sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O PEREGRINO


TRADIÇÃO E MODERNIDADE ENTRE A MEMÓRIA E A REVITALIZAÇÃO DOS CULTOS - APROXIMAÇÕES TEOSÓFICAS


Tenhamos consciência de que estamos inseridos numa sociedade que se caracteriza por um conjunto de opções e de práticas baseadas em anti-valores humanos desconstrutivos, privilegiando o consumo extremo, o endeusamento do capital, a busca alienada e desenfreada do prazer pelo prazer e, finalmente, postulando uma total ausência de compromisso individual ou colectivo perante o outro ou perante a Natureza, acrescentando o fosso entre os poucos que tudo possuem e os demasiados que nada detêm, nomeadamente em termos de acesso à Cultura, ao Desenvolvimento e ao direito de se viver condignamente.
Daí a importância da realização de reflexões como a que estamos conjuntamente a realizar nesta edição de 2015 do Congresso “Por Terras do Endovélico” no Alandroal em boa hora organizada pelo seu Município com a colaboração do Centro de Estudos do Endovélico. Não esqueçamos de que até a ténue luz de uma vela afasta a mais negra escuridão!...

Este meu trabalho, agora apresentado, encontra-se ancorado em algumas premissas que continuamente me acompanham nestas áreas de reflexão sobre Cultura e Religião e que passo a enumerar:

1.     Tudo está ligado a tudo... ou, tal como é expresso nas palavras inspiradas de Hermes Trismegistos: O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa…” (ver Nota 1)
2.     A Unidade da Vida é uma realidade sempre presente para a evolução natural e harmoniosa de todos os seres vivos e do próprio Planeta;
3.     Não há Religião superior à Verdade, encarando todas as manifestações do génio humano – religiosas, sociológicas, antropológicas, filosóficas e científicas…– numa perspectiva Teosófica (ver Anexo único);
4.     Considero a Palavra como uma criação superiormente inspirada – do Espírito, do Logos, de Deus, da Natureza, da Vida Una… – que anima interiormente o homem e a mulher esse manifesta para a realização e compreensão de maravilhas;
5.     Sempre a ter em conta: “Não separarás o teu ser do Ser, e do resto, mas fundirás o oceano na gota de água, e a gota de água no oceano. / Assim estarás de acordo com tudo quanto vive…” (ver Nota 2)

Por outro lado, considero essenciais a utilização de três ferramentas metodológicas para a desocultação dos significados mais profundos do Espírito Religioso:

1.     A Poesia – pois esta permite-nos falar a língua dos Deuses:
2.     A Imaginação Criadora – permite-nos ouvir e entender a voz dos Deuses;
3.     A Analogia – permite-nos compreender a intenção mais profunda nas diversas manifestação dos Deuses.

Tal como Fernando Pessoa comunicava numa linguagem superiormente inspiradora quando nos legou o poema que de seguida se apresenta e que nos permite a compreensão de uma Religião totalmente integrada na Natureza:

Oscila o incensório antigo
Em fendas e ouro ornamental.
Sem atenção, absorto sigo
Os passos lentos do ritual.

Mas são os braços invisíveis
E são os cantos que não são
E os incensórios de outros níveis
Que vê e ouve o coração.

Ah, sempre que o ritual acerta
Seus passos e seus ritmos bem,
O ritual que não há desperta
E a alma é o que é, não o que tem.

Oscila o incensório visto,
Ouvidos cantos estão no ar,
Mas o ritual a que eu assisto
É um ritual de relembrar.

No grande Templo antenatal,
Antes de vida e alma e Deus...
E o xadrez do chão ritual
É o que é hoje a terra e os céus...


