segunda-feira, 30 de março de 2009

Claustros da Catedral de Évora


SANTA MARIA DE ÉVORA




“What a glorious night today
Full by angels and fog
As that night a long time ago
When I saw from the plain
A Rose on Évora Cathedral.”

YEATS, The Golden Dawn Notes, Dublin Publishers, 1958.



Os Corvos negros fizeram-se ouvir na Torre Sineira da Catedral Gótica.
No interior, a Luz animou as Colunas... A Senhora do Ó, o Anjo, o Grifo e a Lebre desceram dos pedestais.
O Arquitecto desenrolou o Papiro e fez transparecer a Sua Mensagem inefável... Do triforium ouviram-se sons... A Energia entrou pelas Rosáceas e encontrou-se no Centro e jorrou para cima e para os lados e para baixo.
A Torre Lanterna incendiou-se e iluminou-se nos seus oito lados.
Os Corvos, no exterior, debandaram nas sete direcções do Espaço profundo.
A Palavra, regularmente pronunciada, fez erigir o Templo e acontecer o Ritual. As pancadas soaram, a Porta abriu-se e o Neófito aproximou-se com passada cadenciada e hesitante, do Oriente. Mas não se encontrava só... a Presença do Mestre fez com que a venda lhe caísse aos pés, fazendo-o vislumbrar a Luz almejada. E a Luz era Oiro, e o oiro tinha a forma de Coração e o coração transmutou-se em Rosa, donde brotou uma lágrima de orvalho há muito depositada no seu âmago... com destino de devir e de restaurar...

Sempre os Corvos...
Sempre o Sino... o Som.

O Sentimento transforma-se em Emoção e esta galopa nas asas do Vento a distâncias inimagináveis...
Viemos através da Névoa. A alvura dos Céus que cobria os campos em movimento era fascinante. As papoilas esbatidas no branco da neblina surpreenderam a nossa imaginação...

A flor da esteva ... neve quente e perfumada.

Dádiva e aceitação conduzem ao estado de Alegria.

Santa Maria de Évora - Colunas de Pedra elevadas pelo Silêncio e banhadas pela Luz da Rosa, aquela Luz que aspira unicamente à Libertação.
Elevou-se este conjunto de Harmonia e Arte através da Meditação e da Obra. Esta, resultante da Força e da Inteligência; aquela, resultante da quatrilogia simbólica e perene do «Saber, Ousar, Querer e Calar», que teve a duração de dez anos de trabalho secreto de fermentação e espera... o resultado foi a Síntese Iniciática.
Este Silêncio centenário encontra-se sempre e sempre a renovar-se ... O Sol tem a Idade de Centos e Centos de Anos, contudo todos os dias renasce...A Rosa sempre desabrocha e sempre é Fonte Emanadora de Luz, e dia-após-dia revela a Sua Mensagem de Paz, de Amor e Sageza. E a Rosa é Luz e a Luz é o Deus inominável, omnipresente e eterno tal como EU SOU EU...
Colunas de pedra elevadas pelo Sacrifício e banhadas pela Luz da Senhora e pela Luz Interna. Silêncio quase absoluto, silêncio centenar, todavia dia-a-dia renovado. Encontro-me realmente no interior do Templus Dei, no Templus-Tempus, no seio da própria Natureza Divina, tudo à minha volta, pedras, imagens, presenças e ausências, está imbuído de um Silêncio e de uma Energia tal que denuncia a própria Presença do Ser Supremo, inefável, inominável... do qual eu próprio e tudo que me rodeia, fazem parte integrante. Tudo se encontra em harmonia, dentro e fora de mim, por não haver dentro ou fora... Olho em frente e, erectas perante mim encontram-se Jakin e Boaz ... do Templo de Salomão.

Na Entrada do Claustro, perante o Apóstolo, o Tempo parou.

Eis-nos perante o Tempo-sem-tempo das Origens da Criação.
Percorro os Claustros de Pedra e de Sombras, onde a Luz se esvai nos meandros labirínticos da construção dos arcos e contra-arcos, colunas e abóbadas que suportam a perenidade da Obra.
Na Capela do Fundador, Sanctum Sanctorum do Claustro, quiçá de toda a Catedral... deparo, ao centro, na Coluna, com o Homem das Duas Chaves. O garante da Abertura da Porta. O Livro está fechado e selado. A que Portais darão acesso aquelas misteriosas Chaves Templárias? Quando o botão do lótus abrir e florescer livre e radiosamente ao Sol, o Homem, então, sairá da sua letargia e facultará a Entrada aos seus Irmãos de igual condição...
Em frente, a Senhora, de Azul e Vermelho.
Ao avançar na Sua direcção os Anjos Guardiães ordenam, em Silêncio, que me detenha... Paro.
Isis permanece com o Véu. Encontra-se Selado e Virgem, por Juramento Sagrado, a cavidade do Seu Adytum. O Menino recolhe e protege o Livro. Igualmente selado. O Fruto permaneceu Sempre no Seu Sagrado Ventre...
Contudo os Tempos estão chegados para se elevarem e retirarem as pedras e conseguirmos finalmente o acesso à PAX PROFUNDA...
Todavia os Dois Vigilantes estão alerta nos seus postos a esquadrar devidamente o Templo e o Mestre Hiram ainda não ergueu a cabeça e colheu a Acácia...

A Rosa+Cruz , presente, ao Alto... O Santo Graal, apontado, em baixo... como duas realidades da mesma REALIDADE!

Vagueio sem rumo pelos Claustros vivendo intensamente o místico ambiente emanado pela coloração, pelo odor, pela forma das pedras da construção. Por entre as arcadas góticas, ao alto - o Athanor... Os Corvos o rodeiam vezes sem conta, quiçá procurando a inevitável transmutação que, da sua negritude putrefacta atinjam a alvura e a purificação e façam parte do resultado final da Obra.
Avanço, rodeado por uma luz doirada, e as pedras brilhantes de sol e oiro tocam-me fundo e fazem-me escutar sons de recordar, e fazem-me sentir os gestos ritmados do pedreiro construtor , prenhes de intenção e de sentido quando transformavam a pedra bruta e realizavam o sonho da sua vida de labor e de oração. Pedreiros, monges, mestres e companheiros partilham, aqui e agora comigo, a minha condição de aprendiz da Arte da Vida.
Os meus acompanhantes, imóveis na sua natureza de pedra, esquadram o Claustro - S. João, S. Marcos, S. Lucas, S. Mateus - e são o suporte existencial do próprio Claustro, racionalizando e quiçá justificando a obra...
Se o piso térreo do Claustro se encontra imbuído de uma força Telúrica, em que sentimos a Terra-Mãe em toda a sua pujança criadora... ao passarmos para a claustra superior, ao aproximarmo-nos do próprio Athanor, a Energia muda literalmente de qualidade e entramos no seio da luz livre e sem reflexo. Da horizontalidade passamos à verticalidade, como o Pedreiro passa do nível ao prumo. Aí, e na base de Athanor vemo-nos perante a representação simbólica do Homem que Sabe, que Ousa, que Quer mas que Cala aos ouvidos impuros. É o Homem Peregrino em constante Demanda da Sabedoria-Sageza das Idades - o Homem montado no Cavalo Branco da Tradição Espiritual de todas as Épocas e de todas as Gentes - , aquele que activa e conscientemente contribui para a Evolução Espiritual do género humano, simbolicamente representado pelas cabeças masculina e feminina. Guerreiro por excelência, mas Templário por Via e Vocação Iniciática, guardião da Mensagem Sublime contra os perigos tenebrosos, ameaçadores da Civilização e da Humanidade.
A Iniciação Solar adivinha-se com a representação do seu Portal do Limiar. O Sol e a Lua apadrinham o Neófito sob a Arcada trilobada, nomeação de facto das três Idades do Mundo.

