domingo, 23 de março de 2014

Mestre Azulão e Bezerra do Ceará


CORDEL REPENTE E VIOLA EM PORTUGAL COM MESTRE AZULÃO E BEZERRA DO CEARÁ


Meu abraço aos portugueses
Desta cidade princesa
Évora, um reduto histórico
Dotada por natureza
Aonde guarda e preserva
A Cultura Portuguesa

Aqui agente admira
As suas belezas mil
Terra dum clima saudável
E de umpovo gentil
Que valoriza os poetas
Filhos natos do Brasil

Portugueses, Brasileiros,
Unidos apertam as mãos
Como amigos patriotas
E fervorosos cristãos
Numa amizade mútua
De dois países irmãos

Aqui não se vê mendigo
Nem criança abandonada
Se vê na face do povo
Felicidade estampada
Aqui nem uma pessoa
Diz que já foi assaltada

Évora cidade climática
Com pureza e primasia
No verão seu clima seco
Aquesse durante o dia
A noite uma brisa mansa
Leva o calor e esfria

Tem jardins e monumentos
Comigrejas e mosteiros
Conventos e faculdades
Que nos ensinos ordeiros
Dão orgulho aos portugueses
E delírio aos brasileiros

Tem dentro do jardim Público
Um ês Palácio Real
Suntuoso monumento
De estrutura coloçal
A Casa Dom Manuel
Grande Rei de Portugal

Um magestoso Corêto
Bem no centro do jardim
Com todos traços Reais
Como quem nos diz assim
Eu sou uma obra eterna
Que nunca mais terei fim

Todos canteiros floridos
Com cravos, jasmins e rosas
Exalando seus perfumes
Essências deliciosas
Assim perfumando as môças
Elegantes e formosas

Seu povo é muito católico
Amigo e hospitaleiro
É no mundo cultural
Preservador e herdeiro
Amante das boas obras
E irmão do brasileiro

Láfomos bem recebidos
E recepcionados
Num hotel granfino e calmo
Ficamos lá hospedados
Com todas as regalias
E excelentes cuidados

Onde as môças nos trataram
Como bondosas irmães
E se tornaram de nós
Admiradoras fans
Alegrementes serviam
Nosso café das manhães

E todos funcionários
Da Câmara Municipal
Nos atenderam felizes
Com atenção cordial
Sempre dizendo, bem vindo
Ao nosso Portugal

Também os chefes da Câmara
Unidos na mesma idéia
Fizeram em nosso favor
Reunião de Assembléia
Os senhores Paulo Lima
E Rui Arimatéia

Paulo e Rui Arimatéia
Usaram antecipação
Providênciando logo
Nossa remuneração
Nos pagando antes mesmo
Da nossa representação

Para à Cidade de Beja
Também fomos convidados
Onde catamos repentes
Entre artistas animados
Lá fomos por todos eles
Aplaudidos e abraçados

Durante toda a viagem
Entre campos de oliveiras
Fazendas e mil pomares
De vinhas e cerejeiras
Encantados nos lembramos
Nossas frutas brasileiras

Um ônibus trouxe de volta
Nós e artistas cubanos
Falando das nossas músicas
Nossos shows e nossos planos
E instrumentos diversos
Espanhóis e Italianos

Teve artistas portugueses
Repentistas de primeira
Que cantaram seus repentes
Do seu estilo e maneira
Mostrando a sua cultura
Lá da Ilha da Madeira

Artistas do Alentejo
Mostraram a sua cultura
Onde tocaram e dançaram
Comarte nativa e pura
Gente que conserva a música
E cultiva agrícultura

Nós fomos considerados
Lá por todos portugueses
Como estrelas brasileiras
Entre espanhóis e franceses
E com futuros convites
Pra irmos lá outras vêzes

Pois em todo conteudo
Da nossa apresentação
Foi feito um evento histórico
De passado e tradição
Dos intelectuais
Que enobreceram a nação

Guerreiros, religiosos,
E poderososn Reais
Que deixaram grandes nomes
E se tornaram imortais
De muitos séculos passados
Dos tempos medievais

De Pedro Alvares Cabral
E suas proesas mil
Atravessando o Atlântico
E em vinte e um de abril
Do ano mil e quinhentos
Aportou no meu Brasil