Fernando Pessoa  (ver Nota 3)


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*   *


A CONSCIENTIZAÇÃO DA UNIDADE DA VIDA
Construção de um homem novo num mundo em transformação


Uma das preocupações centrais da Iniciação na antiga Religião dos Mistérios, ao longo dos tempos, tem sido a de potencializar e possibilitar a procura e o encontro ou re-encontro da UNIDADE DA VIDA pelo Peregrino, viajante em demanda…
Procura baseada no pressuposto de que a Relação Humana, a Verdade e a Liberdade estão, de facto, contínua e dinamicamente presentes na Busca Espiritual e na Demanda pela Verdade última e perene da Existência.
Hoje, o homem moderno perdeu ou está a perder, a capacidade de vivenciar a mensagem mais profunda dos Mistérios e dos símbolos da Vida e da Morte. Distancia-se mais e mais deles. O stress e a superficialidade dos quotidianos, com todo o condicionalismo daí resultante, impossibilitam ao homem actual relacionar e inter-relacionar as Grandes Verdades da Vida Una, tendo em conta a complexidade das miríades de facetas das relações humanas que o preenchem e o distraem daquilo que mais importa!...
Verdade, Unidade e Liberdade são, afinal, grandes objectivos de vida que desde sempre o homem procurou alcançar através de diferentes caminhos, de diferentes perspectivas: Religião, Filosofia, Ciência, Arte... É essencial que, cada um por si, procure a sua própria Via, procure escutar o acorde harmonioso que a ponha em sintonia com a Via do Coração, representante da chave autêntica que abre a porta dos Mistérios da Natureza, dando acesso ao Graal da Sageza das Idades a fim de nele beber e saciar a insaciável sede do sagrado.
Existem duas perguntas, fundamentais para a consciencialização e compreensão do ser humano em demanda: de onde vimos e para onde vamos?
Poderemos filosoficamente tentar uma resposta: – vimos da Unidade e voltamos à Unidade. Integração e re-integração. A premissa essencial para se colocar e tentar responder à pergunta é a compreensão e a apresentação como hipótese de trabalho da UNIDADE DA VIDA como um facto real e de autêntico desenvolvimento humano.
Vimos de um Todo e voltamos para um Todo. De um estado de ser potencial de pré-nascimento – para todos nós o Desconhecido, – para um estado de ser pós-morte – igualmente o Desconhecido. Temos contudo, e perante o atrás referido, a consciência de que no nosso estado de evolução espiritual, o processo total da Unidade da Vida é-nos, apesar de tudo, ainda desconhecido.

Só o Presente nos é presente!

Podemos considerar que a criança, desde o primeiríssimo momento da sua existência enquanto Ser Humano, se encontra unida à Vida Cósmica. Com o desenvolvimento e a afirmação da sua personalidade, vai-se artificialmente separando da Realidade Última da própria Existência e “converte-se” numa entidade separada, absorta no complexo processo de crescimento e desenvolvimento do seu ser.
Afinal o “pecado original” não será outro senão o da assumpção do estado de separatividade e do “esquecimento”/recusa da UNIDADE essencial da Vida.



