TRADIÇÕES
NA
CATEDRAL DE SANTA MARIA DE ÉVORA
NA
CATEDRAL DE SANTA MARIA DE ÉVORA
A Sé de Évora foi fundada nos finais do Século XII, em estilo arquitectónico de transição Românico-gótico, apresentando, contudo, um Pórtico e uns Claustros já do Século XIV.
Por toda a Catedral, desde as naves até ao zimbório, desde o coro alto até aos claustros, se respira e se sente uma atmosfera e um ambiente verdadeiramente místico e inspirador. Catedral de renome medieval, cujos “milagres” de Santa Maria foram “ensoados” e cantados no Século XIII pelo Rei Castelhano Afonso X - O Sábio.
Ainda hoje o culto à Senhora se mantém vivo, principalmente com a invocação da Senhora do Ó, da Expectação ou do Parto, cujas imagens escultóricas poderemos admirar, tanto na nave central da Igreja como na Capela do Bispo D. Pedro ou Capela do Fundador, nos Claustros.
Principalmente em relação à Senhora do Ó da nave central, também denominada por Senhora do Anjo, as parturientes continuam modernamente a solicitar-Lhe os favores de intercessão divina para terem uma “boa hora”, assim, frequentemente se desloca ao altar desta Senhora um familiar a oferecer uma esmola, azeite, uma vela, uma oração… durante os momentos críticos do parto. Igualmente solicitam ao sacristão que toque o Sino da Senhora do Anjo, cujas nove badaladas são bom augúrio para que o parto aconteça sem problemas e a mãe possa vir dentro em breve “oferecer” a criança recém-nascida a Santa Maria, colocando-a em cima do Altar num gesto mais que simbólico, antes de cumplicidade.
A Virgem do Ó, representação por excelência do Eterno Feminino. Olhar para aquela imagem é recordar, é tornar a viver épocas longínquas, para além do seu próprio nascimento. Para além da própria cadeia de nascimentos e mortes. A Virgem confere a Paz, lembra-nos a nossa origem, quiçá divina!… e a nossa missão de retorno à casa do Pai… A Senhora, Estrela do Céu, Azul, com o ventre rubro do fruto divino da Sabedoria das Idades… O Centro do Mundo, o Mito do Eterno Retorno ou do Eterno Presente, e da constante renovação da Vida através do AMOR.
Senhora do Anjo na nave central da Sé de Évora
DOCUMENTOS:
TITULO I([1])
Da historia da antiga Imagem de Nossa Senhora da Assumpção, da Santa Sé de Evora.
Resgatada a antiga Cidade de Evora, do iniquo poder dos Mouros, & chegando a tomar posse dela o Santo Rey Dom Affonso Henriques, mandou logo purificar a Mesquita mayor, & dedicalla à Soberana Rainha dos Anjos Maria Santissima, (em quanto lhe não edificava hum novo Templo) collocando nella a sua Santissima Imagem, (que me persuado ser a mesma que hoje veneramos no meyo do retabolo do seu Altar mayor.) E pela grande devoção que o piedoso, & devoto Rey lhe tomou, lhe dedicou tambem a mesma Cidade, para que inteyramente fosse Maria Santissima a Senhora daquela importantissima praça do seu Reyno, & a sua Protectora. E para que como sua a defendesse dos inimigos da Fé de seu Santissimo Filho JESUS Christo.
Resgatada a antiga Cidade de Evora, do iniquo poder dos Mouros, & chegando a tomar posse dela o Santo Rey Dom Affonso Henriques, mandou logo purificar a Mesquita mayor, & dedicalla à Soberana Rainha dos Anjos Maria Santissima, (em quanto lhe não edificava hum novo Templo) collocando nella a sua Santissima Imagem, (que me persuado ser a mesma que hoje veneramos no meyo do retabolo do seu Altar mayor.) E pela grande devoção que o piedoso, & devoto Rey lhe tomou, lhe dedicou tambem a mesma Cidade, para que inteyramente fosse Maria Santissima a Senhora daquela importantissima praça do seu Reyno, & a sua Protectora. E para que como sua a defendesse dos inimigos da Fé de seu Santissimo Filho JESUS Christo.
