sábado, 22 de agosto de 2009

A Árvore da Vida


Pintura de Gustav Klimt

AS PALAVRAS E A CRIAÇÃO

Houve um tempo em que não havia nada, só o vazio, um vazio insensível e cego. O vazio insensível e cego gostava de pensar de vez em quando, só de vez em quando e, de cada vez que pensava, os pensamentos ficavam suspensos, flutuando no vazio; e os pensamentos foram-se somando e no vazio encontraram-se e puseram-se a brincar. A brincar, a brincar, foram criando novos pensamentos. No vazio começaram a nascer como turupes, isto é, como bossas, e essas bossas rebentaram e formaram palavras, porque o vazio era insensível e cego, mas não mudo. As palavras rapidamente se ergueram e começaram a diferenciar-se. Umas tornaram-se em árvores, trepadeiras, arbustos e florezinhas. Outras transformaram-se em água, e aconteceu que algumas se puseram a nadar e se tornaram peixes e as que se sentaram a descansar converteram-se então em pedras. As palavras a «pairar no ar» tornaram-se pássaros. Até que as palavras, fartas de serem elas a dar nomes, decidiram querer ser nomeadas e disseram Mulher e disseram Homem e as palavras Mulher e Homem caminharam até se encontrarem, nomearam-se e amaram-se. Eles deram nomes às palavras. Apareceu a palavra Casa e a mulher e o homem habitaram-na; disseram Mesa e tiveram onde se sentar para comer. Com a palavra Palavra apareceu a primeira ferramenta e, sentados em redor da palavra Fogo, a mulher e o homem contaram um ao outro, as primeiras histórias.

In Cuando el hombre es su palabra y otros cuentos. Mitos de Créación, de Nicolás Buenaventura Vidal. Editorial Norma, Bogotá, Colômbia 2002.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Vomos contar um conto?


CONTAR UM CONTO: UM ACTO CULTURAL

Com este texto gostaria de partilhar convosco um conjunto de reflexões sobre a importância dos contadores de contos para a preservação de uma sabedoria milenar, que se desenvolveu por estas terras lusitanas e peninsulares, mas também um pouco por todas as outras terras onde a tradicional comunicação de boca a ouvido se fez sentir, quer em sentido profano do conto popular quer em sentido sagrado e no âmbito dos mistérios das religiões.

«A praça estava deserta. Como um palco de teatro, iria encher-se a pouco e pouco. Os primeiros a instalarem-se nela foram os Sarauis, mercadores de todos os pós: especiarias, hena, hortelã brava, cal, areia, e outros produtos mágicos, moídos e requintados. Foram seguidos pelos alfarrabistas. Expuseram os seus manuscritos amarelos e queimaram incenso.
E depois havia aqueles que não vendiam nada. Sentavam-se no chão cruzando as pernas e esperavam. Os contistas instalavam-se em último lugar. Cada um tinha o seu ritual.
Um homem alto, seco e delgado, começou por desatar o turbante. Sacudiu-o; caiu dele areia fina. Esse homem vinha do Sul. Sentou-se sobre uma malinha de contraplacado e, sozinho, sem o menor auditor, pôs-se a contar. Eu via-o de longe, falar e gesticular, como se o círculo estivesse fechado e bem cheio. Aproximei-me dele e cheguei a meio de uma frase: "O sabor do tempo lambido por uma matilha de cães." (...).»(
1)

Uma pequena descrição fictícia talvez mas não por isso menos real do mundo dos contadores de contos, neste caso em Marrocos, mas que poderia ser, modificando um ou outro pormenor, uma cena de ainda há umas dezenas de anos numa das aldeias espalhadas por este nosso Alentejo de características culturais de camponês e aldeão. Juntamente com os poetas populares, os decimistas, os vendedores de romances de cordel, por essas feiras perdidas nos confins das terras, festas e romarias de santo(a) padroeiro(a), transmissores dos milagres acontecidos e das desgraças sofridas e choradas, andando em círculos de lentidão ponderada, respeitando os ciclos anuais, eram eles os repositórios e os anunciadores das notícias entre o Povo analfabeto, contudo ouvinte atento e ávido de palavras, de gestos e de gestas que ciclicamente se renovavam. Gerações de ouvintes por excelência, ainda tocaram e marcaram as gerações que hoje existem e que por sua vez ainda nos poderão transmitir aquelas memórias de outros tempos, de outros espaços, de outras formas de encarar a vida e o quotidiano.