Contudo, tendo em conta a natureza da Iniciação aos Mistérios, a vida de um ser humano é apenas um dia na mais vasta vida do Espírito do verdadeiro Homem – o Eterno Peregrino nestes ritmos da Criação.
Por toda a parte observamos o mesmo Alento Criador: a manifestada múltipla diversidade procedente da Unidade e o seu retorno à mesma Unidade da Vida Cósmica. É o canto da Criação do qual fazem parte todos os cantos, todos os ritmos do Universo.
Vem a propósito um pequeno fragmento do poético e inspirador livro, da autoria de Mabel Collins, Luz sobre o Caminho (ver Nota 4), pérola literária da filosofia teosófica do século XX:
«(…) apenas fragmentos da grande canção chegam aos vossos ouvidos. Mas se a escutais, lembrai-a bem, para que nada que chegou até vós seja perdido, e tentai nela aprender o sentido do mistério que vos cerca. Em tempo não precisareis de mestre. Porque, assim como o indivíduo tem voz, também a tem aquilo em que o indivíduo existe. A própria vida tem fala e nunca está silenciosa. E a sua fala não é, como vós os surdos podeis crer, um grito; é uma canção. Nela aprendei que vós sois parte da harmonia; nela aprendei a obedecer às leis da harmonia.(…).»
Vivamos momentos de Paz e de Solidão, “aniquilando-nos”, isto é, integrando-nos na Vida que, sem cessar, cresce e se desenvolve ao nosso redor e em nós. Tentemos escutar e ouvir a Canção da Vida e ousemos transmutar-nos a partir da nossa natureza interior. Alimentemos o fogo que arde no nosso mais recôndito Santuário, tentemos fazer com que o Sol consiga livremente iluminar a chama interna e eterna conservada no interior do nosso Coração.
Diz-nos o sufi marroquino Sheij Sidi Hamzaque: “O verdadeiro conhecimento somente se obtém através da humildade. O modo correcto de nos dirigirmos a ele, deverá assemelhar-se ao de uma pessoa que quer beber água de um riacho: deverá inclinar-se para a beber. A água está sempre situada no lugar mais baixo, temos necessidade de ser como a água.”
O Conhecimento, por mais incipiente que seja, implica responsabilidade. Um trabalhador que use eficazmente a sua ferramenta de ofício é-lhe exigido socialmente cada vez mais, maior perfeição. A Obra – de transformação de si próprio e do que o rodeia – precisa, em cada dia que passa, de mais e de melhores trabalhadores e a Obra inicia-se a todos os momentos em nós próprios. Para se compreender o subjacente, o autenticamente verdadeiro na Obra, para se compreender o seu âmago, a sua essência, há que buscar e compreender a perenidade dos símbolos e das mensagens espirituais Nela implícitos.
Importa dizer que Conhecer é viver, é ensinar, é aprender, mas também é, e sobretudo, estar em comunhão com o outro, estar num estado de Compaixão, de solidariedade e de dádiva.

Conhece-te a ti próprio… Conhecer é Ser mais e melhor…

Nos Antigos Mistérios da Humanidade – de Elêusis, de Ataegina, de Mitra, de Isis, de Orfeu, de Dionísio,dos Egípcios, dos Tibetanos, dos Celtas, dos Cristãos, dos Gnósticos, dos Sufis, e de tantos outros… , através de uma abordagem muito particular da alegoria e do símbolo, os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua História e Evolução têm sido: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta.
Lembremo-nos da história daquele peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:
         – Oh, Mãe! O que é o Mar?
         E a Mãe, com aquela ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:
         – Olha, meu filho, tu estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...
         A união com o Todo ou com o Amado, que os místicos ibéricos como São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila tão bem souberam cantar nos seus poemas e nos seus escritos de religião, e por vezes tão incompreendidos e até mesmo rejeitados e perseguidos pela dogmática e repressiva superstrutura católica da sua época.
         Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio de luz, saírem vitoriosos para a Luz Solar...

Da luz para a Luz!

Igualmente e também desde tempos imemoriais que os Antigos Mistérios, detentores da Sageza das Idades, têm tido como outro objectivo essencial na sua Demanda, a cabal compreensão da Verdade. Contudo, esta parece ser inatingível, para o homem comum, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, vem transformando e espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que o ajudam a dominar a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios.
         Sempre o homem comum olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer mistério vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, em algum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: «Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...», resta-nos a possibilidade de (re)encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... ou oculto no nosso Coração...

Eu sou aquilo que sou!

O grande paradoxo que enfrentamos é o facto de termos de buscar uma coisa, um facto, uma realidade, que reside em nós próprios… E termos de descortinar um Caminho que por mais voltas labirínticas que dê voltará sistematicamente para o interior de cada um de nós…
Percepcionar e compreender o Real talvez seja simplesmente olhar o outro, os outros, e identificarmo-nos ontologicamente com eles… Eu sou tu e tu és eu nesta demanda da palavra perdida que nos permitirá, se encontrada, a compreensão do Real em nós.

Deus criou o homem para o ouvir contar contos!

