento por celebrantes e fiéis.
«Depois, levou-os até junto de Betania e, erguendo as mãos, abençoou-os. E ao abençoá-los, sucedeu que se separou deles e ia elevando-se ao céu. Eles, tendo-o adorado, voltaram para Jerusalém cheios de alegria e estavam continuamente no templo bendizendo a Deus.» (Lucas, XXIV, 50-52).
É este o episódio das escrituras cristãs cantado num dos Evangelhos o festejado na 5ª Feira de Ascensão ou 5ª Feira da Espiga, correspondente à Ascensão de Cristo aos Céus, quarenta dias após a Ressurreição.
Festa familiar por excelência, em que grupos de gente vai para o campo, com o farnel, festeja, celebra ritos esquecidos num ritmo de paz, alegria e confraternização. Pais, filhos e amigos, homens, mulheres e crianças, cumprem o rito e, como diz o poeta: «Assim foi sempre, assim sempre será»...
Tradicionalmente, no Alentejo deve-se colher o Ramo da Espiga do meio-dia à uma hora da tarde e consta que o ramo seja constituído por cinco folhas de oliveira, cinco espigas de trigo e o maior número possível de flores amarelas e brancas. Por vezes, e segundo as devoções de cada um, esta «apanha» era acompanhada pelo rezar de cinco Pai-Nossos, cinco Avé-Marias e cinco Glórias. É claro que o número e a espécie de elementos constituintes do Ramo varia de terra para terra, de grupo para grupo, de família para família.
Interessante também será o significado dado pelo povo aos componentes do dito Ramo: os ramos de oliveira para que durante o ano não falte o azeite em casa; as espigas de trigo que pressagiam um ano farto de pão; as flores amarelas e brancas para que não escasseie o ouro e a prata... Independentemente do significado concreto dos elementos, crê-se geralmente que, ao trazer este Ramo para casa e colocando-o atrás da porta de entrada, na cozinha, na sala, etc., para aí ser conservado durante um ano, esta acção traz sorte e felicidade para os moradores da casa. A espiga reveste-se assim de características simbólico-mágicas, tornando-se num talismã protector poderoso para a conservação da coesão do lar e da família, e sabe-se o quanto esta coesão e fortalecimento da família era importante nas sociedades antigas ligadas aos ciclos agrários.
Cerimónia, pois que no fundo disso se trata, representando com certeza alguma reminiscência de arcaicos cultos ligados às forças da Natureza e da Terra-Mãe a que o Cristianismo juntou a Ascensão e a evocação de Cristo, também Ele, por sua vez, ligado misticamente ao Sol enquanto fonte criadora e mantenedora da Vida sobre a Terra.
Mitologicamente, e segundo Leite de Vasconcellos, «o culto da espiga vem já de tempos imemoriais, pois antes que a humanidade inventasse o culto todo espiritual, como é o de nossos dias, ela voltou os olhos à terra-mãe que lhe dá o pão, e adorou-a com mais ou menos símbolos, festejando todos os anos o nascimento do trigo.
Milhares de anos antes de Cristo realizavam-se já numa pequena cidade da Grécia - Elêusis - pomposas festas em honra das duas Deusas das searas - Ceres e Proserpina.
Dizia-se já então que estas festas tinham sido estabelecidas pelos deuses da Antiguidade.
(...).
Havia entre os Gregos duas espécies de festas dedicadas às grandes Deusas, as quais correspondiam às duas grandes épocas agrícolas.
As pequenas eleusinas celebravam-se nos meses da germinação, anunciada miticamente pela ascensão de Proserpina aos Céus.
As grandes eleusinas celebravam a descida de Proserpina aos infernos e correspondiam à época das sementeiras.
Proserpina, trazida à luz, representa o despontar do fruto. A condução ao inferno representa a introdução da semente na terra.
Correspondem estas festas às festas da Primavera e às festas do Outono.
(...).»
Nestes tempos de bulício e de correrias constantes vale a pena pararmos um pouco e procurarmos olhar a essência deste costume da apanha da espiga: vemo-nos a confraternizar com familiares e amigos, encontramo-nos a contactar directamente a Natureza que nos rodeia, espantamo-nos a olhar as árvores, as flores campestres, as searas... e, sem darmos por isso, algo em nós fica qualitativamente melhor, mais solidário, menos isolado, mais fraternal, mais humano...
Se calhar não é por simples acaso que o Dia da Espiga acontece todos os anos nesta época da Primavera, quando os campos se cobrem de flores anunciando a extraordinária capacidade de regeneração da Vida.