Daniel Sampaio, ao falar sobre a sua experiência profissional e de vivência pessoal, faz transparecer a preocupação de que "as famílias deveriam recuperar a tradição de contar histórias". Alertava ele: "A tradição nas famílias de contar histórias, que proporcionava momentos de grande equilíbrio emocional entre adultos e crianças, foi perdida nos últimos tempos e é preciso recuperá-la." (2)

Contar um conto foi e é, continua a ser, hoje, um acto cultural. Sem dúvida a tradição oral moderna faz parte daquele conjunto de realidades que auxiliam a construção e a compreensão de uma cultura, da nossa cultura. Olhando o conceito cultura como sendo o conjunto dos costumes, das crenças, das instituições – tais como a arte, o direito, a religião, as técnicas da vida material –, isto é, todos os hábitos e comportamentos e aptidões apreendidos pelo homem enquanto membro de um todo social, a que chamamos Sociedade.
Entre estas aptidões existe uma que por excelência vai "humanizar" a cultura, vai por si só "justificá-la", que é a linguagem. Existe cultura porque existe uma linguagem articulada, traduzível e compreensível através de um sistema de signos. Linguagem, comunicação e cultura, são três realidades que caracterizam na sua essência o ser humano.

Refere-nos o ilustre etnólogo Claude Lévy-Strauss que:

"A linguagem aparece como o facto cultural por excelência. Primeiro porque é uma parte da cultura, uma das suas aptidões ou hábitos que recebemos da tradição externa; em segundo lugar, porque a linguagem é o instrumento essencial, o meio privilegiado pelo qual nós assimilamos a cultura do nosso grupo – uma criança aprende a sua cultura porque falamos, porque comunicamos com ela através da linguagem –; finalmente e sobretudo porque a linguagem é a mais perfeita de todas as manifestações de ordem cultural que formam, a um ou a outro título, sistemas, e se quisermos compreender o que é a arte, a religião, o direito, até mesmo a cozinha ou as regras de cortesia, será necessário concebê-los como códigos formados pela articulação de signos, sobre o modelo da comunicação linguística." (3)

Ainda é o mesmo autor que refere que "sem linguagem não existe cultura, nem homo sapiens..." – a emergência da linguagem é, no fundo, coincidente com a emergência da cultura.

O Conto Popular é ele próprio um exemplo da utilização inteligente da linguagem articulada, logo humana, ao longo dos tempos. Através da linguagem e através dos contos populares preservaram-se e reproduziram-se saberes, mitos, memórias que vieram até aos nossos dias das profundezas dos tempos e da História.

Várias contribuições têm sido dadas para que as memórias daqueles últimos contadores de contos subsistam. E subsistem através, não só da palavra transmissora desses saberes, de geração para geração, como ainda se fixam textualmente algumas dessas autênticas pérolas da tradição oral.
Não obstante os aspectos negativos que os perfeccionistas destas coisas da cultura popular possam apontar, não deixam de ser extremamente importantes estas edições, uma vez que fazem circular diferentes versões de contos que, em última análise servirão não só de leitura de prazer para quem os quer recordar, ou para quem os queira conhecer, mas também para quem se sirva deles para os comparar com muitas outras versões que eventualmente possam existir noutras colecções, noutras memórias, noutras terras e até noutras línguas.

