segunda-feira, 29 de junho de 2009

A Ave e a Pedra


TEOSOFIA E CIDADANIA - Uma Visão Global, Uma Prática Local

A procura de uma praxis teosófica adequada às mentalidades e às exigências éticas do Século XXI levou-nos a nós, aprendizes da Teosofia e inseridos numa comunidade, a reflectir e a trabalhar, a temática: “Teosofia e Cidadania – Uma visão global, uma prática local”.
Os 1.º e 2.º Objectivos da Sociedade Teosófica (1) nele são intuídos, senão expressos, nomeadamente através da inestimável e imprescindível vivência da Fraternidade Universal, assim como da prática na compreensão, na partilha, no estudo do(s) outro(s) e de nós mesmos, para podermos abarcar, compreender, dominar a Realidade à nossa volta e dentro de nós próprios.
Entrámos e instalámo-nos no Século XXI da Era Cristã, num mundo paradoxalmente marcado pela barbárie e pela selvajaria humanas, diria antes sub-humanas, e onde estas tristes mas factuais realidades são moda, basta olhar a televisão, a net, os jornais…
Nos dias de hoje, mais do que nunca, temos de olhar e repensar a essência da natureza humana. Esta encontra-se a ceder aos mais baixos instintos de animalidade, onde a emoção e o mental inferior se desenvolvem perigosamente, pondo em causa uma evolução harmónica, equilibrada e espiritual. A grande tentação das hegemonias e dos imperialismos, olhados pessoal ou colectivamente, quaisquer que sejam as suas colorações – religiosas, económicas, culturais, civilizacionais –, conduzem a Humanidade a cometer autênticos genocídios e inclusivamente deteriorando irreversivelmente a própria vida natural do planeta.
Choques de culturas, choque de civilizações, choque de religiões, aliados à intolerância, ao despotismo e à prepotência, que caracterizam e normalizam a acção humana, são o apanágio do homem contemporâneo onde quer que ele se encontre.
A pegada humana está a marcar indelevelmente o solo fértil de Gaia. O planeta está a sofrer uma imensa e arriscada provação. Falando metaforicamente, o Dragão Negro está a possuir e a dominar as mentes, as consciências e, o que é mais grave, o coração dos homens, transformando os valores de uma cidadania partilhada em práticas de predação, de horror e de insensibilidade.
Nunca as palavras Fraternidade, Religião e Amor, estiveram tão vazias de sentidos e de sentir. O primado do ter sobrepõe-se irremediavelmente ao primado do Ser.
Nunca me canso de ler as palavras de grande sageza, que chegaram até nós por intermédio de Helena P. Blavatsky através da sua obra-prima literária e filosófica “A Voz do Silêncio” (2):
“Que a tua Alma dê ouvidos a todo o grito de dor como a flor de lotus abre o seu seio para beber o sol matutino.
Que o Sol feroz não seque uma única lágrima de dor antes que a tenhas limpado dos olhos de quem sofre.
Que cada lágrima humana escaldante caia no teu coração e aí permaneça; nem nunca a tires enquanto durar a dor que a produziu.”
Lágrimas, terror, sofrimento chegam constantemente aos nossos sentidos através dos mass-media. Infelizmente temos a capacidade tecnológica de presenciar a(s) guerra(s) em directo. A grande quantidade de informação manipulada, distorcida e censurada, entorpece-nos o sentir. Olhamos, vemos, ouvimos, tomamos partido, mas falta responder à grande questão: como actuar? Como agir, enquanto indivíduos racionais e conscientes, perante este caótico estado de coisas? Perante estas “normalizadas” atrocidades de lesa humanidade, destituídas de qualquer ética?
Imaginemos, através de uma imaginação criadora, que contemplamos a Terra dos altos céus: de imediato sentimos na nossa carne a agonia dos seres vivos! A Terra encontra-se coberta de feridas, cheia de cicatrizes, sangrentas, latejantes... causa de sofrimentos desmedidos...
Mais uma vez recorro à palavra legada por um Mestre de Sabedoria, a apontar caminhos, oferecidas por Mabel Collins, no seu livro “Luz no Caminho”: (3)
“Procura em teu coração a raiz do mal e arranca-a... Somente o forte pode destruí-la. O fraco tem que esperar o seu crescimento, a sua frutificação e a sua morte. É esta planta que vive e se desenvolve através das idades...
Não vivas no presente, nem no futuro, mas sim no eterno. Ali não pode florescer esta erva gigantesca...
Cresce como cresce a flor, inconscientemente, mas ardendo em ânsias de entreabrir a sua nova alma à brisa. Assim é como deves avançar: abrindo a tua alma ao eterno.”
Gostaria de transcrever, uma citação atribuída a Mestre Jesus – o Cristo – no momento em que se encontrava na Cruz da Transfiguração: “Eli, Eli, lama Zbacthni.” – “Aqueles que me difamarem, manterão abertas as minhas feridas”. Será esta uma leitura e interpretação destas palavras tão significantes, que os cristãos, principalmente os que optaram pela via da guerra, deveriam continuamente lembrar. Por certo que igualmente se recordarão das tão simples e tão belas palavras de Jesus inscritas no Evangelho segundo São João (4) – “Eis o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.” Fazer a guerra à Humanidade é fazer a guerra a Cristo, é recusar, repudiar e espezinhar a Sua Palavra, o Seu Exemplo, a Sua Memória.
Lembremo-nos da grande verdade de que, não importa quão vasta a escuridão, quão vasta a noite, contudo uma pequena chama de vela detém essa grande escuridão. Na sua insignificância é invencível porque é Luz.
Jesus, o Cristo, não veio ao seio da Humanidade fundamentalmente para sofrer em si próprio a dramatização da morte. Ele não é, nunca o foi, o Cristo morto. A Vida e não a morte, a Luz e não as trevas, são o Seu ensinamento. Ainda no Evangelho segundo São João (5), podemos ler as palavras atribuídas a Jesus: “Eu sou a luz do mundo; o que me segue não andará nas trevas; mas terá a luz da vida.”.
Que cada um de nós mantenha acesa a sua pequena chama. Cada qual, por si, pode tão só significar uma fraca luz, contudo a natureza de todas as chamas é a mesma, é Una. E todas juntas, na sua Unidade Essencial, firmemente dirigidas e erigidas aos céus ensombrados pelas densas nuvens negras do ódio e da ignorância, poderão, a pouco e pouco, afastar as trevas e fazer surgir mais uma vez e sempre a Grande Chama Universal, corporalizada pelo Sol a que os antigos denominavam por Cristo Solar ou Logos Solar...
Mais Fraternidade, mais Compaixão e mais Amor são precisos para que essa Chama Universal se manifeste e realmente se torne uma Realidade viva e verdadeiramente transformante e transformadora nos corações e nas consciências da Humanidade que é Una!
Temos dentro de nós próprios, enquanto seres humanos, a possibilidade de sintetizarmos, de compreendermos e de reproduzirmos o Kaos e ou o Cosmos.
Atentemos à verdadeiramente extraordinária e misteriosa Unicidade de Vida e à prática quotidiana do Autoconhecimento, ambos transmitidos pela Teosofia desde sempre, e tenhamos a ousadia de assumir, segundo a segundo, minuto a minuto, uma Cidadania do Espírito... tal como referia o Senhor Leadbeater:
“Sê aquilo que és e faz o que tens a fazer!”