A esta veneranda Imagem recorrião todos os moradores daquella Cidade, a buscar o remedio em todas as suas necessidades, tribulaçoens, & trabalhos, & em todos experimentavão sempre na sua piedosa intercessão milagrosos favores. Desta Senhora dizia Santo Epifanio, que era a medianeyra do Ceo, & da terra, porque o seu Officio he sempre interceder, & rogar por todos: Mediatrix Coeli, & terrae, quae unionem naturaliter peregit. E Richarco de Santo Victor a acclama por mediadora, & pelo unico meyo que ha entre a humana, & Divina natureza: Mediatrix, & media inter humana, & Divina. E o Abbade Absalam diz, que a Senhora era a medianeyra dos peccadores, & a que sempre advoga por elles a seu Santissimo Filho, o qual quando mais irado contra eles, à sua vista, & aos seus rogos, perde o enfado, mitiga a ira, suspende o castigo, & troca a sanha em piedade, & misericordia, suspendendo não só os rigores da sua justiça, mas mostrando-se benigno Pay nos effeytos da sua clemencia. Bem se vio isto no sucesso, que agora referiremos.
No tempo d’ElRey Dom Fernando o I, sendo Bispo da Cidade de Evora, Dom Martinho Gil de Brito, em o anno de 1372, sobreveyo àquella Cidade, em 24 do mez de Mayo, hum repentino temporal, tão chuvoso, & importuno pelas continuas chuvas, que perseverando por muytos dias tinha assolado as searas todas, & se vião os pobres lavradores sem esperança alguma de poderem recolher alguns grãos de trigo. Nesta grande afflição lamentando todos por castigo do Ceo aquella grande calamidade, tratàrão de recorrer ao piedoso asylo da sua Protectora, & Advogada Maria Santissima a Senhora da Assumpção, para que aplacasse como misericordiosa medianeyra entre Deos, & os homens, & como piedosa Mãy delles, a justa indignação de seu Santissimo Filho. Para isto ordenou o Bispo Dom Martinho huma procissão de preces, para que a Senhora implorasse de seu clementissimo Filho a conservação dos frutos, que totalmente vião perdidos-. A este fim se congregou o Clero, & Religioens, & o povo na Igreja Cathedral, não cessando de chover, como costumava. Accenderão doze Cirios no Altar mòr diante da Santissima Imagem da Senhora, enquanto se prégava, & dizia Missa. Era o Prégador Frey Affonso Abelho, Doutor em a Sagrada Religião Carmelitana; & o Conego que dizia a Missa João Domingues. E como todos postrados por terra cantassem com muytas lagrimas o offertorio, de que então usava a Igreja: Recordare Virgo Mater, dum steteris inconspectu Dei, ut loquaris pro nobis bona, & ut advertus indignationem ejus à nobis; & o Prégador intimasse a sua doutrina com muyto espirito, (que era homem muyto virtuoso) se começou a commover o auditorio desorte à verdadeyra contrição, & penitencia, que ainda não tinha acabado o Sermão, quando cessou de chover, & se vio o ar serenado, com que todos rendèrão a Deos as graças, entoando em altas vozes com grande alegria hymnos, & canticos de louvor à piedosa Rainha dos Anjos, que lhes havia alcançado a serenidade; & foi de modo que teve lugar a procissão de sahir fóra, & de se recolher com sol. Depois para comprovação do milagre, se achàrão os cirios (ardendo tanto tempo) com dobrado peso, que depois de antes tinhão.
O Santo Prelado Dom Martinho, entendendo que não fora isto acaso, mas favor muito especial da sempiterna benignidade, & da piedade de Maria Santissima, obrigou ao seu Cabido, & ao Senado daquella Cidade, a fazerem voto se solemnizarem todos os annos este milagre com procissão geral; mostrando-se gratos por tão grande beneficio, alcançado pela intercessão da Rainha dos Anjos, no que perseveràrão atè o presente tempo. E debayxo do Altar recolhèrão os doze cirios, para se eternizar a memoria desta Soberana maravilha da Mãy de Deos. Celebra-se este milagre, na mesma Sé, com Officio proprio em a terceyra Dominga post Pentecosten, ainda que o milagre succedeo a 4 de Mayo.