E entrando agora mais directamente na problemática dos contos populares, refira-se que para uma compreensão global de um texto, neste caso concreto, de um conto popular da tradição oral, será importante ouvir e ou ler o maior número de versões existentes e ou conhecidas desse texto. Os contos populares são textos conservados pela memória através de séculos e séculos. Textos cuja forma se transforma mas cuja essência permanece – não será este o comportamento e evolução daquele fenómeno social a que chamamos cultura?

Outro facto curioso e significativo é que o conto popular tradicional encontra-se liberto da "prisão" do autor. São textos de autores anónimos, ou melhor, são textos colectivos que pertencem a uma comunidade e que se transmitem através da boca do povo, de comunidade para comunidade até adquirirem a sua característica universal. Os contos são moldados formalmente ao longo dos tempos, ao sabor das circunstâncias sociais, culturais, civilizacionais...

Sobre as "origens dos contos", vou socorrer-me do escritor italiano Italo Calvino, em colectânea recentemente publicada em Portugal. Refere ele:

[Segundo Ferdinando Neri, 1934] «O "balanço" das tradições populares é absolutamente ilusório: tão casuais são os testemunhos, sobretudo se se remontar a uma época remota; e mesmo quando se tem o seu documento seguro, os inúmeros cotejos com o folclore de outros países acabam por excluir toda a possibilidade de uma localização que não seja pontual e transitória. A lenda passa, volatiliza-se, está por todos caminhos como uma poeira dispersa sobre as pegadas dos homens. (...)».

Portanto falar de «conto popular italiano não pode ter significado? Todo o problema do conto popular terá de ser remetido para uma antiguidade que não é só pré-histórica, mas também pré-geográfica?
As escolas que estudam as relações entre o conto popular e os ritos da sociedade primitiva dão resultados surpreendentes. Que se encontram aí as origens do conto de fadas parece-me indúbio. Porém, dito isto, volta-se a tombar numa noite indiferenciada. (...).»
(4)

A propósito do acto de narrar de contar um conto, e tendo em conta a relação de comunicação vivencial que se estabelece entre um ou mais sujeitos, o(a) narrador(a) e os ouvintes, verificar-se-á que a passividade não existe, existirá sim um estado completo de atenção e de comunicação entre um(a) e outros dificilmente comparável em qualquer outra situação no quotidiano.
Tenhamos em conta um extraordinário depoimento de Giuseppe Pitré (5), partilhado connosco por Italo Calvino, que nos revela toda uma situação relacional tradicional entre uma contadora de contos e o(s) seu(s) ouvinte(s):

Assim nos diz Italo Calvino: «Com Pitré o folclore ganha consciência do papel que no próprio existir de uma tradição de conto desempenha a tradição poética de quem narra, essa coisa que – ao contrário do que acontece com o canto, fixado de uma vez por todas nos seus versos e nas suas rimas, repetido anonimamente nos coros, com uma margem limitada de possíveis variantes individuais – para o conto popular tem de ser recriado todas as vezes, de modo que no centro do costume de contar histórias está a pessoa – excepcional em cada aldeia ou burgo – da narradora ou do narrador, com um estilo e um fascínio muito seus. E é através desta pessoa que a sempre renovada ligação do conto atemporal entra em comunicação com o mundo dos seus ouvintes, com a História.
Assim, a protagonista da colectânea da colectânea de Pitré é uma velha contadora analfabeta, Agatuzza Messia "costureira de colchas de Inverno no Borgo (bairro de Palermo) (...)" e antiga criada na casa de Pitré. Grande número dos mais belos "cunti" de Pitré provém da sua boca (...). É assim que Pitré no prefácio da colectânea descreve a sua "narradora-modelo":