Rui Arimateia “Textos Teosóficos XI”
Évora Ramo “Boa-Vontade” da Sociedade Teosófica de Portugal



NOTAS:
(1) Objectivos da Sociedade Teosófica: 1.º- Formar um núcleo de Fraternidade Universal da Humanidade, sem distinção de raça, credo, sexo, casta ou cor. 2.º- Encorajar e promover o estudo comparativo das Religiões, Filosofias e Ciências. 3.º- Investigar as leis inexplicadas da Natureza e os poderes latentes no homem.
(2) Livro traduzido para a língua portuguesa por Fernando Pessoa, na Livraria Clássica Editora (Colecção Teosófica e Esotérica), em 1921.
(3) Livro traduzido para a língua portuguesa por Fernando Pessoa, na Livraria Clássica Editora (Colecção Teosófica e Esotérica), em 1921.
(4) São João, XV-12.
(5) São João, VIII-12.

domingo, 21 de junho de 2009

Janus solsticial


JANUS E SÃO JOÃO

De tempos a tempos somos levados a reflectir na importância simbólica, espiritual e maçónica do fenómeno solsticial, inserido este no ciclo de um ano e directamente relacionado com o posicionamento do Sol face à Terra, ou vice-versa. Com efeito, no Solstício de Inverno inicia-se a fase ascendente do ciclo anual; marcando o Solstício de Verão o início da fase descendente.
No simbolismo greco-romano têm o nome de portas solsticiais e são representadas pelas duas faces de Janus, que, por sua vez, deram origem aos dois São João, de Inverno a 27 de Dezembro e de Verão a 24 de Junho. A porta invernal introduz a fase luminosa do ciclo enquanto que a porta estival está relacionada com o, a partir desse momento, progressivo obscurecimento.
Realidade Natural que se faz sentir desde os primórdios da Criação, foi contudo aproveitada pelos Homens Sages para fazer transportar para as vivências da Humanidade outras Realidades, qualitativamente superiores, estas de cariz mais Espiritual e ligadas às tradições dos Mistérios.
Nada melhor que o simbolismo de Janus para que pudesse ser transmitido aos homens o conceito de princípio permanente, pois que, este deus de cara dupla simbolizava o Uno Imanifestado que ligava o passado e o futuro no Único e Eterno Presente.
Os iniciados romanos faziam representar Janus com duas caras, uma, jovem, simbolizando o ano crescente, a outra, velha, símbolo do ano moribundo. Contudo, porque símbolo do Sol, Janus não passava de uma realidade virtual, pois a Realidade Última, perene e inefável, teria que ser apreendida para além da manifestação dualística e exterior.
Deixai-me citar aqui um belo texto que aborda muito inspiradamente o simbolismo de Janus e a sua relação com os dois São João e a Maçonaria. Ouçamos então um pequeno trecho da obra Simbolo, Rito, Iniciacion (por Siete Maestros Masones, Ed. Obelisco, Barcelona, 1992, págs.203-205):

"As festas ritualísticas dos dois São João, como em certa medida toda a celebração litúrgica, repousam pois sobre o seguinte postulado: o tempo cósmico e humano está sujeito à regeneração perene, sendo este vaivém rítmico dos solstícios como que uma imagem e um reflexo sensível e natural desta lei universal.
Já os antigos romanos celebravam anualmente as festas solsticiais dedicadas ao deus Jano, onde poderemos encontrar as mesmas significações simbólicas que se atribuem aos dois São João. Como eles, Jano presidia às fases ascendente e descendente do ciclo anual, e era considerado como o «porteiro» (ianitor), que com as suas duas chaves, uma de prata e outra de ouro, abria e fechava as épocas. Por isso mesmo era denominado também como o «Senhor do Tempo», o criador do mundo e pai dos deuses. Jano possuía as chaves (de clavis, chave) dos mistérios ligados à iniciação. As duas chaves estavam relacionadas com os dois rostos que possuía (por isso também o qualificativo de Jano Bifronte). Um deles olhava para a esquerda e estava relacionado com o passado, com o que fomos, e que como tal condiciona inevitavelmente o nosso presente. Ao rosto da esquerda se lhe adjudicava a chave de prata, chave (ou clave) que abria a porta de acesso aos mistérios ligados com a primeira fase da iniciação, em que o recipiendário tem que tomar consciência de si próprio, esforço que necessariamente implica a regeneração total da psique ou da alma, elevando-a a um plano superior que por sua natureza lhe pertence. Por sua vez, a chave de ouro estava na posse do rosto que olha a direita e o futuro. Poderíamos dizer que o futuro - onde o tempo não é - se relaciona simbolicamente com o mundo celeste e uraniano (Solar), e cujos mistérios estão ligados com a segunda fase da iniciação. E é precisamente no seu papel de «iniciador no Conhecimento», que foi venerado pelos Collegia Fabrorum da Roma Imperial, antecessores directos dos grémios iniciáticos de construtores e artesãos que floresceram na Idade Média, período histórico onde precisamente Jano foi reabsorvido na forma cristianizada de São João Baptista e São João Evangelista, dos que se diz representarem as duas modalidades ou aspectos de um só e mesmo ser."