O Bispo Dom Pedro de Noronha, Neto d’Erey Dom Fernando, agregou a esta Festa a da Transfiguração da Senhora (antiquissima naquella Sé,) & porisso se canta o Evangelho: Stabat juxta Crucem, & c. concedendo quarenta dias de Indulgencia a todos os fieis, que assistirem às primeyras vesporas, & outros tantos à Missa. O Provedor do Senado, por cuja conta correo a cera, se chamava Rodrigo Toscano. Com esta miudeza se refere na reza desta Festividade a maravilha succedida, que compoz o Mestre Andrè de Rezende no anno de 1548. & a traz o caderno, que mandou imprimir no anno de 1630 o Arcebispo Dom Joseph de Mello. Tambem a traz o Martyrologio Portuguez, pag. 17 & o Padre Frey Diogo do Rosario no seu Flos Santorum, pag. 470. Cardozo tom.3, pag. 702. Ferreolo Locrio in Maria Augusta 1.3.c.3. A Imagem da Senhora he pintada em taboa, & fica no meyo do retabolo por cima do banco delle. Està sentada debayxo de hum docel com o Menino Deos nos braços cercada de muytos Anjos, que com instrumentos representão festejar a Senhora, & o Soberano Menino; & atè no sitial do docel se vem quatro, tudo em excellente mão, ainda que mostra a pintura muyta antiguidade. A Senhora mostra na proporção ser mayos do natural, mas he de soberana, & rara fermosura. Tem em cima do retabolo outro quadro, em que se vè outra Imagem da Senhora, que se reconhece ser mais moderna, & sem duvida se poria alli depois que ElRey Dom João o I ordenou, que as Cathedrais se dedicassem todas à Assumpção da Senhora; & a Sagrada Imagem assim o representa, porque està com as mãos levantadas, na fórma, que se costumão pintar em o Mysterio de sua Assumpção. E assim tenho por sem dúvida, que esta Soberana Imagem, que està assentada, he a primeira, que se collocou no retabolo. E quando a não mandasse fazer ElRey Dom Affonso Henriques, fa-lo-ia o Bispo Dom Payo, que foy o terceiro depois da sua restauração, vivendo ainda ElRey Dom Affonso. Porque este Santo Prelado foi o que augmentot, & aperfeyçoou as obras daquella Igreja.
Da milagrosa Imagem de Nossa Senhora do Anjo, ou da Encarnação
Na mesma Igreja Cathedral da Cidade de Evora, se vè em a nave do meyo hum rico, & precioso tabernaculo, ou Capella encostada a hum daquelles grandes pilares, ou pés direytos, que sustentão aquella grande maquina da obra daquelle espaçoso, & rico Templo, de talha dourada, obra magestosa, & de valente architectura, que mandou fazer o Illustrissimo Senhor Dom Frey Luis da Silva, aonde se reconhece a grandez do seu coração, porque todas as obras que fez são ricas, & magestosas. Neste Tabernáculo he buscada com pia, & fervorosa devoção do povo de Evora, a milagrosa Imagem de Nossa Senhor do Anjo, ou da Encarnação, & principalmente das mulheres, porque invocando-a nos seus trabalhosos partos, o feliz successo, que nelles experimentam, lhes faz conhecer com muyta evidencia, o quanto esta piedosa Senhora lhe he propicia. Os Conegos daquella Cathedral a venerão muyto, & a servem com grande devoção; & assim ordinariamente se encontrão ajoelhados ante a sua magestosa presença; e pela grande devoção, que sempre se teve com esta Senhora, lhe vão cantar todos os Sabbados em Communidade a sua Salve. Em tempos de necessidades, & apertos publicos, a ella he que recorrem, para que lhes implore de Deos os bons despachos em as afflições, & trabalhos que padece o povo.
Alguns querem que no Altar da Senhora do Anjo se cantasse a Missa em aquella grande callamidade de continuadas chuvas, em que por todo o Alem Tejo se viaõ perdidas as searas, que estavão jà muytas segadas; & vio o milagre da cera. O fundamento que tem he é grande; porque sempre teve aquella Cidade grande fé, & devoção com esta milagrosa Senhora, & nos seus mayores trabalhos sempre recorreo a ella. No tempo do Illustrissimo Senhor Dom Diogo de Sousa, na occasião do Synodo que celebrou, pedirão os Bispos do Algarve, & de Elvas seus suffraganeos, se visse se existiam ainda debaixo do Altar mayor os doze cirios, de que se faz menção na Festa da cera. Fez-se toda a diligencia, & nada se pode achar. Tambem se começou a fazer em o Altar da Senhora do Anjo, & como se não podia fazer sem grande desmancho, se suspendeo a diligencia.
Depois mandando o Illustrissimo Senhor Dom Frey Luis da Silva fazer o magestoso tabernaculo em que hoje vemos a Senhora, se achou em huma pedra, que servia de baze à peanha da Senhora, que estavão abertas aquellas palavras da Antiphona, que fica referida: Recordare Mater, dum steteris, & c. com as quaes palavras se confirmarão então os que as virão, em que a Missa se celebràra no Altar da Senhora do Anjo, & que debayxo delle se depositarião os cirios, de que hoje se não sabe dar razão, pois nem neste Altar se achou rasto delles. Porèm ainda fica em pé a opinião primeyra, em que no Altar mòr se diria a Missa, por ser lugar mais commodo para isso.