Nada bonita, tem a palavra fácil, a frase eficaz, e uma maneira atraente de contar, que nos faz adivinhar a sua extraordinária memória e o engenho que brotou da natureza. Agatuzza Messia conta já os seus setenta anos, e é mãe, avó e bisavó; em criança ouviu contar a uma das suas avós, que os aprendera com a mãe e esta, também de um seu avô, uma infinidade de historietas e de contos; tinha boa memória, e nunca mais se esqueceu (...). Entre as suas companheiras de burgo, bairro (...) de Palermo, ela gozava da reputação de boa contadora de histórias, e quanto mais a ouvíamos, mais vontade tínhamos de ouvi-la. (...).
Agatuzza Messia não sabe ler, mas sabe muitas coisas que ninguém sabe, e repete-as com uma propriedade de língua que é um prazer ouvi-la. Esta é uma das suas características (...). Se o conto incide num navio que tem de viajar, ela desencanta, sem dar por isso ou pelo menos sem parecer, frases e termos da marinhagem que só conhecem os marinheiros ou quem esteja relacionado com a gente do mar. Se a heroína da novela vai parar, pobre e desolada, a uma casa de padeiros e aí se instala, a linguagem de Agatuzza é tão informada daquele ofício que se julga ter ela estado a trabalhar, e a cozer pão, quando em Palermo esta ocupação, comum nas famílias dos pequenos municípios da ilha, pertence apenas aos padeiros. E não falemos de onde apareçam afazeres domésticos, porque então Agatuzza está em casa (...).
(...). Quem lê, só encontra a fria e nua palavra; mas a narração de Agatuzza mais que na palavra consiste no mover irrequieto dos olhos, no agitar dos braços, nas atitudes da pessoa toda, que se levanta, anda às voltas pela sala, inclina-se, ergue-se, fazendo a voz ora baixinha, ora excitada, ora medonha, ora doce, ora estridente, recriando a voz das personagens e o acto que elas realizam. Tem de se entrar sempre em linha de conta com a mímica das narrações, especialmente de Agatuzza, e pode-se ter a certeza de que sem ela a narração perde metade da sua força e eficácia. Felizmente a linguagem permanece tal qual é, plena de inspiração natural, de imagens todas tiradas dos agentes externos, para as quais se tornam concretas as coisas abstractas, corpóreas as sobrenaturais, e vivas e falantes as que nunca tiveram vida ou só a tiveram uma vez. (...)»
(6).

Todo o processo vivencial de experimentação em relação, permitirá, em última análise, ao homem, evoluir e assumir a sua espiritualidade mais autêntica, ocasionando simultaneamente a sua auto-expressão. Caso contrário esta permanecerá “enegrecida” pelo medo, pela limitação e pelo condicionamento, agentes-travão da experiência, da vivência e causadores de conflito e da não comunicação e entendimento entre as pessoas.
Afinal o indivíduo só existe e só se realiza, enquanto ser humano, em relação, relação essa que, para ser realmente libertadora e transformante, terá que se construir conscientemente pelos próprios sujeitos intervenientes e autores da comunicação.


Todo o aprender é comunicar!
Por sua vez, comunicar é estar em relação com, agir. Partindo do pressuposto de que basta estarmos presentes para estarmos a (inter)agir e, por assim dizer, a comunicar: é impossível não comunicar. A comunicação não tem antítese. Estamos constrangidos a comunicar seja qual for o tipo de comunicação que se estabeleça com o outro no quotidiano: verbal ou não verbal, pela palavra ou pelo silêncio. O compromisso da relação encontra-se sempre presente.

Contemos contos, ouçamos contos, inventemos contos... e a nossa relação com os outros concerteza que ficará mais rica humanamente, com mais comunicação e concerteza será muito mais fácil crescermos interiormente e terá repercussões visíveis nas nossas palavras, nos nossos gestos, nos nossos comportamentos e relacionamentos do dia a dia.