A Maçonaria, enquanto Escola ligada à Tradição e aos Mistérios Antigos, fez coincidir com os solstícios de Inverno e de Verão, respectivamente São João Evangelista e São João Baptista. Os Santos que representavam um papel importantíssimo no grande Drama da Vida Mistérica: o do enquadramento humano daquela figura divina, daquele avatar universal - o Cristo. São João Baptista - o Precursor, anunciou a Luz e a Palavra de Cristo; por sua vez, São João Evangelista assumiu a continuidade dessa Luz e da Sua Palavra, garantindo a Sucessão Evangélica através da Iniciação Solar.
Luz e Iniciação são as realidades apontadas nestas Festas Solsticiais, que, por sua vez, marcam os pontos zénite e nadir da luz solar do ciclo natural anual.
Luz, manifestada como Fogo Solar, símbolo universal do Poder Divino. Refere H. P. Blavatsky na sua obra As Origens do Ritual na Igreja e na Maçonaria (Ed. Pensamento, S. Paulo, s./d., pág. 9):

"Sobre toda a superfície da terra - do Pólo Norte ao Pólo Sul, dos golfos gelados dos países nórdicos às planícies tórridas do sul da Índia, na América Central, na Grécia e na Caldeia - era adorado o Fogo Solar, como símbolo do Poder Divino, criador da vida e do amor. A união do sol (o espírito, elemento masculino) com a terra e a água (a matéria, elemento feminino) era celebrada nos Templos do universo inteiro."

Refere-nos igualmente Ragon, eminente mação, que o Sol era a mais sublime e natural das imagens do Grande Arquitecto; igualmente, a mais engenhosa de todas as alegorias pelas quais o homem moral e bom (o verdadeiro sábio) simbolizara a Inteligência infinita, sem limites.


Que a Luz nos seja facultada...

Até ao São João de Inverno... Paz a Todos Seres!

terça-feira, 16 de junho de 2009

El Greco e São João Baptista


S. João de El Greco

MÃO CHEIA DE QUADRAS POPULARES AO SÃO JOÃO

Já não há frade, nem freira,
Nem órgão, nem organista,
Nem Santo mais festejado
Que o nosso S. João Baptista.

S. João vai pela proa,
Nosso Senhor por general…
Arriaram as bandeiras:
Viva o Rei de Portugal!

Se fordes ao S. João
Trazei-me um S. Joãozinho:
Se não puderdes co’um grande,
Trazei-me um mais pequenino.

Abaixai-vos carvalheiras,
Com a rama para o chão:
Deixai passar os romeiros,
Que vão para o S. João.

Donde vindes, S. João?
Pela calma, sem chapéu?
- Venho de ver as fogueiras
Que me fizeram no Céu.

Donde vindes, S. João,
Que vindes tão molhadinho?
Venho de ver as fogueiras,
E regar o rosmaninho.

S. João, S. Joãozinho,
Donde vens tão molhadinho?
Venho da ribeira amada
De regar o cebolinho.

Donde vindes, S. João
Pela calma, sem chapéu?
- Venho de apagar as velas
Que se acenderam no Céu…

S. João foi-se deitar
À sombra da laranjeira;
Caiu-lhe a flor por cima:
S. João que também cheira!

S. João adormeceu,
De cansado, no caminho,
E ficou fazendo guarda,
A seus pés, o cordeirinho.

domingo, 14 de junho de 2009

Fogueira de São João


Guernika Festa de São João no País Basco

QUADRAS POPULARES CANTADAS AO SÃO JOÃO

S. João milagroso,
É Santo casamenteiro;
Vamos hoje à sua festa
A ver quem casa primeiro.

Vamos ver nascer o Sol
Na manhã de S. João,
E então verás meu Amor,
Se eu te quero bem ou não.

S. João me prometeu
De me dar um bom marido;
Vou-lhe lembrar a promessa,
Pois o Santo é esquecido.

Ó meu rico S. João,
Casai-me, que bem sabeis;
O casar é aos quatorze
Eu já tenho dezasseis…

S.João casai-me cedo,
Enquanto sou rapariga,
Que o trigo sachado tarde
Não dá palha nem espiga.

Se as silveiras fossem penas
Na noite de S. João,
Quantas coisas escreviam
Essas penas pelo chão…

Se os ramos tivesses língua
E uma boca pr’a falar,
Dos amores desta noite
Muito tinham que contar.

Não te recordas, Maria,
Da noite de S. João?
Tu vias só as estrelas,
Eu as areias do chão…

O trevo de quatro folhas
Quem o encontrar tem fortuna;
Eu já o encontrei uma vez.
Não vi fortuna nenhuma.

Vou ao meio deste monte,
Vou colher o rosmaninho;
Pode ser que eu encontre
O meu amor p’lo caminho,

Ó meu S. João, de Deus,
Ouvi-me, que eu sou solteira;
Destinai o meu marido
Nestas folhas de oliveira.

O cravo junto da rosa
Mete bonita figura;
O rapaz sem rapariga
É como uma noite escura.

Olha o cravinho
Que atiraste ao S. João;
Caiu lá, tão direitinho
Que par’ceu combinação.

Ó meu rico S. João,
Tenho a boca com água;
Declarai o meu destino
Por quem hei-de ser amada.

Ó meu S. João, de Deus,
Amigo da brincadeira,
Destinai minha fortuna
Debaixo da travesseira.

Hei-de levantar-me bem cedo
Na manhã de S. João,
A ver se a minha alcachofra
Está florida ou não.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

São João


Pintura de Leonardo da Vinci

SÃO JOÃO EM ÉVORA E NA TRADIÇÃO

«Ó Precursor, fizestel-a bonita!
Não que teu Christo, incarnação do Bem –
Não seja quem seja o teu Divino Anunciado.
O mal são os que após, sem mystica divina
Nem ternura christã, ou só humana,
Metteram a Jesus na cella da doutrina
Com as algemas do ódio manietado
Para depois manchar de falsa fé
O pobre homem que todo homem é»


Fernando Pessoa,
in “São João” (1)


Évora festeja desde há muito o dia de S. João. Deste antiquíssimo costume permaneceu principalmente a Feira de S. João, tal como nos habituámos a chamá-la desde o momento em que juntávamos as sílabas para tentar pelas primeiras vezes, balbuciando, a Comunicação através da Palavra. Momento tradicionalmente grandioso para as gentes de Évora e dos arredores, em que se faziam negócios e combinavam contratos; se compravam os fatos, o calçado, as mantas, as louças, os queijos e até os capotes alentejanos e as peças de fazenda; se adquiriam por atacado um nunca mais acabar de produtos para a casa e para o seu gasto durante o ano que agora re-começava... E para as crianças, as principais atracções eram os carrosséis e os carrinhos de choque; as farturas ou brenhóis e o algodão doce; eram as barracas de quinquilharias e de brinquedos; e era o Circo!... O Circo com os palhaços e os leões, os malabaristas e os equilibristas; eram as cores e a música, eram os cheiros, eram um nunca mais acabar de sentires e de desejos, de deslumbramento e de espantos... Era a Feira de São João.