Valerá concerteza a pena esta tarde tirarmo-nos de cuidados e irmos até aos campos próximos para, mais não seja, sentir os aromas que pairam no ar e que nos fazem realmente ascender a outras realidades e a outros ritmos que, no dia-a-dia normalizado, não temos tempo, nem espaço, nem disponibilidade para eles.
Aqui fica o desafio.
Rui Arimateia
Todo o ano terá pão.”
diz o ditado popular baseado em tradição antiga e cujo sentido ainda nos nossos dias é tido em conta, pois que muita gente, quer por devoção, quer por costume, quer pela confraternização resultante, se desloca aos campos à volta da cidade a fim de «colher a espiga» para a trazer para casa com fins protectores e apelativos de abundância.
Podemos ler uma pequena notícia no desaparecido jornal eborense Democracia do Sul de 27 de Maio de 1922, com o título «Dia da Espiga», referindo: «Respeitando a tradição, Évora despovoou-se na quinta-feira. A cidade ficou deserta.» Ainda nos dias de hoje há Serviços, e algum comércio eborense, que encerram as suas portas durante a parte da tarde a fim de permitir que os funcionários e empregados possam cumprir com a tradição. E ela não deixa de se cumprir embora cada ano que passa seja mais difícil encontrar-se espigas de cereal...
Quando terá sido instituído o «Dia da Espiga», coincidindo com o Dia da Ascensão do Calendário Litúrgico Cristão, ninguém o saberá dizer. Constata-se tão somente a solenidade da Festa, simultaneamente pagã e litúrgica.
Pagã no sentido etimológico das palavras latinas pagus/paganus, isto é, referente a aldeia/campo, aldeão/camponês.
Reminiscências do latino paganus (aldeão, camponês ou a eles relativos), o que semeia a terra ao longo das estações do Ano, o que “combate” a Natureza com a Natureza - por exemplo, ao colocar ramos de oliveira por cima das portas e das janelas por causa das trovoadas; ao colocar um ramo de espigas em casa, para “dar sorte” durante o resto do ano; etc. -, o que presta culto à Terra-Mãe celebrando as diferentes festas agrárias anuais - como por exemplo as Maias, também coincidentes por esta altura da Primavera -, ele liga-se e entrega-se totalmente à Terra que cultiva. Segundo o erudito antropólogo e historiador das Religiões, Mircea Eliade, para o camponês, a terra é compreendida como a Grande Mãe: que possibilita a sua sobrevivência e lhe dá simultaneamente a felicidade e o sofrimento nesta vida, tendo as festas e cerimónias, através das diferentes manifestações e ritos, como objectivo final, inconsciente ou não, a Saudação à Mãe Terra, à Tellus Mater, que se manisfesta através dos ciclos naturais e anuais de germinação, floração e frutificação, fundamentais para a própria continuidade física e espiritual do homem.
Litúrgica porque nos templos católicos, nesse mesmo dia, se celebrava a reza da hora, do meio-dia à uma, mas hoje praticamente em desuso e votada ao esquecimento por celebrantes e fiéis.
«Depois, levou-os até junto de Betania e, erguendo as mãos, abençoou-os. E ao abençoá-los, sucedeu que se separou deles e ia elevando-se ao céu. Eles, tendo-o adorado, voltaram para Jerusalém cheios de alegria e estavam continuamente no templo bendizendo a Deus.» (Lucas, XXIV, 50-52).
É este o episódio das escrituras cristãs cantado num dos Evangelhos o festejado na 5ª Feira de Ascensão ou 5ª Feira da Espiga, correspondente à Ascensão de Cristo aos Céus, quarenta dias após a Ressurreição.
Festa familiar por excelência, em que grupos de gente vai para o campo, com o farnel, festeja, celebra ritos esquecidos num ritmo de paz, alegria e confraternização. Pais, filhos e amigos, homens, mulheres e crianças, cumprem o rito e, como diz o poeta: «Assim foi sempre, assim sempre será»...
Tradicionalmente, no Alentejo deve-se colher o Ramo da Espiga do meio-dia à uma hora da tarde e consta que o ramo seja constituído por cinco folhas de oliveira, cinco espigas de trigo e o maior número possível de flores amarelas e brancas. Por vezes, e segundo as devoções de cada um, esta «apanha» era acompanhada pelo rezar de cinco Pai-Nossos, cinco Avé-Marias e cinco Glórias. É claro que o número e a espécie de elementos constituintes do Ramo varia de terra para terra, de grupo para grupo, de família para família.