Athanor... o Fogo no seu interior a arder faz rodopiar o Poder contido!

Silêncio!... Num ponto do Espaço, num tempo sem Tempo, arpejos de longínquos sons... de arcaicos sentimentos... de uma Harpa... O tanger da harpa faz lembrar não sei que distantes realidades... sentidas com uma intensidade de deslumbrar e de deslumbramento. Ouvida pelo ouvido... sentida pelo sentir do baixo-ventre e traduzida pelo coração, torna-se numa e mesma realidade de re-lembrar e de re-descobrir. Os Celtas, os Druidas, os Bardos... Merlin!... Daí até à Grande Mãe abarcante e omnipresente vai um pequeno passo de infinito alcance!...
E logo, a voz humana... a Voz!... os sons de vibração circular, os jogos do sentir entre a Voz e a Harpa... os vislumbres da Memória Interna do EU levando-me até ao limiar do Eterno Presente... E logo e sempre o Fogo, a Chama... Athanor, e no seu seio ,os deuses e os Elementos... O Silêncio!
O Vermelho, o Negro, o Amarelo acompanham e aquecem todo este sentir, e ainda o Castanho e o Dourado, que me fazem filho bastardo deste tempo e filho pródigo daquele tempo do Devir que toca os confins do SER...
Olhando Athanor e adivinhando a presença sublime do seu Fogo Interior, compreendo-lhe a Mensagem de Silêncio... a Linguagem do Silêncio... Ela arde por dentro de mim, de nós, e transborda, do pequenino graal, ao meu redor, através do Olhar e do Gesto, do Rito e do Ritmo, através do Sentimento. Ela arde dentro de mim e anseia pela Demanda... Ela está presente mesmo na obscuridade mais profunda... Manifesta-se na Estrela Flamígera, a Oriente, no Templo da Perfeição.

Athanor arde e a Energia escorre e purifica à sua passagem.

É nesta atmosfera de ritmos e ritos sagrados que encaro o Mestre e Ele me confere o direito de olhar o Pergaminho dos Postulados Ocultos que reza:

1. Uma Vida penetra o Universo e o mantém em Existência.

2. O Universo fenoménico é a manifestação de um eterno, ilimitado Princípio, para além do alcance do entendimento humano.

3. O espírito (ou consciência) e a matéria são as duas polaridades da Realidade última. Os dois, com a acção recíproca entre eles, incluem uma trindade da qual procedem inumeráveis universos, que vêm e vão num interminável ciclo de manifestação e dissolução, todos eles constituindo-se enquanto expressões dessa Realidade.

4. Ao nível do macroscópio, cada Sistema Solar é um ordenado esquema governado por leis da Natureza que refletem uma inteligência transcendente. A Deidade é Lei. A Evolução impera.

5. O Espírito do Homem é idêntico, na sua essência, ao Espírito Supremo Uno. Essa Unidade, essa Alma Superior, dentro da qual o ser particular de cada homem está contido e feito uno com todos os outros.

6. A Lei é Cíclica e o Homem é o seu próprio legislador. A Liberdade e a Consciência do Homem evoluem consoante evoluir o seu auto-conhecimento.

7. A Totalidade é a chave para a compreensão do Homem e do Universo.

Assim me transmitiu o Mestre. Assim eu o transmito.

ORDO AB CHAO!



Rui Arimateia, Évora, 2001

domingo, 29 de março de 2009

YEATS

“Que noite gloriosa a de hoje
Cheia de anjos e de névoa
Como aquela noite longínqua
Quando vislumbrei da planície
Uma Rosa na Catedral de Évora.”

AS CASAS PINTADAS DE ÉVORA E OS SEUS FRESCOS DE MISTÉRIO E MISSÃO


1. Se as «Casas Pintadas» que hoje subsistem foram bens patrimoniais do Almirante D. Vasco da Gama, não se encontra comprovado documentalmente.
Em documento do Século XVI[1] (1591) lê-se:
“… casas do Conde da Vidigueira q estam junto ao escrivão Cunha e junto da Inquisição.” Pertenciam a D. Francisco da Gama, 4.º Conde da Vidigueira e futuro Vice-Rei da Índia (neto de D. Vasco da Gama).

2. Ainda segundo a tradição, não documentada, D. Vasco da Gama terá vivido em Évora entre os anos de 1507 e 1519, casando-se nesta cidade com D. Catarina de Ataíde…

3. Todo este quarteirão foi profundamente modificado em 1636 pelo Arq.to Mateus do Couto, aquando da venda pelos Condes da Vidigueira ao Santo Ofício. O bloco original, de proporções reduzidas, tinha fachadas para os terreiros do Marquês e da Sé e para uma rua pública que o separava do Paço dos Gamas, compreendendo um grupo de casario que el-rei adquiriu aos herdeiros do Coudel-Mor D. Francisco da Silveira.
O Paço dos Gamas era, em 1591, habitado por D. Francisco da Gama, 4.º Conde da Vidigueira e futuro Vice-Rei da Índia. Depois de 1597 as casas foram vendidas à Inquisição. Em 1662, por autorização municipal, que aprovou o projecto do Arq.to-mor Mateus do Couto, o primitivo Paço da Inquisição sofreu grandes obras de ampliação, absorvendo parte da moradia dos Condes da Vidigueira.

4. Refere-nos Túlio Espanca[2] que “Tristão da Cunha vivia em casas grandes no Terreiro da Sé, as quais foram, mais tarde, ocupadas pelo Tribunal do Santo Ofício. Contíguas ficavam as residências de Pero Borges, as dos herdeiros do coudel-mor e a pousada de Roque Pires e do licenciado João Dias.”

