terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O Conto dos Coelhinhos, ilustr. de António Couvinha


Contar e recontar o conto tradicional


“Deus inventou o homem para o ouvir contar contos”.
Ditado Popular



O conto tradicional, que chegou até nós hoje, é a forma sobrevivente da narração oral no decorrer da sua mais ou menos longa vida, transmitido de boca a ouvido.
Tal como afirma Italo Calvino, “Quem faz o conto é o ouvinte”, na medida em que o transmite, lhe confere existência e continuidade.

A temática do conto tradicional, do conto de encantar, do conto do maravilhoso, poderá ser enquadrada por muitas perspectivas e enfoques científicos. Uns de natureza mais antropológica e sociológica, outros focando mais a psicologia e a psicanálise, outros ainda podendo ser abordados através do ponto de vista global da filosofia ou mais concretamente da filosofia da educação.

A problemática do conto tradicional agora abordada insere-se numa área em que todas as perspectivas acima referidas são tocadas de um modo integrado.
Este conjunto de eventos agora proposto servirá para, a curto prazo, enquadrar um conjunto de inquéritos–recolha sobre e de contos tradicionais no Concelho de Évora, ao longo de toda a área geográfica do concelho, rural e urbano. Pensamos assim que nos permitirão compreender a complexidade do contar e do recontar contos tradicionais, pelos diferentes actores sociais que hoje habitam o Concelho de Évora.

Tradicionalmente se o conto não for ouvido, nem for contado, é esquecido, morre, desaparece. Se o processo contar / ouvir / contar… for interrompido, esse processo circular de comunicação tradicional e secular, o conto, resultado e veículo da Tradição, desaparece das nossas memórias. Para o erudito Professor José Leite de Vasconcelos os contos tradicionais assemelhavam-se aos “calhaus rolados”, uma vez que os contos têm de ser contados, têm de ser muito “rolados” para se tornarem perfeitos na sua narração e sobrevivência enquanto tradição oral.
Nos nossos dias atrevamo-nos a pesquisar o seguinte, sobre o conto tradicional:

        - quem o conta?
        - como conta?
        - quando conta?
        - porque conta?
        - a quem conta?

A Tradição Oral ou, um pacto através da palavra – a importância sublime do contar e do escutar… é o desafio que nos propomos a nós próprios descobrir.

                        Encontramo-nos hoje a redescobrir os Contos de Encantar. Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação, observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela ­– ela lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas que se formam na sua pequena cabeça.

        E conseguiremos reviver o estádio de infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada de adultos, procurando a verdade absoluta e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do dia-a-dia?
        Tal como diz o Poeta [Beatriz Serpa Branco -A Face e as Sombras, Évora,1969 (p.29)]:

                não se gastou nem se perdeu a infância
                        a nossa infância

                        ficou junto          escondida em qualquer canto da vida
                        sem mudança             igual a ser

                        como a vida que mora por dentro do viver


        Importante é também esta pequena reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen [ Cit.  por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45)]:

          «A infância não é coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! voltar a captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»

        Goethe, um dos grandes poetas da humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:

                «O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo. Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos. Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a princesa não casará com esse miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração». [ Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa, 1984 (p. 195).]

        Segundo Bruno Bettelheim:
            «Os contos de fadas, para além de uma deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»

        E é ainda Bettelheim quem afirma:

            «A história de fadas é essa dádiva de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a desembrulhá-lo com felicidade!».

        Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice Vieira, refere:

          «Pode haver coisa mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»

        Percorramos todos aqueles velhos contos que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
        O homem de hoje, tal como o homem de ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus, Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida  que a Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma, há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar histórias maravilhosas aos seus netos.
        E a criança aqui é um elemento-chave fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses mitos.

        Fazemos hoje ressurgir os contos de encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da humanidade?
        É muito possível que uma das respostas nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
        A relação que tradicionalmente se estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre – não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em sensibilidade.
        O acto de contar um conto nos tempos remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar de uma flor ou o colher de um fruto maduro... acontecia e era um momento vivido como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
        A importância de um Sentido para a Vida era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
         A dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira, a luz e a sombra....
        Ao atentarmos à actual sociedade moderna onde nos inserimos, poderemos ver que ela gera elementos desestruturantes, no sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão – os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso SER mais profundo...
       
        Assim, o homem moderno terá de encontrar uma perspectiva diferente sobre os contos de encantar tradicionais, ou com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente, mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir viver aquém e além da fronteira do espelho, símbolo do símbolo.
        Recordemos Victor Hugo quando afirma que:

        «É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».
        
         Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde está oculta a Pedra Filosofal dos antigos Alquimistas…

        E termino a contar um conto de encantar, recriado admiravelmente por Fernando Pessoa [Poesias , Colecção ‘Poesia’, Lisboa, 1942 (pp.239-241)], que o denominou EROS E PSIQUE :

                                     
Conta a lenda que dormia
                                               Uma Princesa encantada
                                               A quem só despertaria
                                               Um Infante, que viria
                                               De além do muro da estrada.

                                               Ele tinha que, tentado,
                                               Vencer o mal e o bem,
                                               Antes que, já libertado,
                                               Deixasse o caminho errado
                                               Por o que à Princesa vem.

                                               A Princesa Adormecida,
                                               Se espera, dormindo espera.
                                               Sonha em morte a sua vida,
                                               E orna-lhe a fronte esquecida,
                                               Verde, uma grinalda de hera.

                                               Longe o Infante, esforçado,
                                               Sem saber que intuito tem,
                                               Rompe o caminho fadado.
                                               Ele dela é ignorado.
                                               Ela para ele é ninguém.

                                               Mas cada um cumpre o Destino–
                                               Ela dormindo encantada,
                                               Ele buscando-a sem tino
                                               Pelo processo divino
                                               Que faz existir a estrada.

                                               E, se bem que seja obscuro
                                               Tudo pela estrada fora,
                                               E falso, ele vem seguro,
                                               E, vencendo estrada e muro,
                                               Chega onde em sono ela mora.

                                               E, inda tonto do que houvera,
                                               À cabeça, em maresia,
                                               Ergue a mão, e encontra hera
                                               E vê que ele mesmo era
                               A Princesa que dormia.»


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Rui Arimateia
rui.arimateia@gmail.com



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