Rui Arimateia


NOTAS:

(1) in A NOITE SAGRADA, por Tahar Bem Jelloun, Bertrand Editora, Venda Nova, 1988, pág. 13.
(2) in XIII Encontros de Literatura para Crianças, promovidos pelo Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura, da Fundação Calouste Gulbenkian, que decorreram em Lisboa em Novembro de 1998.
(3) En
tretiens avec Claude Lévy-Strauss
(4) in"Introdução" de FÁBULAS E CONTOS ITALIANOS, Ed. Teorema, Rio de Mouro, 2000 (pp.33-34).
(5) Giuseppe Pitré, 1841-1916, médico e folclorista siciliano, cujas investigações foram publicadas nos seus monumentais 35 volumes da Biblioteca das Tradições Populares Sicilianas, iniciada em 1871 e acabada em 1913. Em 1880, em colaboração com S. Salomone-Marino, também médico, fundou o Arquivo das Tradições Populares. Igualmente importante é a colecção das Curiosidades Populares Tradicionais e a Bibliografia das Tradições Populares em Itália, publicada em 1894. Fundou em Palermo o Museu Etnográfico Siciliano.
(6) Idem, pp. 21-23.

domingo, 16 de agosto de 2009

Finis Gloriae Mundi


Juan de Valdez Leal

HISTÓRIA E INFRA-HISTÓRIA

Hoje partilho convosco um texto de Fidelino de Figueiredo, uma das grandes figuras da cultura, da história e do humanismo Lusitano.
Muitas vezes, demais talvez, esquecido tal como muitos outros humanistas e filósofos desta nossa terra lúcida… mas tão abandonada pelas actuais medíocres classes políticas dirigentes, que não sabem orientar o Povo na direcção da Luz!...
O problema da História é o facto de ser escrita por quem detém o poder temporal… Umas vezes (raras) investido de autoridade outras enganando, burlando e escamoteando a realidade do que é ao Povo que em Democracia conferiu essa Autoridade ao político, ao que deveria gerir a res publica de maneira equilibrada e honesta…
Olhemos para as nossas democracias para vermos que a coisa não se passa assim… Existe poder e abuso de poder…
Mas, reflictamos com Fidelino de Figueiredo, sobre a história e a infra-história:

«A história que se ensina e que baseia a governação e os comentários jornalísticos, outrora matéria oficial dos cronistas régios e ainda hoje departamento predilecto da erudição académica, está para a história integral como a espuma suja da superfície para as fermentações de um líquido, ou como a queda outonal da folhagem e o seu apodrecimento sob a chuva para a evolução biológica das plantas: uma parte, e parte miserável, de um nobre conjunto […]. A história integral possui outro plano oculto, o da subterrânea acção criadora – subterrânea como a das raízes daquele arvoredo que no Outono se despiu das suas frondas que lhe sobem das ocultas raízes. A essa história enganosa e ruidosa da superfície opõe-se a verdadeira e silenciosa, a das fermentações profundas, a das raízes invisíveis, a infra-história – zona em que a inteligência estimulada por todos os anseios labuta, não pelo domínio do homem sobre o homem, sim pelo domínio do homem sobre a Terra, com toda a fenomenalidade que o envolve e todo o cenário do Cosmos que o defronta. Essa infra-história é que determina a agitação da história aparente. Assim a realidade profunda e invisível do mundo vibratório do átomo determina a aparência enganosa e bela do mundo empírico das sensações […] como em boa verdade coexistem os dois mundos, o das sensações de perímetro humano e o da vibração atómica de perímetro universal, assim coexistem os dois planos da história, o da aparência superficial e o da realidade profunda.»