Podemos ler no jornal eborense “Sul”, datado de 22 de Junho de 1882:

«Diz a tradicção que o santo popular costumava festejar o seu dia com tal estrondo, com tão ruidosas festas, que d’ahi procediam as trovoadas, que n’essa epocha do anno nos atormentavam os ouvidos. Deus, para pôr termo a taes excessos, condemnou-o a dormir durante os dias 23, 24 e 25, de modo que S. João não póde festejar o seu anniversario.
Allusivas ao somno, que a tradição menciona, conhecemos algumas quadras:

Se S. João bem soubera
quando era o seu dia,
viria do céu á terra
com prazer e alegria.

Desperta, João, desperta
que já chegou o teu dia;
vem ver como te festejam
com prazer e alegria.

S. João adormeceu
nas escadinhas do côro;
deram as freiras com elle
depenicaram-no todo.


Embora esteja condemnado a esse somno de tres dias, S. João não deixa de revolucionar, especialmente, as cabeças das raparigas, que na proxima noite de sexta-feira tentam a sorte, para ver se hão de morrer solteiras ou casadas.
Estas experimentam a alcachofra, aquellas a gema do ovo lançada no copo da agua; umas deixam ao sereno a bacia em que mergulharam as sortes onde estão escriptos os nomes dos mais queridos do seu coração, outras lançam á meia noite do alto das escadas o velho sapato que, se chega ao patamar, lhes dá a triste noticia de que hão de morrer solteiras, e, se fica parado em qualquer degrau, lhes annuncia quantos annos hão de esperar pelo matrimonio.
A noite d’amanhã é, pois, anciosamente esperada pelas que desejam saber se o escolhido do seu coração ainda estará muito tempo sem lhes pertencer.
Até á meia noite, hora destinada para se effectuarem taes crendices, reina o delirio dos bailes e dos descantes em volta da fogueira: e, depois d’uma pequena paragem, proseguem até manhã clara, para á noite reviver com o mesmo enthusiasmo.»


Sobre as festividades do São João de Évora, refere-nos o Professor José Leite de Vasconcellos, por ocasião de uma sua visita à cidade, na companhia de Gabriel Pereira no ano de 1888:
«(...).
Á hora marcada, no dia 23 de Junho, embarcámos no Terreiro do Paço (...). Em breve cortavamos, no mais agradável convivio, as agoas mansas do Tejo, para logo em seguida entrarmos no comboio do Barreiro, que, através de extensas planicies, charnecas e vinhas, nos conduziu sem incidente a Évora.
Das janellas do vagão avistavam-se ás vezes na orla extrema do horizonte fogueiras a arder. Eram as manifestações populares em honra do Precursor do Messias.

Quando os Moiros na Moirama
Festejam a S. João,

no dizer da trova, não admira que nas nossas populações esteja vivo o sentimento de respeito e veneração a elle, embora esta festa não seja de origem catholica, e se filie em velhos cultos naturalisticos: poucas festas tem mesmo significação tão bem conhecida e estudada.
Chegámos de noite. Na estação havia extraordinaria agglomeração de gente á espera de forasteiros que, como nós, iam á feira de S. João. (...).
Parte da feira tinha assento diante d’este templo [ermida de S. Brás].
(...).
Por todos os lados se erguiam barracas de panno com botequins improvisados, tendas de quinquilharias, lojas de dôce, - e se ouvia algazarra enorme e confusa, em que o habitante do extremo Sul do reino misturava a sua algaravia com as pragas rudes do calão dos Ciganos.
(...).

Depois atravessámos ruas tortas e estreitas, apesar de uma d’ellas se denominar pomposamente Rua Ancha, passámos debaixo de arcadas, silenciosas como claustros, e installámo-nos por fim em casa de Gabriel Pereira(...).
Apesar de ser vespera de uma grande feira de anno e noite de S. João, o casamenteiro das velhas e gracioso galanteador das moças, no interior de Evora não se percebia o menor ruido (...).
A minha illusão desvaneceu-se de pressa, porque, quando eu me preparava para dormir, começaram a passar na rua bandos de raparigas, que cantavam ao som de adufes, em toada monotona e prolongada:

S. João perdeu a capa
No caminho do estudo...
Ajuntem-se as moças todas,
Façam-lhe uma de velludo.

S. João, vós sois ôrives,
Porque é que não trabalhaes?
Quem me dera ser thesôro
Do dinhêro que gánhaes.

Esta toada, com o seu quê de mourisco, divergia muito das do Norte e centro do reino (Porto, Beira), que são mais alegres e mais vivas. Por fim tudo cahiu em silencio (...).(2)

Passando muito rapidamente pela tradição etnográfica portuguesa, verificamos que as Festas de São João constituem tradicionalmente a reminiscência de antiquíssimo rito pagão, muito anterior ao cristianismo que, tal como muitos outros, a Igreja assimilou à sua própria liturgia – constituem aquelas festas, na verdade, a adaptação cristã do longínquo culto do fogo através do qual os povos primitivos acompanhavam e celebravam a evolução solar ao longo das estações do ano. Neste caso, assinalavam com enormes fogueiras a passagem do solstício de Verão, em que o Sol atinge o seu máximo esplendor, e daí que o São João se celebre a 24 de Junho, com a abundância de fogueiras e folguedos à sua volta.