Interessante também será o significado dado pelo povo aos componentes do dito Ramo: os ramos de oliveira para que durante o ano não falte o azeite em casa; as espigas de trigo que pressagiam um ano farto de pão; as flores amarelas e brancas para que não escasseie o ouro e a prata... Independentemente do significado concreto dos elementos, crê-se geralmente que, ao trazer este Ramo para casa e colocando-o atrás da porta de entrada, na cozinha, na sala, etc., para aí ser conservado durante um ano, esta acção traz sorte e felicidade para os moradores da casa. A espiga reveste-se assim de características simbólico-mágicas, tornando-se num talismã protector poderoso para a conservação da coesão do lar e da família, e sabe-se o quanto esta coesão e fortalecimento da família era importante nas sociedades antigas ligadas aos ciclos agrários.
Cerimónia, pois que no fundo disso se trata, representando com certeza alguma reminiscência de arcaicos cultos ligados às forças da Natureza e da Terra-Mãe a que o Cristianismo juntou a Ascensão e a evocação de Cristo, também Ele, por sua vez, ligado misticamente ao Sol enquanto fonte criadora e mantenedora da Vida sobre a Terra.
Mitologicamente, e segundo Leite de Vasconcellos, «o culto da espiga vem já de tempos imemoriais, pois antes que a humanidade inventasse o culto todo espiritual, como é o de nossos dias, ela voltou os olhos à terra-mãe que lhe dá o pão, e adorou-a com mais ou menos símbolos, festejando todos os anos o nascimento do trigo.
Milhares de anos antes de Cristo realizavam-se já numa pequena cidade da Grécia - Elêusis - pomposas festas em honra das duas Deusas das searas - Ceres e Proserpina.
Dizia-se já então que estas festas tinham sido estabelecidas pelos deuses da Antiguidade.
(...).
Havia entre os Gregos duas espécies de festas dedicadas às grandes Deusas, as quais correspondiam às duas grandes épocas agrícolas.
As pequenas eleusinas celebravam-se nos meses da germinação, anunciada miticamente pela ascensão de Proserpina aos Céus.
As grandes eleusinas celebravam a descida de Proserpina aos infernos e correspondiam à época das sementeiras.
Proserpina, trazida à luz, representa o despontar do fruto. A condução ao inferno representa a introdução da semente na terra.
Correspondem estas festas às festas da Primavera e às festas do Outono.
(...).»
Nestes tempos de bulício e de correrias constantes vale a pena pararmos um pouco e procurarmos olhar a essência deste costume da apanha da espiga: vemo-nos a confraternizar com familiares e amigos, encontramo-nos a contactar directamente a Natureza que nos rodeia, espantamo-nos a olhar as árvores, as flores campestres, as searas... e, sem darmos por isso, algo em nós fica qualitativamente melhor, mais solidário, menos isolado, mais fraternal, mais humano...
Se calhar não é por simples acaso que o Dia da Espiga acontece todos os anos nesta época da Primavera, quando os campos se cobrem de flores anunciando a extraordinária capacidade de regeneração da Vida.
Valerá concerteza a pena esta tarde tirarmo-nos de cuidados e irmos até aos campos próximos para, mais não seja, sentir os aromas que pairam no ar e que nos fazem realmente ascender a outras realidades e a outros ritmos que, no dia-a-dia normalizado, não temos tempo, nem espaço, nem disponibilidade para eles.
Aqui fica o desafio.
Rui Arimateia
Évora, Maio de 2009
1 comentário:
Desde que fui mãe já vai para 23 anos, levo a serio algumas das tradições do país e da região, uma tentativa para passar os valores e a cultura da minha gente, pois só com os exemplos estes passam para as novas gerações. Por isso todos os anos, tenha muito ou pouco para fazer arranjo um tempo para ir ao campo apanhar a espiga. Ao longo dos anos esta tarefa cada vez ficou mais difícil e este ano ficou quase impossível.
O Alentejo está todo vedado, conseguir as flores do campo está cada vez menos asserível aqueles, que como nós querem colher os malmequeres brancos e amarelos. Já a cevada e o trigo estes estão dada vez mais longe, pois de ano para longe menos são aqueles que os semeiam.
A custo, com muitos quilómetros andados e muitas vedações saltadas, lá conseguimos a nossa espiga para nos dar boa sorte mais um ano.
Para o ano se verá!
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