Fidelino de Figueiredo
Entre Dois Universos (1959)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

ESTÓRIAS DE CELINA PEREIRA

Estória, Estória… Do Tambor a Blimundo
de
Celina Pereira

Este audio livro apresenta-nos dois contos da tradição oral africana – a lenda do Tambor – uma explicação fabulosa do aparecimento/invenção do tambor – e a estória de Blimundo – um grito de revolta que nos conta situações de injustiça extrema como a da escravatura, a da falta de liberdade, a da negação do usufruto libertador da palavra –, além de jogos tradicionais brincados e cantados pelas crianças de Cabo Verde mas também pelas crianças portuguesas, o fundo é comum. Oferece-nos ainda três mornas interpretadas magistralmente pela Celina acompanhada por um conjunto de músicos de grande qualidade.
Uma palavra de grande apreço para a ilustradora Claudia Melotti que nos ajuda a entranhar a estória não a revelando totalmente. A cor é extraordinária e o ritmo pictórico do desenho remete-nos para as cores de África.

“Quando eu ainda não sabia ler, brincava com os livros e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo”, referia Cecília Meireles no início dos anos da década de 50 do século passado.

Também em Portugal o Prof. João dos Santos se preocupava com esta coisa esquisita que é a “literatura infantil”. Dizia ele:

- “O Principezinho é, como sabem, dedicado ‘à criança que outrora foi, essa pessoa crescida’. Aí está quanto a mim a chave da problemática da literatura infantil: a dos autores saberem, ou não, falar às crianças através da criança que outrora foram.”

É Hora de Brincadeiras

Integração total da criança na vida em comunidade (nas aldeias do Alentejo e de Cabo Verde)
- direitos e deveres
- existência de sanções
- construção e desenvolvimento de diferentes linguagem(ens)
- a construção da Cultura

A Hora das Estórias

A magia da contadora de estórias da tradição oral
A importância dos contos tradicionais na assumpção da identidade cultural
A importância da transmissão deste Património / Matrimónio às crianças

A importante e fundamental transmissão da tradição pelos mais velhos:

“Estória, estória! – (diz o contador).
Fortuna do céu, Amén – Esta resposta da plateia remete-nos ao valor “fortuna” que é dado na tradição africana a todas as palavras que saem da boca dos mais velhos; neste caso só a estes é reconhecida autoridade para saber contar estórias.”

Também aqui no nosso Alentejo temos exemplos desta assunção da Autoridade Tradicional pelos mais velhos, nomeadamente através de um costume que as “Brincas” de Entrudo nos deixaram: no Sábado de Carnaval o “Fundamento” é pela primeira vez apresentado perante uma assembleia dos mais velhos do lugar a que pertencem durante o Baile. É o assim denominado o “Ensaio da Censura”...
A Tradição renova-se sempre que a transmissão acontece através da palavra, da linguagem, da música, da poesia… transmitida da boca ao ouvido.
Atentemos à expressão crioula utilizada por Maria de Lourdes Jesus na introdução:
“Lua noba na terra bedja” – “Esta expressão queria dizer que a Lua continuava a renovar-se perante uma Terra que continuamente envelhecia.” (...) “Quando era tempo de Lua Cheia todos nós, grandes e pequenos íamos dormir mais tarde. A Ilha [de S. Nicolau] iluminava-se com todo o seu esplendor criando uma atmosfera fantástica, propícia para se contar estórias durante todo esse período. (…). Discutíamos muito entre nós, brigávamos e fazíamos apostas sobre como terminaria a história. (…). As contadeiras de estórias alternavam-se e depois do jantar íamos a casa de uma delas ou sentávamo-nos à frente da porta da casa, onde ela também se sentava num banquinho ou num degrau. A contadeira quase sempre segurando o seu canhot (cachimbo que se usa na nossa terra), enquanto as crianças se sentavam no chão fechando o círculo à volta dela, num silêncio tumular, tendo por companheira a Lua. A contadeira de estórias entrava no mundo das fábulas pronunciando em voz alta a frase mágica: “Estória Estória”… e nós em coro respondíamos: “Fortuna do Céu, Amén”.
“Tia, tia, conta-nos uma estória! Conta, conta!
Não, esperem um pouco! Enquanto houver luz do sol, conforme a tradição, de dia não se contam estórias. Senão tens de arrancar uma pestana e enterrá-la na terra, para que as outras não caiam. Continuem a brincar que eu já volto.”