Os índios preseciaram
A vinda dos portugueses
Mas no Brasil já se achavam
Exploradores franceses
Que se debatiam em lutas
Com índios e holandeses

Esses tais exploradores
Levavam muito sutil
Ouro e pedras preciosas
De grandes valores mil
E madeira cor da brasa
Que deu o nome ao Brasil

Estes e outros passados
Muitos antes de Cabral
Itália, França, Alemanha
E toda Europa em geral
Descrita por grandes vultos
De Espanha e Portugal

Nós os vates repentistas
Voltamos regosijados
Pelo o trato que tivemos
E carinhosos agrados
Dos bons irmãos lusitanos
Alegres e educados

Trouxemos de Portugal
Uma excelente impressão
De um povo generoso
E de um bom coração
Com todos os requisitos
Duma civilização

Um país organizado
De paz e tranquilidade
Ordem, respeito e justiça
Sem violência e maldade
Trazendo á sua nação
Progresso e prosperidade

Portugal abençoado
Pelo clima e a beleza
Ruas, praças e jardins
Tem muito zelo e limpeza
Mostrando ao mundo que tem
Civilidade e riqueza

Aonde nós recebemos
Zelo cuidado e carinho
União entre os artistas
Leais em todo caminho
Assim foi em Portugal
O país meu avosinho

Fim

Autor: José João dos Santos (Mestre Azulão)
05/06/2001

Programa Cultural do Colóquio Interdisciplinar CULTURAS POPULARES EM PORTUGAL SÉCULOS XIX E XX
ÉVORA, Palácio D. Manuel, 24 de Maio de 2001

Endereço do Mestre Azulão
Rua Celina Lima n.º 11 – Engenheiro Pedreira – Japeri – RJ
Estado do Rio de Janeiro. CEP. 26.381-000
Telefone: (03121) 2664-2159

Esta literatura de cordel foi patrocinada pelo o Sr. Prefeito de Japeri, Doutor Carlos Moraes Costa, numa homenagem a cultura nordestina.


segunda-feira, 17 de março de 2014

Cecília Meireles


Poema Entrelaçado

Évora branca, marmórea, ebúrnea,
de lírios, nuvens, pombos e cisnes,
camélia, cal, amêndoa e lua,
imaculada...

“Lembrai-vos, porem, Senhora,
do Geraldo Sem Pavor:
- que outros o chamem de bravo,
nós o chamamos traidor.
Chegou-se tão disfarçado,
conquistou nosso favor.
Depois de amante fingido,
tornou-se vil agressor.
Sobre as pedras que estais vendo,
corre uma fita de cor:
corre uma fita encarnada,
sangue mouro, em tanto alvor,
destas cabeças cortadas,
que pesam sobre o valor
do ardiloso comandante,
cruel Geraldo Sem Pavor.

Por mim não diria nada:
mas não hei de chorar por
esta moura, minha filha,
que mal podia supor
ser por ele degolada,
dando-lhe senhas e amor?”

Évora branca, marmórea, ebúrnea,
cera, alabastro, magnólia, jaspe...
Sal das tristezas, coluna de horas
ultrapassadas...

“Lembrai-vos, porém, Senhora,
de Geraldo Sem Pavor!
Vede nestas armas claras
nossas mascaras de dor...”

Évora, 1953


Cecília Meireles
in “Poesia Completa”

domingo, 2 de março de 2014

Uma Brinca de Évora


AS BRINCAS DE ENTRUDO DE ÉVORA EM 2014

NOTÍCIA SOBRE AS BRINCAS DE ÉVORA 

As Brincas do Entrudo de 2014
Neste Entrudo do ano de 2014 só irá sair para a rua uma Brinca de Carnaval – a do Bairro de Almeirim / Rancho Folclórico Flor do Alto Alentejo e irá apresentar-se por diversos locais do Concelho de Évora, principalmente nas freguesias rurais e quintas ao redor de Évora. Irá também apresentar-se no Centro Histórico (Praça do Giraldo e Praça de Sertório).
No Sábado, dia 1 de Março, participou no Festival Entrudanças, em Entradas / Castro Verde, evento cultural organizado pela Associação PédeXumbo.
Recordemos que...
As Brincas são das manifestações tradicionais mais representativas do Carnaval de Évora. Consistem numa manifestação cultural tradicional, ainda hoje viva, sendo únicas pela forma e pelo conteúdo, pela originalidade e pela criatividade. São um sub-género da dramatização popular, musicadas e coreografadas, tendo por base um fundamento constituído por um “corpus” de décimas, tão características do Alentejo, e um dos pilares das oralidades da cultura popular alentejana.