5. Na fronteira das casas teria, segundo a tradição, mandado pintar D. Vasco da Gama, frescos alusivos às suas viagens descobridoras no Oriente.
Podemos então ler na obra do P.e Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa[3], em 1728, em relação às ditas casas de Vasco da Gama: “… suas casas eram as que chamamos pintadas, por causa dos bichos, e animais, pouco ha que D. José da Gama (que é 5.º neto do nosso D. Vasco da Gama, Arcediago da Sé do Algarve e Deputado do Santo Ofício de Évora) nos disse que o ouro que se está ainda vendo entre estas pinturas, he do primeiro que o dito D. Vasco trouxe da India…”.
Refere o eminente historiador A. Filipe Simões em 1871 que, na altura, “ainda aqui existem pessoas que se recordam de ter visto por cima da porta das casas chamadas de Vasco da Gama, pintados e dourados, uns índios, entre árvores e objectos orientais, que se diziam allusivos ao descobrimento da Índia”[4].

6. Segundo Túlio Espanca, dos primitivos edifícios subsistem algumas janelas quinhentistas – uma geminada, de arcos de ferradura e inspiração mudejar – abóbadas nervuradas no interior e uma ala do claustrim, com oratório privativo, recoberto por pinturas murais a fresco, de espírito renascentista. Espanca, por conseguinte, integra o espaço das actuais pinturas sobreviventes, na propriedade dos Gamas, não obstante este claustrim se encontrar numa cota muito superior aos restantes edifícios e ostente, pintado, o brasão da família nobre eborense dos Silveiras Henriques, como mais à frente se verá.

7. Quanto às pinturas actuais, temos que:
Pinturas a fresco de símbolos sagrados e mitológicos, bem ao estilo da mentalidade das épocas de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I.
Friso com pintura essencialmente decorativa: vasos, anjos e folhagem nitidamente ao gosto clássico renascentista, rematado por um friso menor de composição geométrica.
Do friso às abóbadas: coloração homogénea onde os ocres, os castanhos e os vermelhos velhos se impõem. É-nos apresentado um verdadeiro mundo de simbologia animal com animais do bestiário contemporâneo do autor ou autores: duas sereias – mulher-ave e mulher-peixe –, dragões, basiliscos, hidra de sete cabeças, pavão e ganso, mochos e falcões, patos e andorinhas, leopardos e panteras, galos, perdizes, coelhos, raposas e veados, papagaio, além do simbólico pelicano encimando a porta da capela-oratório, e um solitário pastor a tocar gaita-de-foles tendo a atenção de diversos animais…E ainda, nas abóbadas, cordas com nós, em grupos de três…
Diz-nos a investigadora Y. K. Centeno, numa sua obra que:
“(…).
Os animais, representando instintos ou impulsos, por vezes antagónicos, são símbolos das forças (…) que é necessário integrar. O bestiário alquímico é extremamente rico. Cães, lobos, cisnes, veados e unicórnios, caracóis, leões, serpentes, dragões, salamandras, pavões, são alguns dos animais mais representados. Ligam-se aos elementos terra, ar, água e fogo, consoante os casos. (E aludem ainda às cores da obra, ou aos princípios em jogo).
(…).”[5]

Desconhece-se o autor das pinturas assim como persiste o problema da não datação dos frescos. Pintura de síntese e analogia…

Em relação à iconografia apresentada deste riquíssimo e simbólico bestiário, temos 5 grandes agrupamentos, a saber:
· o 1.º – o das garças – essencialmente luminoso, pelos animais que enquadra e olhando à sua simbologia. Conotações com o Paraíso Perdido?…
· o 2.º – o das sereias – truncado, pois a abertura da porta hoje existente fez desaparecer alguns elementos pictóricos. Conotações com a Ilusão e Queda?…
· o 3.º – o do pastor-músico – único antropomorfismo (completo) que podemos ver nos diferentes conjuntos. O Acordar?…
· o 4.º – o da hidra – que, em relação às figuras tanto neste quadro como nos anteriores é a mais imponente e monumental. A Grande Demanda?… A grande luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas…o Fim dos Tempos…
· o 5.º – encontramo-lo a rodear a porta de acesso à capela-oratório e é dominado pelo pelicano crístico[6], símbolo tão caro a El-Rei D. João II. Conotações com o Cristo/O Paraíso Reencontrado (perspectiva messiânica), a Redenção/Salvação…
No interior da capela-oratório podemos ver, frontalmente, a figuração da Sagrada Família. Na parede lateral direita (em relação ao observador), uma representação da Descida da Cruz. Na lateral esquerda podemos observar dois quadros pintados, alusivos à figura de S. Cristóvão e, tudo leva a crer, ao milagre da Missa de S. Gregório.

8. No tecto da capela-oratório, encontra-se muito bem pintado o brasão da família dos Silveiras Henriques, de Évora.
D. Fernão da Silveira, que herdou o ofício de coudel-mor de seu irmão Diogo da Silveira (1464), casando com D. Isabel Henriques, deu origem à linha de Silveiras coudéis-mor de Évora em tempo d’El-Rei D. Afonso V – usou armas esquarteladas de Silveiras (de prata, três faixas de vermelho) e Henriques (torre piramidal com dois leões de pé), segundo interpretação heráldica de D. Luís de Lancastre e Távora, marquês de Abrantes, em 1969.
A origem dos Silveiras Henriques:
· Nuno Martins da Silveira, 4.º Senhor da Casa e Quinta da Silveira, no termo do Redondo (1413), foi armado cavaleiro em Ceuta pelo Infante D. Duarte (1415). Foi embaixador de D. João I a Castela. Foi escrivão da puridade dos Reis D. Duarte e D. Afonso V. Por este último foi-lhe dado o foro de rico-homem. Teve os direitos reais da Mouraria de Évora e o ofício de Coudel-mor. Casou com D. Leonor Gonçalves de Abreu, em 1449 e usou as armas dos Costas (expostas no adro da Sé de Évora).
· Diogo da Silveira, 5.º Senhor da Casa e Quinta da Silveira. Foi 1.º administrador do Morgadio de Évora, e da capela do Senhor Cristo Salvador do Mundo (Convento de S. Domingos). Fidalgo da Casa d’El-Rei D. Afonso V e seu escrivão da puridade. Teve ofício de Coudel-mor e de Vedor-mor das Obras do Reino, tal como seu pai. Morreu numa expedição a África em 1464.
· Fernão da Silveira, que herdou o ofício de Coudel-mor de seu irmão, em 1464. Casando com D. Isabel Henriques, deu origem à linha dos Silveiras Coudéis-mores de Évora em tempo de D. AfonsoV – usou armas esquarteladas de Silveiras e Henriques.
· Nuno Martins da Silveira, o Moço, casando em Évora, a 15 de Agosto de 1482, com D. Filipa de Vilhena (filha do Senhor de Unhão), teve dez filhos, entre os quais António da Silveira que se celebrizou na Índia como Capitão de Dio, aquando do primeiro cerco de Dio.