E então, com o Sol recolhido e a Lua a reinar no firmamento, poderíamos ouvir na Ilha de S. Nicolau em Cabo Verde:

“Estória Estória”…
“Fortuna do Céu, Amén”.

O acto de contar estórias encerra em si próprio um ritual, uma dramatização arquetípica, uma recriação paradigmática de um Eterno Presente, onde o mito tem sentido, actualidade e possibilidade de transformar quem o utiliza.
O conto tradicional é criador de um tempo e de um espaço de diálogo em profundidade que nos reporta para a realidade do Eterno Presente.

Contar um conto é um acto de comunicação, quiçá de comunhão com o outro e ou com os outros… É um acto de autêntica cura e de auto-cura… É um acto que compromete os sujeitos em comunicação e cria as condições para que aconteça o auto-conhecimento. É um acto onde se dá a emergência da Palavra. Onde se sente a urgência da relação entre os sujeitos e a negação consciente da relação sujeito-objecto. A Poética e a Infância, o Mito e o Sonho, a sua importância para a estruturação de uma personalidade harmoniosa, equilibrada e coerente.

Se estivermos no Alentejo poderemos ouvir:

“Ó Avó, conta-me um conto.”
E então:
“Era uma vez…”

E a comunicação, o milagre, acontece!...
Tanto psicologicamente, como vivencialmente, entramos num espaço sem espaço, num tempo sem tempo, onde o paradoxo, a metáfora, a alegoria, o símbolo e o mito se apropriam de toda a acção e de toda a narrativa e acontece qualquer coisa de criador, de transformador, de mágico…
No fundo importa menos o enredo da narração, o que é realmente importante é aquele presente acto de contar e de escutar um conto. O que importa é a relação que se estabelece, autêntica e plena de significado, entre dois ou mais seres humanos.
Relação complexa, poética, intimista, transmitimos essencialmente imagens, uma sucessão de imagens, com diferentes estádios de intensidade dramática, onde são abordados valores, princípios, opções, resoluções, arquétipos que não deixam indiferente quem conta nem quem escuta.

Os contos tradicionais possuem diferentes manifestações exteriores quanto à forma, mas, no fundo possuem, e se olhados comparativamente e em profundidade, qualquer que seja a língua, a civilização ou a cultura em que estejam inseridos, são depositários de uma única essência, para além das aparências, para além da forma, são suportados por uma Cultura Humana Universal, por uma singular Unidade/Unicidade de Vida.

Ouçamos Celina Pereira e o seu Blimundo:


http://www.youtube.com/watch?v=RXgR2Mt60Tw

http://videos.sapo.pt/4YJ7Z9I6bTJsB8bU0D2u


Rui Arimateia

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Roma em Évora


ÉVORA CIDADE - O PRINCÍPIO, ONDE A REALIDADE E A FANTASIA SE ENCONTRAM...


Não esqueçamos nunca que, quem faz a história oficial da Cidade é a classe dominante; em determinada época a constitui e a tenta reproduzir a fim de justificar a sua permanência no poder…

Antes de se entrar em aspectos mais concretos sobre a evolução histórica da Cidade de Évora em si, façamos uma rápida abordagem, digamos assim, antropológica, sobre a Fundação de uma Cidade.

A realidade Cidade aparece como o resultado da complexificação das estruturas sociais e humanas. Da família ao clã, do clã à tribo, da tribo à Fundação da Cidade... Nesta co-existem os indivíduos, livres, estratificados numa hierarquia de valores, de direitos e de deveres. É na Cidade que acontece o exercício da lei e do poder (a política), é na Cidade que acontece o exercício da Religião e dos Cultos... A Cidade enquanto suporte físico da Autoridade e da Ordem...

A Fundação de uma Cidade era sempre um acto religioso, como resultado do facto disso acontecer como consequência da união de diversas famílias sob o mesmo culto (Autoridade) e sob o mesmo santuário...