Excertos de um fundamento escrito por Mestre Raimundo, “As Encantadas”...

Foi assim apresentada a “fórmula” do Mestre iniciar o fundamento no “Grupo das Encantadas”:

MESTRE

1.ª

Senhor venho-o cumprimentar
Com a minha delicadeza
E pedir-lhe a fineza
Se nos deixa aqui apresentar
Nada podemos falar
Sem a sua autorização
O Senhor é o patrão
Eu cumpro o meu dever
Faz favor de me dizer
Se me á licença ou não

2.ª

Fico-lhe grato senhor
Que atenda o meu pedido
Eu fico-lhe agradecido
Muito obrigado pelo favor
Já tenho a rua ao dispor
Pois irei o sinal dar
O povo está a esperar
A nossa apresentação
Dou-lhe um aperto de mão
E vamos já iniciar.

3.ª

A todos muito boa tarde
A todos muita saúde
Que Deus os ajude
Com sua bondade
Esta mocidade
Vem aqui alegremente
Cumprimentar toda a gente
De dentro do coração
Peço-lhe muita atenção
E não cheguem muito para a frente

4.º

Isto é um divertimento
Que nós mandámos fazer
Mas devem de gostar de vir
Este nosso entretimento
Não é um fundamento
Com toda a perfeição
É a revolta de uma nação
É a vida que foi vencida
Com um filho anda fugida
E muitos assuntos se verão.

../...

Continuando a falar sobre as Brincas...
As mensagens da brinca abalam de facto as estruturas sociais mais sólidas: a família, a autoridade, a igreja, o poder instituído, a moralidade e os bons costumes.
Se o fundamento, na brinca, representa a narração de uma situação normal (normalizada) que caracteriza toda uma ordem quotidiana, a principal figura da brinca - o Palhaço/o Faz-Tudo - personifica a desordem, o caos, o diabo, a loucura, em suma, a ausência de ordem, de lei, de respeito, realizando ele, no decorrer de toda a dramatização, a inversão total dos valores veiculados pelos seus restantes companheiros, que fazem os possíveis e os impossíveis para o ignorar - ele, para eles, não existe...
Deste modo, será legítimo afirmar que o Faz-tudo põe em causa  tudo, inclusive a própria brinca e o seu fundamento.
É exactamente por este emaranhado de situações, mais ou menos complexas, que só faz verdadeiro sentido nós encararmos a brinca no contexto mais amplo do próprio Carnaval, inserido este no calendário das principais Festas Cíclicas (Agrárias) Anuais. Não o Carnaval domesticado, legitimado, vendido, bem educado, isto é, o Carnaval citadino e urbano, mas sim aquele tempo de festa, de jogo, onde a transgressão, a loucura, o imoral deveriam ter sido, em eras passadas, os únicos valores, ou melhor, anti-valores aceites num tempo e num espaço de renovação, de exaustão do velho e do gasto, para que o novo (ou renovado) pudesse emergir, ressuscitar, germinar com o aparecimento da Primavera. Daí o denominar-se, tradicionalmente, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a génese da organização natural e humana.

Entrudo para uns e Carnaval para outros...
O tempo do Carnaval era tradicionalmente tempo de festa, de jogo, onde a «transgressão», a «loucura», o «imoral» e a «paródia» deveriam ter sido, em eras remotas, os únicos valores aceites de um tempo de renovação, de exaustão do «velho» e do «gasto» para que o «novo» pudesse ressuscitar, germinar com a Primavera. Talvez daí o facto de se chamar, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) a esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a génese cíclica da transformação natural e da organização social.

Notícias antigas sobre as Brincas de Carnaval de Évora...