Refiramos algumas tradições curiosas recontadas por José Leite de Vasconcellos de Norte a Sul do País:
O Sol, ao nascer, na manhã de S. João, vem a dançar... dá três voltas... ou sete voltas...
Que festa haverá aí tão popular como a do São João? – “‘Té os moiros da Moirama/ Festejam a S. João.” (Do «Romanceiro» de Almeida Garrett).
A noite de São João é a noite das fantasias e do amor: as feiticeiras vão na casquinha de um ovo para a Índia; as mouras encantadas saem dos penedos e das fontes, e estendem os seus tesouros por sobre a relva verde à luz da lua...
Tudo nessa noite é reboliço e vida, tudo é juventude e amor...
Ao saltarem as fogueiras, nove vezes, com um ramo na mão, diz-se: – “Viva São João/Nosso Senhor nos dê muito pão!”, ou, saltam as moças nove vezes a fogueira e dizem de cada vez: – “Em louvor de São João/Que me dê um homem rijo e são!”, e ainda, pega-se numa bacia com água muito clara, passa-se nove vezes sobre a fogueira e depois miram-se na água; se virem a cara, chegam ao resto do ano, se não, não.
Pelo São João as moças saberiam o nome do futuro marido... queimavam alcachofras e ervas pincheiras ou deitavam ovos em água para saberem o futuro...
Por outro lado, as moiras encantadas aparecem cá fora, saídas das fontes e das grutas, são espíritos das Naturezas, despertados em época tão santa e especial - quando os frutos começam a aparecer. (3)

Rocha Peixoto, outro eminente etnógrafo português, vê na crença das mouras encantadas, que nesta noite aparecem associadas à água a mostrarem tesouros escondidos, persistências da “simbólica do Sol renascendo da Terra e triunfando do Inverno; encanto: a luz dominada pela sombra; meadas de ouro: a vitória plena da luz.” (4)
Interessante é também a perspectiva de Dalila Pereira da Costa ao comparar numa sua obra (5) os Oráculos portugueses desde os tempos mais remotos com as fontes de São João:

“E se agora encararmos o testemunho sobre estas antigas práticas oraculares, perpetuadas nos costumes da noite de São João, veremos ainda que elas vêm, tal como outrora no paganismo, ligadas num todo às de finalidade salutar e de fecundidade, revelando o antigo culto naturalista da Deusa [Gê – a Terra Mãe, a Tellus Mater].
Se é sob a égide de S. João Baptista que elas se concentraram sobretudo, a razão não estará no facto do Santo Percursor estar ligado ao culto da água e ainda a um certo aspecto do sacerdócio feminino, de carácter orgiástico, como revelação de antigos ritos de fecundidade?: S. João surge nas margens do rio Jordão baptizando pela água, usando assim as qualidades regeneradoras e redentoras deste elemento, e, no fim, de sua vida, seu sacrifício e morte, virá ligado a uma mulher que encarna esse carácter orgiástico arcaico, Salomé, como sacerdotiza perfazendo num bailado de revelação, a epifania da nudez sagrada e secreta da deusa, com toda a sua força terrível.
Esta data marcada do solstício, aglutinando, concentrando em si a maior parte de todos os ritos pagãos desta religião, que outrora seriam detidos e praticados preponderantemente por um sacerdócio feminino. (...).”

Foi o dia de São João que entre nós concentrou toda a arte mântica ou adivinhatória do paganismo arcaico, vinda da nossa mais funda pré-história. Citado por Dalila Pereira da Costa (6), refere esta autora que Contador de Argote, numa sua obra datada de 1738, denominada De antiquitatibus Conventus Bracaraugustani, a propósito de um conjunto de cantinhos no penhasco do Cachão da Rapa, na margem direita do Douro, diz que as cores destas pinturas, vermelho escuro e azul, segundo o dizer do “vulgo, e, o que é mais, alguns homens nobres, e eruditos (...) se renovão todos os annos em dia de S. João Bauptista pela manhã, e que aparecem mais brilhantes (...)”.


Os cantinhos são quadriláteros divididos em quatro ou mais partes iguais; sinais gravados ou pintados em rochas, que eventualmente possam ter surgido ligados a uma remota arte mântica.

Refere ainda Contador de Argote que junto deste penhasco com estes caracteres, está uma gruta com um portal “e, entrando por elle dentro, se acha em pedra firme huma grande sala com assentos a roda, e no meio uma grande meza, tudo de pedra, segundo dizem pessoas que alli tem entrado, e affirmão ver-se desta sala uma porta que vay para outras mais para dentro” . E continua Dalila Pereira da Costa, “Que o testemunho de Argote, nos revelará um local de alta consagração e de fundo sentido na sabedoria detida então por uma elite sacerdotal dentro duma comunidade de povos, tudo aqui o indicará: a esta sala, para sua reunião, outras mais secretas se lhe seguiam, provavelmente indicando uma progressão iniciática (...)”.

As festividades de São João Baptista e de S. João Evangelista, respectivamente a 24 Junho e a 27 de Dezembro são coincidentes com os solstícios. Assim, periodicamente, somos levados a reflectir na importância simbólica e espiritual do fenómeno solsticial, inserido este no período de um ano e directamente relacionado com o posicionamento do Sol face à Terra, ou vice-versa. Com efeito, no Solstício de Inverno inicia-se a fase ascendente do ciclo anual; marcando o Solstício de Verão o início da fase ascendente. No simbolismo greco-romano têm o nome de portas solsticiais e são representadas pelas duas faces de Janus, que por sua vez, deram origem aos dois São João, de Inverno e de Verão. A porta invernal introduz a fase luminosa do ciclo enquanto que a porta estival está relacionada com o, a partir desse momento, progressivo obscurecimento.
Realidade Natural que se faz sentir desde os primórdios da Criação, foi contudo aproveitada pelos Homens Sages para fazer transportar para as vivências da Humanidade outras Realidades, qualitativamente superiores, estas de cariz mais Espiritual e ligadas às tradições dos Mistérios.
Nada melhor que o simbolismo de Janus – o das duas caras – para que pudesse ser transmitido aos homens o conceito de princípio permanente, pois que, este deus de cara dupla simbolizava o Uno Imanifestado que ligava o passado e o futuro no Único e Eterno Presente.
Os antigos iniciados romanos faziam representar Janus com duas caras, uma, jovem, simbolizando o ano crescente, a outra, velha, símbolo do ano moribundo. Contudo, porque símbolo do Sol, Janus não passava de uma realidade virtual, pois a Realidade Última, perene e inefável, teria que ser apreendida para além da manifestação dualística e exterior.

«As festas ritualísticas dos dois São João, como em certa medida toda a celebração litúrgica, repousam pois sobre o seguinte postulado: o tempo cósmico e humano está sujeito à regeneração perene, sendo este vai-vem rítmico dos solstícios como que uma imagem e um reflexo sensível e natural desta lei universal .» (7)

Muito mais se poderia dizer e especular e argumentar, sobre as diferentes iniciações mistéricas, perante as diversas culturas e épocas, sobre superstições e realidades, sobre costumes bizarros e cultos atávicos, contudo, gostaria tão só referir alguns conceitos e realidades energéticas, porque ao meditá-los sinto a possibilidade de transformação de mim próprio, via um autoconhecimento que se pretende cada vez mais profundo.