Há que reencontrar novas metodologias, novas mentalidades, para não nos afundarmos definitivamente nesta sociedade de consumo e de morte.
Sempre me lembro de África, para muitos o berço matriz da espécie humana, quando penso em alternativa. Sabe bem voltar à Mãe, à Raiz, à Fonte quando ameaças pairam perigosamente no ar à nossa volta…
Diz-nos NicolásBuenaventura Vidal após uma viagem ao País dos Griots:

“Houve um tempo em que não havia nada, só o vazio, um vazio insensível e cego. O vazio, insensível e cego, gostava de pensar de vez em quando, sé de vez em quando e, de cada vez que pensava, os pensamentos ficavam suspensos, flutuando no vazio; e os pensamentos foram-se somando e no vazio encontraram-se e puseram-se a brincar. A brincar, a brincar, foram criando novos pensamentos. No vazio começaram a nascer como turupes, isto é, como bossas, e essas bossas rebentaram e formaram palavras, porque o vazio era insensível e cego, mas não mudo. As palavras rapidamente se ergueram e começaram a diferenciar-se. Umas tornaram-se em árvores, trepadeiras, arbustos e florzinhas. Outras transformaram-se em água, e aconteceu que algumas se puseram a nadar e se tornaram peixes e as que se sentaram a descansar converteram-se então em pedras. As palavras a «pairar no ar» tornaram-se pássaros. Até que as palavras, fartas de serem elas a dar nomes, decidiram querer ser nomeadas e disseram Mulher e disseram Homem e as palavras Mulher e Homem caminharam até se encontrarem, nomearam-se e amaram-se. Eles deram nomes às palavras. Apareceu a palavra Casa e a mulher e o homem habitaram-na; disseram Mesa e tiveram onde se sentar para comer. Com a palavra Palavra apareceu a primeira ferramenta e, sentados em redor da palavra Fogo, a mulher e o homem contaram um ao outro, as primeiras histórias.” (Ver Nota 5)

Consideremos então a enorme importância da Palavra para a compreensão da realidade da UNIDADE DA VIDA que tem sido transmitida pelas inúmeras gerações através dos Mistérios e considerada por muitos como fio condutor que liga initerruptamente a Antiguidade à Contemporaneidade.
As palavras constituem, de facto, a matéria prima essencial da condição humana. É extremamente importante consciencializarmos o seu significado mais profundo, mais essencial e mais genésico, a fim de reencontramos a Palavra Perdida cuja re-utilização consciente nos dará acesso ao Reino dos Deuses…
E tantas palavras importantes, tantas palavras-força, que temos à nossa disposição para trabalharmos e re-construirmos, como por exemplo:
Culto | Sagrado | Natureza | Pedra | Terra | Água | Ar | Fogo | Ether | Sol | Lua | Árvore |  Erva | Fonte | Rio | Montanha | Gruta | Luz | Trevas | Noite | Dia | Ritmos | Ritos| Tempo | Lugar | Templo | Tradição | Religião | Ritual | Romaria | Peregrinação | Demanda | Cura | Viagem | Morte | Vida | Símbolo | Sonho | Oráculo | Animal | Mão | Homem | Mulher | TellusMater | Mito | Mistérios | Arquétipos | Unidade | Oferta | Sacrifício | Compromisso | Partilha | Solidariedade | Dádiva | Compaixão | …
Compreendamos as palavras, desocultemos os seus símbolos e significados mais profundos para melhor as podermos pronunciar e utilizar na transformação e compreensão de nós próprios e do mundo do qual fazemos parte.
É importante a partilha, tal como nos transmite uma quadra conhecida do Cancioneiro Alentejano.


A propósito do Cante Alentejano e da Sabedoria das Idades – uma praxi se um exemplo a reflectir

Não me inveja de quem tem
carros, parelhas e montes
só me enleva quem bebe
água em todas as fontes.