9. Uma eventual interpretação do significado dos frescos só fará algum sentido se atendermos à existência em Portugal de todo um conjunto de doutrinas joaquimitas, herméticas e neo-platonistas muito em voga naqueles tempos. Recorde-se aqui que D. Afonso V, monarca de cultura ímpar, foi “Astrólogo, músico, alquimista provável, iniciado na cabala talvez pela mão de D. Isaac Abarbanel (1437-1508), seu conselheiro indefectível, almoxarife e rabi-mor de Portugal, Afonso V dedicou-se de igual modo à exegese bíblica e, sobretudo, aos cálculos das cronologias e à epilogística, como se deduz do passo seguinte de uma carta (1503) de Cristobal Colón aos Reis Católicos: ‘Santo Agostinho ensina-nos que o mundo terá fim aos 7000 anos da criação; e tal é também a opinião dos sagrados teólogos e do Cardeal Pedro d’Ailly. Como, segundo o cálculo do rei Afonso de Portugal, passaram já 6845, resta pouco até ao fim do mundo’.”[7]
Como curiosidade e para melhor enquadrarmos a figura de D. Afonso V, o historiador Barbosa Machado atribui-lhe o Tratado de melicia conforme o costume de batalhar dos antigos portugueses e o Discurso em que se mostra que a constellação chamada Cão Celeste constava de vinte e nove estrellas e a menor de duas, este, muito louvado por Zacuto Lusitano no seu De Medicorum principium Historia, impresso em Londres em 1614. Sete anos depois (1621)saíam dos prelos de Thomas Harper, na mesma cidade, os Five Treatises of the Philosophers Stone, apontando-se como autor para dois deles um “Alphonso, King of Portugal”.
Igualmente os Reis D. João II e D. Manuel I se rodearam de uma auréola de mística hermética que ainda hoje se encontra indecifrável pois que a nossa mentalidade moderna ainda não conseguiu a chave para penetrar esses Mistérios de Quatrocentos e de Quinhentos…
Quanto às pinturas em questão, de resto, a mensagem subjacente aos frescos, terá eventualmente que ver com as doutrinas escatológicas, joaquimitas e apocalípticas, por um lado apontando os fins dos tempos mas, por outro, apresentando a Revelação de Cristo e a Doutrina Messiânica da Salvação, principalmente devido à existência fulgurante da hidra (símbolo do mal) em combate com o pavão e com outros animais luminosos…
Os conjuntos dos cordões com nós: o principal facto que nos leva a pensar que todo este bestiário não foi pintado ao acaso, nem como mera decoração, mas que encerra uma mensagem (ou mensagens) cifrada(s), é a existência insistentemente declarada dos cordões com nós, pintados a fresco, tanto nas abóbadas de nervurada gótica do claustrim como na abóbada da capela oratório. Poderemos adiantar a hipótese de estarem directamente relacionadas com os Mistérios Cristãos de finais de Quatrocentos, todavia imbuídos de tal heterodoxia, no que diz respeito aos nós, que fez com que, uns anos mais tarde, a vizinha Inquisição os tivesse mandado caiar…
Vários autores propõem um leitura espiritual para estes denominados laços de amor, no nosso caso simbolizaria a memória do mar navegado e do fazer náutico, da empresa náutica à peregrinação espiritual. E notemos que a família dos Silveiras sempre esteve ligada com a Empresa dos Descobrimentos Portugueses – Nuno Martins da Silveira, recordemos, foi investido Cavaleiro pelas mãos do Infante D. Duarte em Ceuta; D. Diogo da Silveira, que acompanhou D. Afonso V em expedição à África, aí morreu a combater; António da Silveira, ficou célebre como Capitão de Dio; D. Gonçalo da Silveira, jesuíta, celebrizou-se na evangelização da Rodésia; e, finalmente, D. João da Silveira, que perdeu a vida em Alcácer Quibir…
O nó, com uma conotação espiritual de união mística com Deus ou com Cristo, significará compromisso, e simultaneamente, transmissão de conhecimento…uma reconstituição, uma religação com a Unidade perdida… a Palavra Perdida a ser reencontrada através de uma Empresa Espiritual…

R.A., Évora, Janeiro de 1998

Notas:

[1] Livro das Visitações dos oratórios desta cidade de Évora.
[2] In «A Cidade de Évora», N.º 63-64, 1980-81 ver, à pág.135, Rol de apontamentos curiosos, respeitantes à história da Cidade de Évora (1536).
[3] Biblioteca Pública de Évora, Ms.T.2.º cod CXXX/1-9.
[4] Carta a Teixeira de Aragão…
[5] in «A Alquimia do Amor», Lisboa, 1982 (págs.32-33).
[6]Louis Réau, na sua obra «Iconographie de l’Art Chrétien», Paris, 1955-59, contrapõe o pelicano cristológico, o que apresenta o bico virado para a esquerda, ao pelicano não-cristológico, com o bico voltado para a direita.
[7] Conceição Silva, Os Painéis do Museu das Janelas Verdes, Lisboa, 1981 (à pág.60).

sábado, 28 de março de 2009


ÉVORA é aquilo que é...

ÉVORA será aquilo que ela própria quiser ser...
Évora é um organismo vivo, tem um querer, tem um sentir e uma vontade muito próprios que foram sendo construídos ao longo de milénios.
Évora detém uma egrégora telúrica, de experiência feita e vivida, que resistiu identitariamente ao longo dos séculos e obrigou os seus habitantes a adaptarem-se, a organizarem-se segundo padrões genésicos pré-definidos e independentes das pequenas vontades dos homens comuns.
Évora marca indelevelmente todos quantos a ela se ligam, por nascimento ou por opção, por obrigação ou involuntariamente, como diriam os do V Império: “por Missão ou por castigo”!
Évora é uma Cidade por excelência axial, vertical tocando-nos a cada um de nós na profundidade do espelho. Contudo muitas vezes a sentimos pendular, detentora de um movimento virtual formado pela relação do nível/horizontal com o esquadro/vertical.
Évora possui vários centros e todos eles comunicando entre si, independentemente do espaço e do tempo em que se manifestem, cujas formas serpentinas e essenciais fazem de Évora uma mater abarcante, soberana e simultaneamente protectora e destruidora.
“A morte é a dissolução necessária das combinações imperfeitas...”, dizia Levi . A destruição é apanágio da divindade tal como a criação, tal como a perfeição. E Évora pertence a um tempo e a um espaço fora das lógicas comezinhas dos seus figurantes mortais.
Não tenteis compreender Évora dentro dos vossos intelectos estreitos e condicionados. Não tenteis dominar Évora porque para a dominar é preciso compreendê-la na sua profundidade, é preciso destrinçar as suas diferentes linguagens ocultas: a linguagem dos pássaros e a linguagem do vento; a linguagem do touro na delimitação sagrada da terra ancestral e a linguagem das sereias na ondulação das árvores centenares; a linguagem dos anjos escrita no fogo cristalizado das pedras erguidas em saudação e a linguagem dos homens na elaboração da síntese possível das diferentes mensagens de libertação.
Évora tem coração e sentir, tem olho de vigília e de pensamento, tem útero protector com a possibilidade de criação, mas igualmente tem mão de ferro, de espada, para purificar e afastar a mente e o desejo profanos do sanctum santorum que em si encerra e que paradoxalmente quer partilhar de forma generosa com aqueles que souberem e ousarem escutar a melodia do som sem som que desde remotas antiguidades sempre guiou e guiará o peregrino incansável, o buscador, o homem liberto das peias do destino.