O SOL, primeira realidade que, para mim, é fundamental, e elemento chave das Festas de S. João. Olho os solstícios como dois momentos cruciais no Ciclo da Natureza e do Ano. Associo realidade ligadas à transformação, à purificação, à mudança, ao crescimento e à colheita, à luz que combate as trevas - física, psicologica e espiritualmente. Arquétipo.

O FOGO, realidade ligada desde o primeiro momento com a criação, a manutenção da Vida e a Iniciação aos Mistérios da Humanidade. Associo a Terceira Pessoa da Trindade - o Espírito Santo, mas indissociável está o CRISTO e o BAPTISMO pelo Fogo. Arquétipo.

A FESTA, novamente a Iniciação aos Mistérios. A dramatização dos Rituais. A Consagração do Sol, do Fogo, da Natureza, do Cristo - enquanto Realidades Cósmicas. Vêm também as Fogueiras, a Magia Naturalista das Mouras e das Fontes, os Encantamentos e a Adivinhação, a Poesia, a Aldeia e o Paganismo. Arquétipo.

Todas as Realidades Arquetípicas, quando vividas com autenticidade, amor, tolerância, são Verdadeiras.
Tenhamos sempre em conta as palavras do Mestre Jesus, chegadas até nós pela palavra de S. João Evangelista:
«Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos ordenei. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor: chamei-vos amigos, porque vos manifestei tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que escolhestes a mim; fui eu que escolhi a vós e vos constituí, para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja duradouro, a fim de que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda. Isto eu vos ordeno: que vos ameis uns aos outros.» (8)

PAX PROFUNDA

Rui Arimateia
Évora, no mês de São João de 2009

NOTAS:
(1) FERNANDO PESSOA – Santo António, São João São Pedro, ‘ensaios’, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1986 (Introdução de Alfredo Margarido).
(2) J. LEITE DE VASCONCELLOS – Ensaios Ethnographicos, Vol.IV, Livraria Classica Editora, Lisboa, 1910 (pp. 317-320).
(3) LEITE DE VASCONCELLOS, José – Etnografia Portuguesa - Tentame de Sistematização, Vol.VIII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1982 (pp.378-425).
(4) PEIXOTO, Rocha – Etnografia Portuguesa, Col.’Portugal de Perto’,nº20,Publicações Dom Quixote,Lisboa, 1990 (pp.57-64).
(5) PEREIRA DA COSTA, Dalila – Da Serpente à Imaculada, Lello & Irmão Editores, Porto,1984 (pp.272-273).
(6) Op.cit., pp. 244-245.
(7) in SIETE MAESTROS MASONES – Simbolo, Rito, Iniciation, Ed. Obelisco, Barcelona, 1992 (p.203).
(8) Evangelho Segundo São João, XV,12-17.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Natureza - Lei da Harmonia


CIÊNCIA E TEOSOFIA

“Bem-aventurado aquele que se tornou sábio, que já não especula sobre o mundo e busca em si mesmo a Pedra da Sabedoria eterna.
Somente o sapiente é digno de ser adepto – ele transmuta tudo em vida e ouro, sem precisar de elixires.
A retorta sagrada nele exala – o rei presente nele está – Delfos também; e finalmente ele compreende: Conhece-te a ti mesmo.”
NOVALIS



Já vai distante o ano de 1977 em que pela primeira vez contactei com a Teosofia. Toquei e mergulhei nela, embora não estivesse só porque sempre presentes estivessem os Irmãos e Irmãs do Ramo Boa-Vontade.
Olhando agora a uma distância confortável para me permitir uma observação descomprometedora, verifico que a Teosofia me deu um método de trabalho, de investigação, de pensar e de construir a relação com o outro. Deu-me um método para uma aprendizagem em exercício da vida do dia a dia.
Aprender a pensar, aprender a relacionar-me comigo próprio – com os meus sentimentos, a minha sensibilidade, os meus medos e a minha força interior – e com os outros que me rodeavam, independentemente do seu sentir e dos seus ideais.
Penso ter conseguido interiorizar alguns conceitos fundamentais, e que, por sua vez, se foram constituindo enquanto ferramentas essenciais para um progressivo crescimento interior: o Autoconhecimento, a Unicidade de toda a Vida, a importância do Eterno Presente, a urgência do Serviço... Tenho consciência de que o meu comportamento perante a Vida, perante a Sociedade, e perante os outros, desde então, têm sido inspirados por esses conceitos e realidades.
O Ramo Boa-Vontade foi o cadinho onde se misturavam as diferentes experiências dos seus membros. Foi o laboratório onde se testavam condutas, se reflectiam saberes e sentimentos; onde se partilhavam certezas e incertezas, angústias e alegrias; onde se construíam personalidades; onde se desfaziam dogmas e preconceitos; onde se alicerçavam as bases para um viver mais altruísta, mais autêntico, mais teosófico. O trabalho contínuo do Ramo foi fundamental para o crescimento e o desenvolvimento de um espírito teosófico autêntico e duradoiro.

A Ciência é a busca da Verdade do mundo exterior, tal como a Teosofia é a demanda da Verdade dos mundos internos, espirituais. São, por assim dizer, complementares, possuindo uma ferramenta em comum, extremamente importante – a da investigação.
A investigação é a pedra-de-toque para o aprofundamento de uma e de outra.