O cante alentejano, através do seu cancioneiro tradicional e popular, contém em si, adivinhamo-lo, vestígios de uma muito antiga sageza, sem idade… Uma sabedoria oculta, subterrânea, ancestral, que nos diz que todos os homens são irmãos, que todos detêm um saber que está para além da propriedade material das coisas, dos objectos. Como consequência directa, todos poderão partilhar e simultaneamente usufruir as riquezas espirituais comuns, colocando-se cada qual disponível para ouvir o outro e partilhar com ele.
O alentejano ao ouvir as modas do cante está simultaneamente a escutar o outro e a aprender com ele; e quando canta está a partilhar, está a ensinar.
Através do cante, o alentejano está a ser ele próprio e está a interpretar aquela voz que lhe chega das entranhas da cultura milenar da terra-mãe, terra onde vive e onde trabalha e onde canta, onde vive e onde morre. Deste modo o cante apresenta-se-nos como um fiel retracto psicológico da identidade tradicional dos alentejanos.
Nos dias que correm é cada vez mais necessário que cada um de nós queira e consiga “beber água em todas as fontes” para que as diferenças de cada um possam ser compreendidas e aceites por todos e por cada um. Para que tudo aquilo que diferencia os homens uns dos outros seja um factor de aproximação entre eles e não um factor de desavença e de desentendimento; seja uma razão para procurarmos e vivermos a complementaridade.
Hoje é cada vez mais necessário investirmos culturalmente em mais comunicação, mais diálogo e mais partilha. A palavra e a música constituem ferramentas fundamentais para a construção e preservação de memória e de identidade, neste caso da nossa memória e da nossa identidade enquanto alentejanos.
Como atrás se disse, o ser humano é uno e indivisível tal como a própria Vida. Por factores desconhecidos e inexplicáveis, umas vezes é alentejano ou beirão; outras é cristão ou muçulmano; outras ainda é judeu ou hindu; poderá nascer preto ou branco, homem ou mulher… Contudo, no fundo, a essência vital que anima os corpos dos seres humanos é a mesma e eles estarão “condenados” a entenderem-se e a interagirem como irmãos se quiserem que a Civilização e a Cultura continuem e evoluam equilibradamente ao som da Música das Estrelas que nos envolve e que nos inspira a brotarmos para fora das nossas almas de alentejanos e de cidadãos do mundo aquele grito, aquele cante, que tanto nos diz e que tanto nos encanta…
Vida, morte, colheita, terra, trabalho, pão, cultura, vinho, alimento, partilha, campo, amor… História, Identidade, Património da Humanidade... Tudo isto é Cante tudo isto é Alentejo!...


A Natureza Humana e o livre arbítrio – que desafios?

Entrámos e instalámo-nos no Século XXI da Era Cristã, num mundo paradoxalmente marcado pela barbárie e pela selvajaria humanas, diria antes sub-humanas, e onde estas tristes mas factuais realidades são moda, basta olhar a televisão, a net, os jornais…
Nos dias de hoje, mais do que nunca, temos de olhar e repensar a essência da natureza humana. Esta encontra-se a ceder aos mais baixos instintos de animalidade, onde a emoção e o mental inferior se desenvolvem perigosamente, pondo em causa uma evolução harmónica, equilibrada e espiritual. A grande tentação das hegemonias e dos imperialismos, olhados,pessoal ou colectivamente, quaisquer que sejam as suas colorações – religiosas, económicas, culturais, civilizacionais –, conduzem a Humanidade a cometer autênticos genocídios e inclusivamente deteriorando irreversivelmente a própria vida natural do planeta.
Choques de culturas, choque de civilizações, choque de religiões, aliados à intolerância, ao despotismo e à prepotência, que caracterizam e normalizam a acção humana, são o apanágio do homem contemporâneo onde quer que ele se encontre.


A pegada ecológica humana marca negativamente o solo fértil de Gaia.