O Carnaval
Acerca das festas e divertimentos carnavalescos, publicou hontem o governador civil do districto d’Évora, sr. dr. Domingos Rosado, um edital que contem as seguintes disposições:
(…).
3.ª – As danças, revistas, ou quaesquer grupos de mascaras nas ruas e logars públicos só podem ser consentidas quando vão munidas de licença da autoridade policial, e sempre de forma que não impeçam o transito e o socego publico.
(…).
Notícias de Évora, n.º 6951 de 28 de Fevereiro de 1924 (à pág. 2)

Ainda o Carnaval nas quintas do Louredo e Espinheiro

Com grande animação, realisaram ali as festas nos 3 dias de Carnaval, uma sociedade de rapazes, organizando umas danças, em que se apresentaram decentemente, sendo os promotores das danças, os srs. Jasuino Carrageta e Joaquim da Cândida e outras sociedades. Houve opiniões da maioria, que as danças mais aplaudidas foram as do sr. Jasuino Carrajeta.
Felicitamos as sociedades do Louredo e Espinheiro.

Notícias de Évora, n.º 6962 de 14 de Março de 1924 (à pág.1)

O que eram as Brincas...
Tradicionalmente, as Brincas eram constituídas somente por homens, travestindo-se, se necessário, para o desenrolar do fundamento, numa média de quinze a vinte: um mestre, dois ou três palhaços (os faz-tudos), meia dúzia de músicos, onde a bateria (bombo e caixa) e a concertina têm um papel fundamental, um porta-estandarte e os restantes figurantes para a execução/representação do fundamento.
Convém clarificar que se denomina brinca o grupo de homens ou rapazes que se organizam anualmente (ciclicamente) para a construção e execução de uma dramatização popular durante a época festiva do Carnaval. No entanto, poderá igualmente entender-se por brinca toda a acção dramatizada (o fundamento), musicada (a contradança, a valsa, a canção, etc.) e coreografada (as diferentes formações que têm lugar ao longo de toda a acção: as rodas, etc.). que esse grupo assume nas várias representações que realiza.
No que diz respeito ao fundamento, em termos formais é constituído por décimas de versos rimados. É a alma da brinca.
O fundamento, apresenta um enredo, com princípio, meio e fim, podendo este focar diferentes realidades sócio-culturais e históricas. Diversificada poderá ser a temática desse enredo: episódios da Bíblia, da História de Portugal, da realidade social alentejana, da guerra, contos populares tradicionais, do comum quotidiano, entre outros.

Évora, 2 de Março de 2014

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O Conto dos Coelhinhos, ilustr. de António Couvinha


Contar e recontar o conto tradicional


“Deus inventou o homem para o ouvir contar contos”.
Ditado Popular



O conto tradicional, que chegou até nós hoje, é a forma sobrevivente da narração oral no decorrer da sua mais ou menos longa vida, transmitido de boca a ouvido.
Tal como afirma Italo Calvino, “Quem faz o conto é o ouvinte”, na medida em que o transmite, lhe confere existência e continuidade.

A temática do conto tradicional, do conto de encantar, do conto do maravilhoso, poderá ser enquadrada por muitas perspectivas e enfoques científicos. Uns de natureza mais antropológica e sociológica, outros focando mais a psicologia e a psicanálise, outros ainda podendo ser abordados através do ponto de vista global da filosofia ou mais concretamente da filosofia da educação.

A problemática do conto tradicional agora abordada insere-se numa área em que todas as perspectivas acima referidas são tocadas de um modo integrado.
Este conjunto de eventos agora proposto servirá para, a curto prazo, enquadrar um conjunto de inquéritos–recolha sobre e de contos tradicionais no Concelho de Évora, ao longo de toda a área geográfica do concelho, rural e urbano. Pensamos assim que nos permitirão compreender a complexidade do contar e do recontar contos tradicionais, pelos diferentes actores sociais que hoje habitam o Concelho de Évora.

Tradicionalmente se o conto não for ouvido, nem for contado, é esquecido, morre, desaparece. Se o processo contar / ouvir / contar… for interrompido, esse processo circular de comunicação tradicional e secular, o conto, resultado e veículo da Tradição, desaparece das nossas memórias. Para o erudito Professor José Leite de Vasconcelos os contos tradicionais assemelhavam-se aos “calhaus rolados”, uma vez que os contos têm de ser contados, têm de ser muito “rolados” para se tornarem perfeitos na sua narração e sobrevivência enquanto tradição oral.
Nos nossos dias atrevamo-nos a pesquisar o seguinte, sobre o conto tradicional:

        - quem o conta?
        - como conta?
        - quando conta?
        - porque conta?
        - a quem conta?