Normalmente quando pensamos em Ciência logo dirigimos os nossos pensamentos para as notícias das grandes descobertas da Física, da Matemática, da Biologia ou da Astronomia… Logo pensamos em Teorias da Relatividade, em Hipóteses Quânticas, em grandes descobertas no domínio do átomo e do atómico… Contudo faz-me mais sentido olhar não tanto as diferentes disciplinas da Ciência, mas principalmente o próprio processo científico, o modo de investigação que exige um método no sentido de nos auxiliar a descobrir a Verdade das coisas, as causas, os efeitos, a sua evolução, etc.
Também a Teosofia poderá ser encarada como um sistema de pensamento complexo que o ser humano tem necessidade de compreender cabalmente.
Através do estudo e da compreensão da Teosofia, a busca da Verdade Una é o desafio que permitirá ao ser humano estudar-se e compreender-se – enquanto Microcosmos – e estudar e compreender a Natureza – enquanto Macrocosmos –, em todas as suas dimensões, estados e realidades.
Conceitos tais como método e investigação remetem-nos para outros, tais como observação e auto-conhecimento. Estes últimos fundamentais para que não só o espírito científico dos nossos dias, mas também o espírito teosófico, façam sentido. Uma observação profunda, atenta, do que nos rodeia é fundamental para nos apropriarmos da realidade. Esta apropriação, e sua cabal compreensão, só serão conseguidas plenamente através de um autêntico e genuíno Auto-conhecimento.
A função da Teosofia, hoje e sempre, tal como o recorda a Sr.ª Radha Burnier, é o da Regeneração Humana – aquela qualidade criativa inerente ao ser humano que faz com que o velho seja continuamente transmutado em novo através de um dinâmico e contínuo processo de recriação e de regeneração das mentes.
Refere H. P. Blavatsky em “A Voz do Silêncio”:
“- Não separarás o teu ser do SER, e do resto, mas fundirás o oceano na gota de água e a gota de água no oceano.
Assim estarás em acordo com tudo quanto vive…”

Observação e Investigação, são duas premissas indissociáveis para aquele que quiser levar a cabo um autêntico trabalho Teosófico, assim como um correcto trabalho científico.

Refere-nos J. Krishnamurti, ao longo de toda a sua obra, que a mente científica é objectiva, sendo a sua missão descobrir, perceber. Desta descoberta, desta percepção a Ciência tira conclusões, constrói teorias. A mente move-se de um facto para outro facto. Contudo não deverá estar presa a condicionalismos subjectivos criados por imagens e teorias e ideologias do passado, do vivido. A mente científica, nesta diferente dimensão que K. nos apresenta, é uma mente nova e criadora, é uma mente que utiliza a observação e a experiência para captar a essência da realidade que nos é apresentada. Esta mente nova está pronta para o fenómeno da mutação, da transformação radical, do pensar e do agir. Contudo esta observação não é dicotómica, tal como o senso comum nos “dita e obriga”, esta observação não tem nem observador nem coisa observada, não cria uma relação de sujeito/objecto – somos todos observadores, somos todos sujeitos, todos temos o direito e o dever de usar e deixar usar a palavra, a comunicação.
Este direito à palavra, que deveria ser comum a toda a espécie humana, dá-nos a possibilidade de acesso a um estado de comunhão com o outro quando essa palavra é correctamente emitida e percebida.
Um dos papéis fundamentais da Teosofia é o de tentar encontrar uma linguagem essencial e comum a toda a Humanidade, nomeadamente através da concretização dos seus dois primeiros Objectivos:
1.- Formar um núcleo de Fraternidade Universal da Humanidade, sem distinção de raças, sexo, casta ou cor.
2.- Promover o estudo comparativo das Religiões, Filosofias e Ciências.
Para terminar, gostaria de recordar um dos teósofos cujas postura e metodologia de trabalho influenciou várias gerações, e refiro-me a C. W. Leadbeater. Este cientista da Teosofia defendia como verdadeiramente fundamental para uma demanda teosófica e científica rigorosas o seguinte:
“Faz o que tens a fazer e sê aquilo que és … não dês importância a atitudes marcadamente convencionais, sê tu próprio… o que as pessoas pensam ou dizem acerca de ti, aprovando ou desaprovando as tuas acções, é indiferente para o teu real desenvolvimento… não creias em nada que não experimentes e não comproves por ti próprio e em ti próprio…”, são alguns dos pensamentos que C.W.L. deixa transparecer nos seus escritos, traçando indelevelmente uma via para o Auto-conhecimento e para uma Ética vivencial profunda.


Évora, 20 de Abril de 2004


Rui Arimateia Textos Teosóficos X
Ramo Boa-Vontade de Évora Sociedade Teosófica de Portugal

domingo, 7 de junho de 2009


Claustro Catedral Évora

NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.


Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!


Valete, Frates.

[Fernando Pessoa Mensagem]

terça-feira, 2 de junho de 2009

A Rosa Mística...


Catedral de Évora

A ESSÊNCIA DA TEOSOFIA

«Para além de todas as listas e enumerações de princípios deverá sempre permanecer a afirmação do UNO – a Realidade inefável da qual e na qual todas as coisas têm o seu ser. Não poderá haver uma cabal compreensão da Teosofia sem a constante referência a esta fundamental Unidade... — a UNICIDADE DA VIDA.»[1]

A essência da Teosofia consiste na harmonização perfeita do Divino com o humano no homem. É esta a máxima que podemos encontrar subjacente em textos teosóficos clássicos tais como o da Voz do Silêncio de H. P. Blavatsky. Contudo, o homem de hoje é seguidor acérrimo de um estar e de um ser a que convencionou denominar por modernidade e que caracterizou segundo diversos itens conforme o seu estado de espírito, o seu grupo de pertença ou referência sócio-económica, segundo a sua ideologia, crença ou o seu particular sistema de valores. No que respeita à nossa sociedade em particular, modernidade é sinónimo de consumo e este, por sua vez contrapõe-se a estados do Ser e do Sentir onde o Escutar e o Criar permitem um tal Estar-em-Plenitude que, em última análise vão ao encontro da famosa máxima socrática: Homem, conhece-te a ti próprio!... E, conhecendo-te, conhecerás o Universo e os próprios deuses!...
Livros como A Voz do Silêncio são obras não para serem consumidas, no sentido mais corrente do termo, mas para serem encaradas como portais que nos permitem o tal Estar-em-Plenitude. Contudo, não basta bater e abrir no portal, será necessário olharmos para a obra como se estivéssemos a olhar um espelho, com disponibilidade, sem julgamento ou pré-conceito, e olharmo-nos no fundo de nós próprios, onde, e só onde, teremos acesso àquele Sentir, àquele Ser que oferece tão generosamente o acto de Criar. Mas não deixemos de prestar atenção ao que é referido:
"Não separarás o teu ser do SER, e do resto, mas fundirás o oceano na gota de água, e a gota de água no oceano.
Assim estarás em acordo com tudo quanto vive..."
[2]
Os três Fragmentos de A Voz dos Silêncio, por sua vez retirados do Livro dos Preceitos Áureos, escritos desde tempos imemoriais, dão-nos indicações muito precisas, simultaneamente simples e complexas, sobre a demanda do Homem Interior, sobre a Iniciação aos Mistérios, através do Autoconhecimento e da Renúncia. O Homem Interior olhemo-lo como à pérola dentro da concha, no fundo incerto e desconhecido do Oceano — não a vislumbramos, mas ela está lá! Um Iniciado nos Mistérios, em última análise, é o Ser que olha em frente e SABE o Caminho a percorrer, isto é, conhece o Sentido da Peregrinação. Ter acesso aos Mistérios é compreender os fins últimos da VIDA CÓSMICA, em que a vida e a morte humanas e terrenas não passam de fenómenos episódicos. Pela Renúncia da vida dos sentidos, o Homem alcança a Vida Eterna, na medida em que consegue escutar o SOM SEM SOM, o Som da Criação — A VOZ DO SILÊNCIO.