Lembremos um Ritual ancestral de Fundação de uma Cidade, nomeadamente na Antiga Grécia: o herói fundador teria de cavar um pequeno buraco circular, o “mundus”, e aí lançar um punhado de terra "sagrada", terra em que os seus antepassados estão sepultados...
Da antiga Grécia a Roma e de Roma à Évora primeva. Conceitos e ideias a ter em conta: o Circular, a Sacralização do Espaço (do Caos ao Cosmos), o acto volitivo e de poder. O arquétipo.

A Fundação de uma Cidade, neste caso Évora, data de tempos imemoriais, ofuscados pela lenda... Cidade erigida nos tempos míticos dos heróis e dos deuses... Tempos em que a Cidade era vista como Pátria... como a terra dos antepassados...

Através da História, percebe-se que Évora foi local de encontro e de encruzilhada de diferentes civilizações e culturas.
Citada por vários escritores Romanos, de certo modo biógrafos do Império Romano: Plínio, Pompónio Mela, Antonino Pio, Estrabão...
No ano 700 a. C. teria sofrido uma "invasão" de tribos da Germânia denominadas por Eburones.
Viriato, no ano 144 a. C. terá derrotado o general romano Caio Plácio às portas da cidade.
Sertório designou-a como sede do seu governo no ano 81 a. C..
Júlio César, em 30 a. C. chamou-lhe "Liberalitas Julia", criando em Ebora (assim se denominava nessa altura) o município do antigo direito latino, considerando os residentes enquanto cidadãos romanos.
Por outro lado, e pouco antes da nossa Era, Évora foi crismada com "Felicitas Julia", em honra de César. Segundo o historiador Jorge Alarcão, "Ebora era a cidade da Lusitânia (portuguesa) onde habitava maior número de famílias de origem romana", existindo no seu termo numerosas "villas" rústicas.
Em 413 d. C. outras tribos ocuparam Évora, desta feita foram os Alanos, igualmente provenientes do Norte da Europa.
Por sua vez os Godos conquistaram a Cidade em 612.
Os Árabes tomaram-na em 716 e denominaram-na nas suas Crónicas por Yabburah. Edrici, um dos maiores geógrafos árabes, situa e descreve assim Évora: "Desde Alcácer ao mar há 20 milhas e de Alcácer a Évora duas jornadas. Esta última cidade é grande e povoada. Rodeada de muros, possui um castelo forte e uma mesquita-catedral. O território que a rodeia é de uma fertilidade singular; produz trigo e gado e toda a espécie de frutas e hortaliças. É um lugar excelente, donde o comércio é vantajoso, quer de exportação, quer de importação".
Foi pelos Cristãos conquistada aos Mouros em 753 pelo rei de Oviedo, D. Fruela I, e reconquistada por aqueles em 760 com o auxílio dos moradores, sob o comando de Abd-el-Ramon, Califa de Córdoba.
Fernando magno, rei de Oviedo e de Leão, tornou a apossar-se de Yabburah em 1097, para a perder alguns anos depois.
D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, conquistou-a em 1159 (juntamente com Beja), mas foi forçado a abandoná-la por pressão de forte exército Almôada.
Só em 30 de Novembro de 1165, Geraldo Geraldes a reconquistou definitivamente para a recém criada Coroa portuguesa.
A Cidade teve foral por D. Afonso Henriques a 28 de Janeiro de 1167, posteriormente confirmado por D. Sancho I em Santarém, em Janeiro de 1218.
O Rei D. Manuel I deu-lhe Foral da Leitura Nova em 1501.

O Renascimento em Évora, a capital de um Império por realizar...

A seguir há outras histórias, outras gentes e a Évora de sempre que se matiza com as cores dos seus filhos e dos filhos dos seus filhos e assim por diante até aos dias de hoje.
R.A.