A Tradição Oral ou, um pacto através da palavra – a importância sublime do contar e do escutar… é o desafio que nos propomos a nós próprios descobrir.

                        Encontramo-nos hoje a redescobrir os Contos de Encantar. Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação, observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela ­– ela lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas que se formam na sua pequena cabeça.

        E conseguiremos reviver o estádio de infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada de adultos, procurando a verdade absoluta e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do dia-a-dia?
        Tal como diz o Poeta [Beatriz Serpa Branco -A Face e as Sombras, Évora,1969 (p.29)]:

                não se gastou nem se perdeu a infância
                        a nossa infância

                        ficou junto          escondida em qualquer canto da vida
                        sem mudança             igual a ser

                        como a vida que mora por dentro do viver


        Importante é também esta pequena reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen [ Cit.  por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45)]:

          «A infância não é coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! voltar a captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»

        Goethe, um dos grandes poetas da humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:

                «O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo. Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos. Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a princesa não casará com esse miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração». [ Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa, 1984 (p. 195).]

        Segundo Bruno Bettelheim:
            «Os contos de fadas, para além de uma deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»

        E é ainda Bettelheim quem afirma:

            «A história de fadas é essa dádiva de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a desembrulhá-lo com felicidade!».

        Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice Vieira, refere:

          «Pode haver coisa mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»

        Percorramos todos aqueles velhos contos que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
        O homem de hoje, tal como o homem de ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus, Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida  que a Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma, há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar histórias maravilhosas aos seus netos.
        E a criança aqui é um elemento-chave fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses mitos.

        Fazemos hoje ressurgir os contos de encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da humanidade?
        É muito possível que uma das respostas nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
        A relação que tradicionalmente se estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre – não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em sensibilidade.
        O acto de contar um conto nos tempos remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar de uma flor ou o colher de um fruto maduro... acontecia e era um momento vivido como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
        A importância de um Sentido para a Vida era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
         A dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira, a luz e a sombra....
        Ao atentarmos à actual sociedade moderna onde nos inserimos, poderemos ver que ela gera elementos desestruturantes, no sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão – os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso SER mais profundo...
       
        Assim, o homem moderno terá de encontrar uma perspectiva diferente sobre os contos de encantar tradicionais, ou com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente, mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir viver aquém e além da fronteira do espelho, símbolo do símbolo.
        Recordemos Victor Hugo quando afirma que:

        «É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».
        
         Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde está oculta a Pedra Filosofal dos antigos Alquimistas…

        E termino a contar um conto de encantar, recriado admiravelmente por Fernando Pessoa [Poesias , Colecção ‘Poesia’, Lisboa, 1942 (pp.239-241)], que o denominou EROS E PSIQUE :

                                     
Conta a lenda que dormia
                                               Uma Princesa encantada
                                               A quem só despertaria
                                               Um Infante, que viria
                                               De além do muro da estrada.

                                               Ele tinha que, tentado,
                                               Vencer o mal e o bem,
                                               Antes que, já libertado,
                                               Deixasse o caminho errado
                                               Por o que à Princesa vem.

                                               A Princesa Adormecida,
                                               Se espera, dormindo espera.
                                               Sonha em morte a sua vida,
                                               E orna-lhe a fronte esquecida,
                                               Verde, uma grinalda de hera.

                                               Longe o Infante, esforçado,
                                               Sem saber que intuito tem,
                                               Rompe o caminho fadado.
                                               Ele dela é ignorado.
                                               Ela para ele é ninguém.

                                               Mas cada um cumpre o Destino–
                                               Ela dormindo encantada,
                                               Ele buscando-a sem tino
                                               Pelo processo divino
                                               Que faz existir a estrada.

                                               E, se bem que seja obscuro
                                               Tudo pela estrada fora,
                                               E falso, ele vem seguro,
                                               E, vencendo estrada e muro,
                                               Chega onde em sono ela mora.

                                               E, inda tonto do que houvera,
                                               À cabeça, em maresia,
                                               Ergue a mão, e encontra hera
                                               E vê que ele mesmo era
                               A Princesa que dormia.»


´

Rui Arimateia
rui.arimateia@gmail.com



[1]