R.A. – texto em construção
Ramo “Boa-Vontade”, Évora, Novembro de 2005

quarta-feira, 25 de março de 2009


pintura de Nicolas Roerich

TRADIÇÕES DE ÉVORA - A CIVILIZAÇÃO MEGALÍTICA DO ALENTEJO

“As nações todas são mistérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.”
F. Pessoa

Não sendo arqueólogo, e longe de mim a ideia de meter a foice em seara alheia, gostaria todavia de partilhar um conjunto de ideias por sua vez induzidas por leituras de diversos autores tais como Pinharanda Gomes, Dalila Pereira da Costa, Mircea Eliade, António Quadros, entre outros, que me deram alguns instrumentos de observação/reflexão para olhar, de uma certa maneira, aquilo a que nos habituámos a nomear por Civilização Megalítica Alentejana.
Na falta de textos ou documentos, ante uma Tradição perdida nos confins dos tempos, não há outro recurso senão adivinhá-la... Daí a importância da busca de arquétipos, que fundamentam a Existência, num dado local, de um Centro do Mundo, de um espaço e de um tempo sagrados e ou sacralizados, sempiternos e autenticamente transformantes. Da Acrópole Eborense, com o Templo Romano, não esquecendo a eventual Mesquita-Catedral e a Sé Cristã, ao olharmos o Ocidente, estaremos a situar-nos rectilineamente com os Almendres, isto é, com o cromeleque e com o menhir assim conhecidos e situados na Herdade com o mesmo nome.
Encontramo-nos perante Símbolos de Pedra, porém atentemos que por detrás do Símbolo permanece, perene e inato, o Mistério da Realidade.
Quando falamos de Civilização Megalítica às gentes do termo de Évora imediatamente lhes ocorrem três ou quatro arqueosítios de importância fundamental para a compreensão da Totalidade desta terra eborense: Almendres, Portela de Mogos e Vale de Maria, com os seus cromeleques; Valverde e a sua monumental e única Anta Grande do Zambujeiro, entre dezenas e dezenas de outros de importância complementar.
Se os dolmens ou antas são construções dedicadas a uma função eminentemente funerária – tendo em vista a celebração do culto dos mortos, dos antepassados –, oferecendo aos arqueólogos grandes quantidades de espólio, os menhires e os cromeleques, apresentam-se como formas mais austeras, mais simples, suportando interpretações funcionais diversas, por sua vez resultantes da superestrutura religiosa das sociedades que os erigiram, ao longo de centenas ou mesmo de milhares de anos!... Complexificando-os, completando-os, adaptando-os às emergentes necessidades e aspirações religiosas e humanas – talvez naqueles tempos coincidentes – dos diferentes momentos evolutivos, civilizacionais e culturais. No entanto, é hoje geralmente aceite que estes últimos monumentos se encontram conotados com diferentes funções propiciatórias, humanas, animais e agrícolas, relacionadas com cultos e observações astrais, nomeadamente do Sol e da Lua.
No que diz respeito aos núcleos de megálitos alentejanos, constata-se a tendência evolutiva de penetração do homem do Neolítico, da orla marítima para o interior, até ao rio Guadiana. Acompanhando os caminhos naturais abertos ao longo da estruturação geológica da paisagem pré-histórica alentejana, nomeadamente através do desbravamento e posterior utilização dos festos, isto é, dos vales das bacias hidrográficas.
O homem vai avançando, do litoral para o interior, e simultaneamente, vai apropriando e sacralizando o espaço, ora pela erecção de menhires ora pela construção de cromeleques. Estamos perante uma manifestação da relação do homem com a Tellus Mater – numa re-ligação telúrica...– periodicamente renovada, pois que o povoamento destas regiões remontam ao longínquo paleolítico de que as inscrições e gravações da Gruta do Escoural dão testemunho. Assim, os menhires e os cromeleques teriam funções de carácter simbólico, enquanto elementos da organização religiosa do espaço, formando os assim denominados axis mundi, os centros do mundo. Esta organização estrutural ordenava o caos original, sacralizava-o, transformava-o em Ordem (ORDO AB CHAO) – transformava-o num Cosmos. Estaremos, em última análise, perante um ritual de fundação, de ocupação humana da região, conferindo-lhe características de habitabilidade. Assim, os menhires, e por extensão os cromeleques, constituir-se-ão enquanto elementos humanizadores do espaço, originando a sua apropriação, identificação, cosmização.
Abrindo aqui um parêntesis: e que dizer quando os navegadores portugueses das Descobertas de Quinhentos erigiam nas novas terras um Padrão de Descoberta? Não teria este a mesma função daquela que o homem desbravador do Neolítico conferia ao menhir? A sacralização do espaço dominado para que este se torne propício a ser habitado.
Poderemos olhar os sinais deixados há milhares e milhares de anos e tentar balbuciar uma leitura a fim de nos ligarmos intuitivamente àquela distante humanidade que procedeu à construção da Obra megalítica. Até porque, para a compreensão da nossa realidade, da nossa Alma Portuguesa, teremos necessariamente que descer aos fundos abissais do seu inconsciente colectivo, dos seus mitos e dos seus símbolos regeneradores.
Urge abordar estes monumentos – os cromeleques, com os seus menhires decorados com altos e baixos relevos, representando espirais, labirintos, ondas de água, círculos, báculos, ferraduras, crescentes... – e analogicamente imaginar, criadoramente, como eles eventualmente teriam sido vistos e usados por aquela primeva humanidade, e por ela e para ela sempre teriam agido: como CENTROS DE FORÇA CÓSMICA sagrada e sua activação e propagação pelos homens, como animadores duma força única: a VIDA.
Épocas de profundas religiosidades, terão gerado uma humanidade imbuída de um profundo sentido do sagrado, isto se compararmos a nossa actual visão humana redutora e de todo dessacralizada, completamente profana, até quando se diz seguidora de uma ou outra religião. Os homens, naquelas distantes épocas, e por aquilo que nos legaram, seriam detentores do CONHECIMENTO porque ainda se encontravam ligados e assumiam uma participação activa da força do Cosmos, fonte e raiz primordial de toda a Vida.
Será essa captação, essa participação e irradiação da força do Cosmos, testemunhada por esses símbolos e signos, em monumentos e objectos culturais/cultuais, que chegou até nós, através dos milénios? Serão estes a expressão duma única e una Sabedoria Universal, a da Tradição-Sabedoria das Idades?
Desde as mais remotas idades tais locais – onde o Sagrado se manifesta através do gesto e da manipulação humana – foram usados para fins cerimoniais de re-ligação, tendo em vista os Mistérios internos da Humanidade, em última análise tendo em vista uma Iniciação...
Desde sempre a Humanidade tentou alcançar a Perfeição, a Sageza, tentou realizar a transposição da Terra para o Céu – o Paraíso Perdido –, e simbolicamente, transitar da morte para a imortalidade, encorajada, fortalecida e mesmo auxiliada por estas pedras vitais.
A pedra caracteriza o Imutável, tipifica a Ordem Antiga das Idades, reproduzida e manifestada pela autêntica Tradição, aquela que canta a Vida, que orienta para o Cosmos, a que aponta a re-ligação com o Todo...
Trabalhando a pedra, orientando a pedra, desde os círculos e os alinhamentos megalíticos pré-históricos, os quais produziriam certo tipo de energia cósmica para auxiliar o homem dessas épocas longínquas na sua luta diária pela existência, até à elevação das Catedrais Góticas das nossa eras – as correntes espirituais da Terra, da Água, do Ar e do Fogo, continuam a tocar o homem quando ele se apresenta em tais locais sagrados, com reverência, humildade e receptividade.
Então poderá ele elevar-se, rapidamente, acordar para as coisas, para a Realidade que o circunda mas que nem sempre consegue compreender.
Estaremos, no sítio dos Almendres, em presença de uma Obra dos primeiros trabalhadores da Pedra? As ferramentas, no fundo, são as mesmas: o malho e o cinzel, assim como o objectivo: a ligação ao Eterno... da pedra bruta à Pedra Cúbica, da ignorância à Perfeição...
Eis-nos perante uma manifestação primeva da Arte Real da Construção.
O Grande Ritual consiste em integrar o nosso centro vital no Grande Centro Cosmogónico/Cósmico da Vida Universal, cujo fulcro interior é o Silêncio...
Estamos perante um exemplo concreto em que a palavra perdida nos impossibilita realizar a compreensão da totalidade deste Centro do Mundo.
Resta-nos re-iniciar continuamente a Demanda...