Uma Lei Fundamental e Quatro Ideias Básicas da Teosofia
[3]
(segundo H. P. Blavatsky):

«A unidade radical da essência última de cada parte constituinte dos compostos da Natureza — desde a estrela ao átomo mineral, do mais elevado Dhyan Choan
[4] ao mais pequeno infusório, no verdadeiro sentido do termo, e quando aplicado aos mundos espiritual, intelectual, e físico —esta unidade, é a única lei fundamental da Ciência Oculta.

Observe as seguintes regras:
Não importa o que se possa estudar n’ «A Doutrina Secreta», deve sim deixar-se a mente manter-se firme, como base da sua ideação, em relação às seguintes ideias:
a) A UNIDADE FUNDAMENTAL DE TODA A EXISTÊNCIA. Esta unidade é uma coisa completamente diferente da noção que vulgarmente se tem de unidade — como quando dizemos que uma nação ou um exército estão unidos; ou que este planeta está unido àquele por linhas de força magnética ou semelhança. A mensagem não é essa. Ela é a de que a existência é UNA, não uma colecção de coisas ligadas umas às outras. Fundamentalmente há UM Ser. O SER tem dois aspectos, positivo e negativo. O positivo é Espírito ou CONSCIÊNCIA. O negativo é SUBSTÂNCIA, o sujeito da consciência. Este Ser é o Absoluto na sua manifestação primária. Sendo absoluto nada há para além dele. É o SER-TOTAL. Ele é indivisível, de outro modo não seria absoluto. Se uma parte pudesse ser separada, a que restasse não poderia ser absoluta, porque surgiria imediatamente a questão da COMPARAÇÃO entre ela e a parte separada. Comparação é incompatível com qualquer ideia de absoluto. No entanto, é claro que esta EXISTÊNCIA UNA fundamental, ou Ser Absoluto, deverá ser a Realidade em qualquer forma que exista.
O Átomo, o Homem, o Deus são, quer cada um separadamente, quer todos colectivamente, o Ser Absoluto na sua análise última, que é a sua REAL INDIVIDUALIDADE. É esta ideia que deverá prevalecer sempre no fundo da mente para servir como base a toda a concepção que resulte do estudo da Doutrina Secreta. No momento em que esquecermos isto — e é muito fácil fazê-lo quando estamos ocupados com alguns dos muitos aspectos da Filosofia Esotérica —, a ideia de SEPARAÇÃO sobrevem e o estudo perde o seu valor.
b) A segunda ideia a fixar é a de que NÃO HÁ MATÉRIA MORTA. Todo átomo último está vivo. Nem poderia ser de outro modo, uma vez que todo o átomo é ele próprio fundamentalmente Ser Absoluto. Por isso não existem coisas tais como espaços de Ether
[5] ou Akasha[6], ou o que quer que lhe chamais, nos quais anjos e elementais se divertem como trutas na água. Isso é uma ideia comum. A verdadeira ideia mostra que cada átomo de substância, não importa de que plano, é ele próprio uma VIDA.
c) A terceira ideia a fixar é a de que o Homem é o MICROCOSMOS. E sendo-o, então todas as Hierarquias existem dentro dele. Mas na verdade não existe nem Macrocosmos nem Microcosmos mas UMA EXISTÊNCIA. O grande e o pequeno existem como tal apenas quando visualizados por uma consciência limitada.
d) A quarta e última ideia básica a fixar é a de que está expressa no Grande Axioma Hermético. Na realidade ela é o somatório e a síntese de todas as outras.
O que está Dentro é como o que está Fora; assim como o Grande é como o Pequeno; o que está em cima é como o que está em baixo; não há senão UMA VIDA E UMA LEI; e o que trabalha é UNO. Nada é Interior, nada é Exterior; nada é GRANDE, nada é Pequeno, nada é Alto, nada é baixo, na Economia Divina.
Não importa aquilo que estudarmos n' «A Doutrina Secreta», deveremos sim, correlacioná-lo com estas ideias básicas.»
[7]

Rui Arimateia "Textos Teosóficos IX"

Ramo Boa-Vontade de Évora Sociedade Teosófica de Portugal

NOTAS:
[1] Ianthe H. Hoskins — Foundations of Esoteric Philosophy from the writings of H.P. Blavatsky, Ed. The Theosophical Publishing House Ltd, Londres,1980.
[2] H.P.Blavatsky — A Voz do Silêncio, Col. 'Teosófica e Esotérica'-V, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1921 (Versão portuguesa de Fernando Pessoa, pág. 60).
[3] In «The Secret Doctrine» de H.P.Blavatsky, Londres, 1888.
[4] Do Sânscrito, significando, literalmente, “Os Senhores da Luz”. Os mais elevados deuses, correspondendo aos Arcanjos da tradição Católica Romana. São as Inteligências divinas encarregadas pela supervisão do Kosmos.
[5] Ether, segundo H.P.Blavatsky, é um agente material extremamente subtil que ‘envolve’ toda a manifestação física.
[6] Akasha, palavra do Sânscrito que, ainda segundo H. P. Blavatsky, significa a essência espiritual subtil e super-sensível que penetra todo o espaço. É o Espaço Universal em que permanece imanente a Ideação eterna do Universo nos seus sempre mutáveis aspectos sobre os planos da matéria e da objectividade... Akasha é a substância viva e primordial... Todas as formas e ideias do universo vivem nele...
[7] in Foundations of Esoteric Philosophy from the writings of H.P.Blavatsky , Organização, Prefácio e Notas por Ianthe H. Hoskins, Ed. Theosophical Publishing House Ltd., Londres, 1980. Tadução do Ramo "Boa-Vontade" (Évora) da Sociedade Teosófica de Portugal.