O planeta está a sofrer uma imensa e arriscada provação. Falando metaforicamente, um Dragão Negro está a possuir e a dominar as mentes, as consciências e, o que é mais grave, o coração dos homens, transformando os valores de uma cidadania partilhada em práticas de predação, de horror e de insensibilidade.
Nunca as palavras Fraternidade, Religião e Amor, estiveram tão vazias de sentidos e de sentir. O primado do ter sobrepõe-se irremediável e perigosamente ao primado do Ser.
Lágrimas, terror, sofrimento chegam constantemente aos nossos sentidos através dos mass-media. Possuímos a infeliz capacidade tecnológica de presenciar a(s) guerra(s) em directo. A enorme quantidade de informação manipulada, distorcida e censurada, entorpece-nos o sentir. Olhamos, vemos, ouvimos, tomamos partido, mas falta responder à grande questão: como actuar? Como agir, enquanto indivíduos racionais e conscientes, perante este caótico estado de coisas? Perante estas “normalizadas” atrocidades de lesa humanidade, destituídas de qualquer ética?
Imaginemos, através de uma imaginação criadora, que contemplamos a Terra dos altos céus: de imediato sentimos na nossa carne a agonia dos seres vivos! A Terra encontra-se coberta de feridas, cheia de cicatrizes, sangrentas, latejantes... causa de sofrimentos desmedidos...
E que alternativas estão ao nosso alcance para alterarmos positivamente este estado de coisas?
Por certo que igualmente se recordarão das tão simples e tão belas palavras de Jesus inscritas no Evangelho segundo São João (XV-12) – “Eis o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.” Fazer a guerra à Humanidade é fazer a guerra a Cristo, é recusar, repudiar e espezinhar a Sua palavra, o Seu exemplo, a Sua memória.
Lembremo-nos da grande verdade de que, não importa quão vasta a escuridão, quão vasta a noite, contudo uma pequena chama de vela detém essa grande escuridão. Na sua insignificância é invencível porque é Luz.
Que cada um de nós mantenha acesa a sua pequena chama. Cada qual, por si, pode tão só significar uma fraca luz, contudo a natureza de todas as chamas é a mesma, é Una. E todas juntas, na sua Unidade Essencial, firmemente dirigidas e erigidas aos céus ensombrados pelas densas nuvens negras do ódio e da ignorância, poderão, a pouco e pouco, afastar as trevas e fazer surgir mais uma vez e sempre a Grande Chama Universal, corporalizada pelo Sol a que os antigos denominavam por Cristo Solar ou Logos Solar...
Mais Fraternidade, mais Compaixão e mais Amor são precisos para que essa Chama Universal se manifeste e realmente se torne uma Realidade viva e verdadeiramente transformante e transformadora nos corações e nas consciências da Humanidade que é Una!
Temos dentro de nós próprios, enquanto seres humanos, a possibilidade de sintetizarmos, de compreendermos e de reproduzirmos o Kaose ou o Cosmos.



O Holismo – uma nova forma de Religião

A partir de meados do século XX, uma nova abordagem metodológica foi surgindo e começou a ser seriamente encarada pelos investigadores dos nossos dias – a perspectiva Holística.
Um modo de pensar abarcante, total e unitário, que olha as várias disciplinas do conhecimento do homem e da Natureza sempre em relação umas com as outras, não compartimentalizando e não separando, mas integrando o conhecimento, como um todo.
Este método revolucionário, sendo relativamente recente, não é novo pois que, o conceito holismo/holístico que, por um lado significa total e por outro sagrado, contrapõe-se àquela maneira de ser que fragmenta a realidade e que toma a parte pelo todo, que prefere a análise (separatividade) em detrimento da síntese (unidade).
Por outro lado, a perspectiva holística, para o homem, é, afinal, o acordar da totalidade dele próprio e do seu enquadramento vital criativo, no qual ele poderá desenvolver ou despertar a sua essência espiritual. Consequentemente, a consciencialização desta Unidade, em si próprio, confere ao homem uma imensa responsabilidade perante a Natureza, suas Leis e Evolução.
Esta nova descoberta poderá consequentemente provocar transformações radicais na ordem estabelecida anteriormente, podendo surgir então uma nova Cultura, uma nova Ciência e uma nova Religião. E porque não uma Nova Civilização?...
A aproximação holística apresenta-se como um fio condutor que poderá unir as várias ciências e filosofias num novo movimento com uma nova e consequente dinâmica de intervenção ao nível dos conceitos e das práticas de concepção do mundo.
Como consequência, a política, a economia e a tecnologia poderão igualmente mudar de carácter, assim como poderá mudar igualmente a relação de dependência Norte/Sul, do Ocidente em relação ao Terceiro Mundo e em última análise, as relações que os homens estabeleceram entre si e o Universo.
Holismo, é portanto, um neologismo que se poderá identificar com uma perspectiva globalizante da Vida numa visão macroscópica, sistémica e ecológica. Deveria constituir a raiz de uma nova Educação, de uma nova Ética para que possa surgir um Homem Novo.