Rui Arimateia
Évora, Fevereiro de 2000
Publicado in PARADOXIAS 1

sexta-feira, 20 de março de 2009

EvoraOculta

TRADIÇÕES
NA
CATEDRAL DE SANTA MARIA DE ÉVORA



A Sé de Évora foi fundada nos finais do Século XII, em estilo arquitectónico de transição Românico-gótico, apresentando, contudo, um Pórtico e uns Claustros já do Século XIV.

Por toda a Catedral, desde as naves até ao zimbório, desde o coro alto até aos claustros, se respira e se sente uma atmosfera e um ambiente verdadeiramente místico e inspirador. Catedral de renome medieval, cujos “milagres” de Santa Maria foram “ensoados” e cantados no Século XIII pelo Rei Castelhano Afonso X - O Sábio.

Ainda hoje o culto à Senhora se mantém vivo, principalmente com a invocação da Senhora do Ó, da Expectação ou do Parto, cujas imagens escultóricas poderemos admirar, tanto na nave central da Igreja como na Capela do Bispo D. Pedro ou Capela do Fundador, nos Claustros.

Principalmente em relação à Senhora do Ó da nave central, também denominada por Senhora do Anjo, as parturientes continuam modernamente a solicitar-Lhe os favores de intercessão divina para terem uma “boa hora”, assim, frequentemente se desloca ao altar desta Senhora um familiar a oferecer uma esmola, azeite, uma vela, uma oração… durante os momentos críticos do parto. Igualmente solicitam ao sacristão que toque o Sino da Senhora do Anjo, cujas nove badaladas são bom augúrio para que o parto aconteça sem problemas e a mãe possa vir dentro em breve “oferecer” a criança recém-nascida a Santa Maria, colocando-a em cima do Altar num gesto mais que simbólico, antes de cumplicidade.

A Virgem do Ó, representação por excelência do Eterno Feminino. Olhar para aquela imagem é recordar, é tornar a viver épocas longínquas, para além do seu próprio nascimento. Para além da própria cadeia de nascimentos e mortes. A Virgem confere a Paz, lembra-nos a nossa origem, quiçá divina!… e a nossa missão de retorno à casa do Pai… A Senhora, Estrela do Céu, Azul, com o ventre rubro do fruto divino da Sabedoria das Idades… O Centro do Mundo, o Mito do Eterno Retorno ou do Eterno Presente, e da constante renovação da Vida através do AMOR.
















Senhora do Anjo na nave central da Sé de Évora


DOCUMENTOS:

TITULO I([1])
Da historia da antiga Imagem de Nossa Senhora da Assumpção, da Santa Sé de Evora.


Resgatada a antiga Cidade de Evora, do iniquo poder dos Mouros, & chegando a tomar posse dela o Santo Rey Dom Affonso Henriques, mandou logo purificar a Mesquita mayor, & dedicalla à Soberana Rainha dos Anjos Maria Santissima, (em quanto lhe não edificava hum novo Templo) collocando nella a sua Santissima Imagem, (que me persuado ser a mesma que hoje veneramos no meyo do retabolo do seu Altar mayor.) E pela grande devoção que o piedoso, & devoto Rey lhe tomou, lhe dedicou tambem a mesma Cidade, para que inteyramente fosse Maria Santissima a Senhora daquela importantissima praça do seu Reyno, & a sua Protectora. E para que como sua a defendesse dos inimigos da Fé de seu Santissimo Filho JESUS Christo.