A Imagem da Senhora, he certo que he antiquissima; he formada em pedra, mas de grande fermosura; mostra estar de joelhos, & com a mão esquerda no peyto; mostra a sua suspensão no mysterio, que o Anjo lhe annunciava; a direyta tem levantada, que confirma a mesma admiração, em que a Senhora se vio. Ficalhe o Archanjo São Gabriel defronte, em o pedestal opposto ao mesmo tabernaculo, tambem de vulto, & da mesma materia. A imagem da Senhora he da natural proporção, & aindaque he de escultura, a adornão de vestidos muyto preciosos. Pelo Natal do Senhor lhe accomodão em os braços huma Imagem do Menino JESUS. Està hoje com muyto mayor veneração, & precioso culto de ornatos, & tem ricos cortinados com que está cuberta: tudo isto, com a riqueza, & Aceyo do seu Altar se deve à generosidade do coração do Illustrissimo Senhor Arcebispo Dom Frey Luis da Silva, Religioso da Ordem da Santissima Trindade.
---x---
CANTIGA 322
Como Santa Maria guariu úu ome en Evora que ouvera de morrer dun osso que se ll’atravessara na garganta.
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada
…………………………………………………….
En Evora foi un ome / que ena Virgen fiava
muyto e que cada dia / a ela s’acomendava;
e aveo-ll’húa noite / en sa casa, u céava
que ouver’a seer morto / a desora, sen tardada.
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada
Ca ele gran comedor era / e metia os bocados
muit’ameude na boca, / grandes e desmesurados;
e aa noite céava / dúus cóellos assados,
atravessou-xe-ll’un osso / na garganta, e sarrada
A ouve de tal maneira / que cuidou ser afogado;
Ca aquel osso ll’avia / o gorgomel atapado
assi que en pouca d’ora / o ouve tan fort’inchado,
que folego non podia / coller nen ar falar nada.
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada
Assi esteve gran tempo / que sol comer non podia
nen bever nengúa cousa / senon cald’ou agua fria,
fasta que chegou a festa / da Virgen Santa Maria,
que cae no mes d’Agosto, / quand ela foi coroáda.
Enton todos seus paretentes / e amigos o fillaron
e aa egreja desta / nobre Sennor o levaron,
e téendo-o por morto / ant’o altar o deitaron.
E tev’y aquela noite; / e contra a madrugada,
Quand’a missa ja dizia / filló-o tosse tan forte,
que todos cuidaron logo / que era chegad’a morte.
Mas a Virgen gloriosa, / que dos cuitados cóorte
éste, non quis que morresse / ali daquela vegada,
A Virgen, que de Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada
Mas guisou que en tossindo / lhe fez deitar mantéente
aquel osso pela boca, / ante toda quanta gentey estava;
e tan toste / loores de bóa mente
deron a Santa Maria, / a Madre de Deus amada.
A Virgen, que e Deos Madre / éste Filla e criada,
d’acorrer os pecadores / sempr’está apparellada
Cantigas de Santa Maria, escritas em galaico-português e postas em música (ensoadas) sob a égide do rei D. Afonso X, o Sábio. Compostas na segunda metade do Século XIII. Afonso X terá feito uma das primeiras recolhas de tradições – com suporte manuscrito e oralizante – de que há memória. O que para nós, eborenses, não deixa de ser interessante é o facto dele descrever na Cantiga CCCXXXVIII a existência da um volumoso Livro de Milagres em Santa Maria de Évora:
«foron, aa grand eigreja
que é de Santa Maria,
ú gran vertude sobeja
mostra de sanar enfermos,
ond’an feitt’un gran volume.»
Assim, refere o investigador Mário Martins, S. J., que «Em Évora, na Igreja de S.ta Maria, havia um Livro de Milagres, bastante grosso. Curavam-se muitos enfermos, ardian muitas candeas, e foi lá que S.ta Maria deu vista a um cego.»[3]
Notas:
[1] In “Santuário Mariano e Historia das Imagens milagrosas de N. Senhora”, Tomo Sexto, por Fr. Agostinho de Santa Maria, Lisboa Occidental, Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, Anno de 1716.
[2] Fr. Agostinho de Santa Maria, Op. Cit.
[3] in “Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média”, «Revista Portuguesa de História», tomo V, Instituto de estudos Históricos Dr. António de Vasconcellos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1951.
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