Como conclusão:

As palavras muito antigas
São como as sementes
Que são semeadas antes das chuvas
Depois, a terra é ressequida pelo sol
A chuva vem molhá-la
A água da terra penetra nas sementes
As sementes transformam-se em plantas
Então, desenvolvem as espigas de milho
Assim tu, a quem acabo de dizer as Palavras Muito Antigas,
Tu és a terra
Eu planto em ti a semente da palavra,
Mas é preciso que a água da tua vida penetre na semente
Para que a germinação da palavra tenha lugar.

Ensinamento de um griotMandinka





ANEXOS

H. P. BLAVATSKY E A TEOSOFIA
I
A LEI FUNDAMENTAL
A unidade radical da essência última de cada parte constitutiva dos elementos compostos da Natureza, desde s estrela ao átomo mineral, desde o mais elevado DhyānChoan ao mais humilde dos infusórios, na completa acepção da palavra, quer se aplique ao mundo espiritual, intelectual ou físico – esta é a lei una fundamental na Ciência Oculta.(ver Nota 6)
NOTA da Sr.ª Ianthe H. Hoskins:
“A filosofia esotérica enfatiza que existe uma Realidade única por trás do variado mundo de nossas experiências, a fonte e a causa de tudo o que foi, é e será. O grande divulgador da tradição Védica, Sri Śankarāchārya, afirma-o com bastante simplicidade: não importa a forma dada à argila modelada, a realidade do objecto permanece sempre sendo a argila, o seu nome e a sua forma não são mais do que aparências transitórias. Do mesmo modo, todas as coisas, tendo-se originado do Uno Supremo, são em si mesmas esse Supremo na sua natureza essencial. Desde o mais elevado até ao mais inferior, do mais vasto ao mais diminuto, os infinitos fenómenos do universo são o Uno, revestido por um nome e por uma forma.
Este ensinamento da Unidade fundamental é o ponto principal do sistema teosófico. Conclui-se, assim, que nenhuma doutrina baseada numa dualidade última – do espírito e da matéria separados eternamente, de Deus e do homem como essencialmente distintos, do bem e do mal como realidades eternas, – pode ter lugar na Teosofia.”(ver Nota 7)


II
QUATRO IDEIAS BÁSICAS(ver Nota 8)