A esta veneranda Imagem recorrião todos os moradores daquella Cidade, a buscar o remedio em todas as suas necessidades, tribulaçoens, & trabalhos, & em todos experimentavão sempre na sua piedosa intercessão milagrosos favores. Desta Senhora dizia Santo Epifanio, que era a medianeyra do Ceo, & da terra, porque o seu Officio he sempre interceder, & rogar por todos: Mediatrix Coeli, & terrae, quae unionem naturaliter peregit. E Richarco de Santo Victor a acclama por mediadora, & pelo unico meyo que ha entre a humana, & Divina natureza: Mediatrix, & media inter humana, & Divina. E o Abbade Absalam diz, que a Senhora era a medianeyra dos peccadores, & a que sempre advoga por elles a seu Santissimo Filho, o qual quando mais irado contra eles, à sua vista, & aos seus rogos, perde o enfado, mitiga a ira, suspende o castigo, & troca a sanha em piedade, & misericordia, suspendendo não só os rigores da sua justiça, mas mostrando-se benigno Pay nos effeytos da sua clemencia. Bem se vio isto no sucesso, que agora referiremos.

No tempo d’ElRey Dom Fernando o I, sendo Bispo da Cidade de Evora, Dom Martinho Gil de Brito, em o anno de 1372, sobreveyo àquella Cidade, em 24 do mez de Mayo, hum repentino temporal, tão chuvoso, & importuno pelas continuas chuvas, que perseverando por muytos dias tinha assolado as searas todas, & se vião os pobres lavradores sem esperança alguma de poderem recolher alguns grãos de trigo. Nesta grande afflição lamentando todos por castigo do Ceo aquella grande calamidade, tratàrão de recorrer ao piedoso asylo da sua Protectora, & Advogada Maria Santissima a Senhora da Assumpção, para que aplacasse como misericordiosa medianeyra entre Deos, & os homens, & como piedosa Mãy delles, a justa indignação de seu Santissimo Filho. Para isto ordenou o Bispo Dom Martinho huma procissão de preces, para que a Senhora implorasse de seu clementissimo Filho a conservação dos frutos, que totalmente vião perdidos-. A este fim se congregou o Clero, & Religioens, & o povo na Igreja Cathedral, não cessando de chover, como costumava. Accenderão doze Cirios no Altar mòr diante da Santissima Imagem da Senhora, enquanto se prégava, & dizia Missa. Era o Prégador Frey Affonso Abelho, Doutor em a Sagrada Religião Carmelitana; & o Conego que dizia a Missa João Domingues. E como todos postrados por terra cantassem com muytas lagrimas o offertorio, de que então usava a Igreja: Recordare Virgo Mater, dum steteris inconspectu Dei, ut loquaris pro nobis bona, & ut advertus indignationem ejus à nobis; & o Prégador intimasse a sua doutrina com muyto espirito, (que era homem muyto virtuoso) se começou a commover o auditorio desorte à verdadeyra contrição, & penitencia, que ainda não tinha acabado o Sermão, quando cessou de chover, & se vio o ar serenado, com que todos rendèrão a Deos as graças, entoando em altas vozes com grande alegria hymnos, & canticos de louvor à piedosa Rainha dos Anjos, que lhes havia alcançado a serenidade; & foi de modo que teve lugar a procissão de sahir fóra, & de se recolher com sol. Depois para comprovação do milagre, se achàrão os cirios (ardendo tanto tempo) com dobrado peso, que depois de antes tinhão.

O Santo Prelado Dom Martinho, entendendo que não fora isto acaso, mas favor muito especial da sempiterna benignidade, & da piedade de Maria Santissima, obrigou ao seu Cabido, & ao Senado daquella Cidade, a fazerem voto se solemnizarem todos os annos este milagre com procissão geral; mostrando-se gratos por tão grande beneficio, alcançado pela intercessão da Rainha dos Anjos, no que perseveràrão atè o presente tempo. E debayxo do Altar recolhèrão os doze cirios, para se eternizar a memoria desta Soberana maravilha da Mãy de Deos. Celebra-se este milagre, na mesma Sé, com Officio proprio em a terceyra Dominga post Pentecosten, ainda que o milagre succedeo a 4 de Mayo.

O Bispo Dom Pedro de Noronha, Neto d’Erey Dom Fernando, agregou a esta Festa a da Transfiguração da Senhora (antiquissima naquella Sé,) & porisso se canta o Evangelho: Stabat juxta Crucem, & c. concedendo quarenta dias de Indulgencia a todos os fieis, que assistirem às primeyras vesporas, & outros tantos à Missa. O Provedor do Senado, por cuja conta correo a cera, se chamava Rodrigo Toscano. Com esta miudeza se refere na reza desta Festividade a maravilha succedida, que compoz o Mestre Andrè de Rezende no anno de 1548. & a traz o caderno, que mandou imprimir no anno de 1630 o Arcebispo Dom Joseph de Mello. Tambem a traz o Martyrologio Portuguez, pag. 17 & o Padre Frey Diogo do Rosario no seu Flos Santorum, pag. 470. Cardozo tom.3, pag. 702. Ferreolo Locrio in Maria Augusta 1.3.c.3. A Imagem da Senhora he pintada em taboa, & fica no meyo do retabolo por cima do banco delle. Està sentada debayxo de hum docel com o Menino Deos nos braços cercada de muytos Anjos, que com instrumentos representão festejar a Senhora, & o Soberano Menino; & atè no sitial do docel se vem quatro, tudo em excellente mão, ainda que mostra a pintura muyta antiguidade. A Senhora mostra na proporção ser mayos do natural, mas he de soberana, & rara fermosura. Tem em cima do retabolo outro quadro, em que se vè outra Imagem da Senhora, que se reconhece ser mais moderna, & sem duvida se poria alli depois que ElRey Dom João o I ordenou, que as Cathedrais se dedicassem todas à Assumpção da Senhora; & a Sagrada Imagem assim o representa, porque està com as mãos levantadas, na fórma, que se costumão pintar em o Mysterio de sua Assumpção. E assim tenho por sem dúvida, que esta Soberana Imagem, que està assentada, he a primeira, que se collocou no retabolo. E quando a não mandasse fazer ElRey Dom Affonso Henriques, fa-lo-ia o Bispo Dom Payo, que foy o terceiro depois da sua restauração, vivendo ainda ElRey Dom Affonso. Porque este Santo Prelado foi o que augmentot, & aperfeyçoou as obras daquella Igreja.

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TITULO II ([2])
Da milagrosa Imagem de Nossa Senhora do Anjo, ou da Encarnação

Na mesma Igreja Cathedral da Cidade de Evora, se vè em a nave do meyo hum rico, & precioso tabernaculo, ou Capella encostada a hum daquelles grandes pilares, ou pés direytos, que sustentão aquella grande maquina da obra daquelle espaçoso, & rico Templo, de talha dourada, obra magestosa, & de valente architectura, que mandou fazer o Illustrissimo Senhor Dom Frey Luis da Silva, aonde se reconhece a grandez do seu coração, porque todas as obras que fez são ricas, & magestosas. Neste Tabernáculo he buscada com pia, & fervorosa devoção do povo de Evora, a milagrosa Imagem de Nossa Senhor do Anjo, ou da Encarnação, & principalmente das mulheres, porque invocando-a nos seus trabalhosos partos, o feliz successo, que nelles experimentam, lhes faz conhecer com muyta evidencia, o quanto esta piedosa Senhora lhe he propicia. Os Conegos daquella Cathedral a venerão muyto, & a servem com grande devoção; & assim ordinariamente se encontrão ajoelhados ante a sua magestosa presença; e pela grande devoção, que sempre se teve com esta Senhora, lhe vão cantar todos os Sabbados em Communidade a sua Salve. Em tempos de necessidades, & apertos publicos, a ella he que recorrem, para que lhes implore de Deos os bons despachos em as afflições, & trabalhos que padece o povo.

Alguns querem que no Altar da Senhora do Anjo se cantasse a Missa em aquella grande callamidade de continuadas chuvas, em que por todo o Alem Tejo se viaõ perdidas as searas, que estavão jà muytas segadas; & vio o milagre da cera. O fundamento que tem he é grande; porque sempre teve aquella Cidade grande fé, & devoção com esta milagrosa Senhora, & nos seus mayores trabalhos sempre recorreo a ella. No tempo do Illustrissimo Senhor Dom Diogo de Sousa, na occasião do Synodo que celebrou, pedirão os Bispos do Algarve, & de Elvas seus suffraganeos, se visse se existiam ainda debaixo do Altar mayor os doze cirios, de que se faz menção na Festa da cera. Fez-se toda a diligencia, & nada se pode achar. Tambem se começou a fazer em o Altar da Senhora do Anjo, & como se não podia fazer sem grande desmancho, se suspendeo a diligencia.

Depois mandando o Illustrissimo Senhor Dom Frey Luis da Silva fazer o magestoso tabernaculo em que hoje vemos a Senhora, se achou em huma pedra, que servia de baze à peanha da Senhora, que estavão abertas aquellas palavras da Antiphona, que fica referida: Recordare Mater, dum steteris, & c. com as quaes palavras se confirmarão então os que as virão, em que a Missa se celebràra no Altar da Senhora do Anjo, & que debayxo delle se depositarião os cirios, de que hoje se não sabe dar razão, pois nem neste Altar se achou rasto delles. Porèm ainda fica em pé a opinião primeyra, em que no Altar mòr se diria a Missa, por ser lugar mais commodo para isso.

A Imagem da Senhora, he certo que he antiquissima; he formada em pedra, mas de grande fermosura; mostra estar de joelhos, & com a mão esquerda no peyto; mostra a sua suspensão no mysterio, que o Anjo lhe annunciava; a direyta tem levantada, que confirma a mesma admiração, em que a Senhora se vio. Ficalhe o Archanjo São Gabriel defronte, em o pedestal opposto ao mesmo tabernaculo, tambem de vulto, & da mesma materia. A imagem da Senhora he da natural proporção, & aindaque he de escultura, a adornão de vestidos muyto preciosos. Pelo Natal do Senhor lhe accomodão em os braços huma Imagem do Menino JESUS. Està hoje com muyto mayor veneração, & precioso culto de ornatos, & tem ricos cortinados com que está cuberta: tudo isto, com a riqueza, & Aceyo do seu Altar se deve à generosidade do coração do Illustrissimo Senhor Arcebispo Dom Frey Luis da Silva, Religioso da Ordem da Santissima Trindade.
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CANTIGA 322
Como Santa Maria guariu úu ome en Evora que ouvera de morrer dun osso que se ll’atravessara na garganta.
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada
…………………………………………………….

En Evora foi un ome / que ena Virgen fiava
muyto e que cada dia / a ela s’acomendava;
e aveo-ll’húa noite / en sa casa, u céava
que ouver’a seer morto / a desora, sen tardada.
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada

Ca ele gran comedor era / e metia os bocados
muit’ameude na boca, / grandes e desmesurados;
e aa noite céava / dúus cóellos assados,
atravessou-xe-ll’un osso / na garganta, e sarrada

A ouve de tal maneira / que cuidou ser afogado;
Ca aquel osso ll’avia / o gorgomel atapado
assi que en pouca d’ora / o ouve tan fort’inchado,
que folego non podia / coller nen ar falar nada.
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada

Assi esteve gran tempo / que sol comer non podia
nen bever nengúa cousa / senon cald’ou agua fria,
fasta que chegou a festa / da Virgen Santa Maria,
que cae no mes d’Agosto, / quand ela foi coroáda.

Enton todos seus paretentes / e amigos o fillaron
e aa egreja desta / nobre Sennor o levaron,
e téendo-o por morto / ant’o altar o deitaron.
E tev’y aquela noite; / e contra a madrugada,
Quand’a missa ja dizia / filló-o tosse tan forte,
que todos cuidaron logo / que era chegad’a morte.
Mas a Virgen gloriosa, / que dos cuitados cóorte
éste, non quis que morresse / ali daquela vegada,
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada

Mas guisou que en tossindo / lhe fez deitar mantéente
aquel osso pela boca, / ante toda quanta gentey estava;
e tan toste / loores de bóa mente
deron a Santa Maria, / a Madre de Deus amada.
A Virgen, que e Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada

Cantigas de Santa Maria, escritas em galaico-português e postas em música (ensoadas) sob a égide do rei D. Afonso X, o Sábio. Compostas na segunda metade do Século XIII. Afonso X terá feito uma das primeiras recolhas de tradições – com suporte manuscrito e oralizante – de que há memória. O que para nós, eborenses, não deixa de ser interessante é o facto dele descrever na Cantiga CCCXXXVIII a existência da um volumoso Livro de Milagres em Santa Maria de Évora:

«foron, aa grand eigreja
que é de Santa Maria,
ú gran vertude sobeja
mostra de sanar enfermos,
ond’an feitt’un gran volume.»

Assim, refere o investigador Mário Martins, S. J., que «Em Évora, na Igreja de S.ta Maria, havia um Livro de Milagres, bastante grosso. Curavam-se muitos enfermos, ardian muitas candeas, e foi lá que S.ta Maria deu vista a um cego.»[3]


Notas:
[1] In “Santuário Mariano e Historia das Imagens milagrosas de N. Senhora”, Tomo Sexto, por Fr. Agostinho de Santa Maria, Lisboa Occidental, Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, Anno de 1716.
[2] Fr. Agostinho de Santa Maria, Op. Cit.
[3] in “Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média”, «Revista Portuguesa de História», tomo V, Instituto de estudos Históricos Dr. António de Vasconcellos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1951.