“(…).
Não importa o que se estude na Doutrina Secreta, a mente deve manter com firmeza as seguintes ideias como base de sua idealização:
(a) A UNIDADE FUNDAMENTAL DE TODA A EXISTÊNCIA. Esta unidade é algo completamente diferente da noção comum de unidade - como quando dizemos que uma nação ou um exército está unido, ou que este planeta está unido a outro por linhas de força magnética, ou algo semelhante. O ensinamento não é esse, e sim o de que a existência é UMA COISA, não uma colecção de coisas colocadas juntas. Fundamentalmente existe UM Ser, que possui dois aspectos: positivo e negativo. O positivo é o Espírito, ou CONSCIÊNCIA; o negativo é a SUBSTÂNCIA, o sujeito da consciência. Esse Ser é o Absoluto em sua manifestação primária. Sendo absoluto, nada existe fora dele. É o SER TOTAL. É indivisível, pois de outro modo não seria absoluto. Se fosse possível separar-lhe uma parte, o restante não poderia ser absoluto, pois surgiria imediatamente a questão da COMPARAÇÃO entre ele e a parte separada, e a Comparação é incompatível com a ideia de absoluto. Consequentemente, é evidente que essa EXISTÊNCIA ÚNICA, ou Ser Absoluto deve ser a Realidade existente em cada forma que existe.
O Átomo, o Homem, o Deus são, separadamente ou em conjunto, o Ser Absoluto em última análise; e isto é a sua INDIVIDUALIDADE REAL. Este é o conceito que se deve manter sempre no fundo da mente para servir de base para toda concepção que surgir do estudo da Doutrina Secreta. No momento em que esquecemos isso (o que é fácil acontecer quando estamos envolvidos com um dos muitos aspectos intrincados da Filosofia Esotérica) sobrevém a ideia da SEPARAÇÃO e o estudo perde seu valor.
(b) A segunda ideia a manter com firmeza é a de que NÃO EXISTE MATÉRIA MORTA. O mais ínfimo átomo está vivo. E não poderia ser de outra forma, pois cada átomo é fundamentalmente por si mesmo o Ser Absoluto. (…). O verdadeiro conceito é o de que cada átomo de substância, não importa de que plano, é ele mesmo uma VIDA.
(c) A terceira ideia a manter é a de que o Homem é o MICROCOSMO. Assim sendo, todas as Hierarquias dos Céus existem nele. Mas em verdade não existe nem Macrocosmo nem Microcosmo, mas UMA EXISTÊNCIA. O grande e o pequeno só existem como tais quando vistos por uma consciência limitada.
(d) A quarta e última ideia é aquela expressa no Grande Axioma Hermético que, na verdade, resume e sintetiza todas as outras:
Como o Interno assim é o Externo; como o Grande, assim é o Pequeno; como é acima, assim é abaixo; só existe UMA VIDA E UMA LEI e o que atua é o ÚNICO. Nada é Interno, nada é Externo; nada é GRANDE, nada é Pequeno; nada é Alto, nada é Baixo na Economia Divina.
(…)”.
*
*   *

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
  1. Hermes Trimegistos – CORPUS HERMETICUM E DISCURSO DE INICIAÇÃO (A Tábua de Esmeralda), Hemus-Livraria Editora, L.da, São Paulo, Brasil, 1978 (pág. 127).
  2. Helena Blavatsky – A VOZ DO SILÊNCIO, Col. Sete Estrelo, n.º 6, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1998 (tradução e notas de Fernando Pessoa¸ pág. 96).
  3. Fernando Pessoa – POESIAS INÉDITAS (1930-1935), Lisboa, Ed. Ática, 1955 (págs. 98-99 ).
  4. Mabel Collins – LUZ SOBRE O CAMINHO, Col. Sete Estrelo, n.º 10, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2002 (tradução de Fernando Pessoa¸ pág. 21).
  5. Nicolás Buenaventura Vidal – PALAVRA DE CONTADOR, Colecção “redes &  enredos”, n.º 8, Ed. Apenas Livros, L.da, Lisboa, 2007 (pág. 14).
  6. H. P. Blavatsky – A DOUTRINA SECRETA, Vol. I - Cosmogénese, Ed. Pensamento, São Paulo, s/d (pág. 267).
  7. Ianthe Hoskins – FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA ESOTÉRICA – H.P BLAVATSKY, Editora Teosófica, 2.ª edição, Brasília, 1993 (págs. 18-19).
  8. Ianthe Hoskins – FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA ESOTÉRICA – H.P BLAVATSKY, Editora Teosófica, 2.ª edição, Brasília, 1993 (págs. 23-25).

Rui Arimateia
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Centro de Recursos da Tradição Oral e do Património Imaterial do Concelho de Évora

Alandroal, 19 de Julho de 2015