segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A GEOGRAFIA POSSÍVEL DO ARCAICO RITUAL DO BOIZINHO DE SÃO MARCOS


A geografia possível do antigo ritual da entrada do Boizinho de São Marcos nas igrejas e nas ermidas do Alentejo no dia da sua devoção – 25 de Abril

 
Rui Arimateia[1]

 
Identidade e Tradição

 

A Identidade Cultural de um povo manifesta-se e pode compreender-se através das suas tradições mais enraizadas, mais profundas. Assim, para entendermos o Mistério Religioso mais profundo das nossas antigas tradições culturais, vindas muitas vezes dos alvores da civilização humana, só o poderemos compreender minimamente se estivermos munidos de três ferramentas metodológicas muito especiais de abordagem e de interpretação simbólicas, para a desocultação dos significados mais profundos do Espírito Religioso de que se encontra imbuído.

As três ferramentas, são:

1.ª- A Poesia – pois esta permite-nos falar a língua dos Deuses;

2.ª- A Imaginação Criadora – permite-nos ouvir e entender a voz dos Deuses;

3.ª- A Analogia – permite-nos compreender a intenção mais profunda nas diversas manifestações dos Deuses.

Os ritos e os mitos são transmitidos entre os homens através de símbolos, de gestos e de palavras; são autênticas mensagens vivenciais que formam a tradição, a identidade, o sentimento colectivo, o legado da família, o património, etc. Contudo, estão em risco de já não se lhes compreender o sentido mais profundo… o significado mais íntimo, mais essencial, tornando-se necessariamente a dramatização manifesta menos sentida e mais superficial.

Uma pergunta impõe-se – o que é a Tradição?

Procurar saber o que realmente significa a palavra tradição não será parecido com o gesto de descascar uma cebola à procura da cebola?

As realidades dos termos – Tradição, Mito, Identidade, Símbolo – são, nos nossos dias, conceptualmente muito semelhantes.

O que mais me satisfaz para explicar o seu significado mais operacional e me leva a melhor entender a essência dessas palavras é o facto de todas elas funcionarem como que uma espécie de TRANSPORTADORA! Uma vez que, ao longo dos tempos e dos espaços, transportam consigo, na sua essência, EXPERIÊNCIAS, MENSAGENS e SENTIMENTOS, mais ou menos crípticos, mas passíveis de serem entendidos e transmitidos pelas diferentes gerações, ao longo de séculos e séculos de relações comunitárias. Uma vez que sem comunidade não existe transmissão…

No fundo, a Tradição é o passado tornado vivo no nosso presente que construímos aqui e agora, conforme nos ensina magistralmente o Prof Javier Marcos Arévalo num dos seus trabalhos de reflexão sobre estas matérias da Tradição, do Património e da Identidade:

“A tradição seria algo como que o resultado de um processo evolutivo inacabado com dois pólos dialecticamente vinculados: a continuidade recriada e a mudança. A ideia de tradição remete para o passado, mas também para um presente vivo. Aquilo que do passado permanece no presente isso é a tradição. A tradição seria, então, a permanência do passado vivo no presente.” [Arévalo, 2004]

 

Os Povos e o Território

 

Inúmeros e diversificados, com as suas idiossincrasias, foram os povos que habitaram o território que hoje constitui Portugal, e particularmente o território alentejano, apresentando cada qual as suas especificidades culturais e religiosas, os seus costumes e mentalidades próprios.

Desde os tempos pré-históricos que as populações autóctones do Alentejo, foram continuamente contactadas e influenciadas por migrações de incontáveis tribos do Centro e do Norte da Europa e também Norte de África. Enquadradas civilizacionalmente por Romanos, por Visigodos, por Judeus, por Muçulmanos e por Cristãos.

Todos estes povos e civilizações teriam, em última análise, um anseio comum – o de sobreviverem e o de legarem aos seus descendentes modos de vida menos austeros e menos adversos do que aqueles que eles teriam suportado ao longo das suas peregrinações e estadias pelos diferentes territórios atravessados e habitados.

 
Afirma José Leite de Vasconcelos no seu opúsculo denominado «Sur les Religions de la Lusitanie» [Vasconcelos,1938] que:

 “Ao paganismo lusitano-romano sucedeu o Cristianismo; (…).

 A Igreja, impotente para extinguir completamente o paganismo, santificou numerosas crenças; (…). Os simpáticos deuses tópicos, tão queridos do povo simples, transformaram-se em “santos patronos”, a quem os devotos não deixaram de render o antigo culto, embora sob uma outra forma; (…).

Herdeira de inúmeros sistemas religiosos tão diferentes, a nossa religião popular é propriamente uma amálgama; descobre-se nela ainda elementos naturistas, animistas e politeístas.

As ideias, e sobretudo as ideias religiosas, raramente se extinguem: uma vez adquiridas pela alma humana, podem experimentar mil mudanças, sofrer e confranger-se, mas resistem levantando-se sempre contra o inimigo que as ataca.”

 

Nos primórdios do Cristianismo a maioria das comunidades, principalmente as que viviam fora do termo das grandes cidades, nos campos e nas aldeias, subsistiam através da prática da agricultura e da criação de gado. Consequentemente foram por elas reinventadas, renomeadas e reutilizadas ao longo dos séculos, diversas Entidades Divinas Protectoras (os deuses tópicos, segundo José Leite de Vasconcelos), substituídas, no catolicismo popular, pelos Santos Oragos que, responsáveis pela produtividade e fertilidade das terras e dos animais, beneficiavam, em última análise, as populações que lhes erigiam templos e altares, celebrando, ao longo do ano, festas e romarias e oferecendo-lhes ex-votos e orações… numa corrente infindável de ofertas e de promessas… em troco de favores de saúde e longevidade para pessoas, animais e plantas…

O Papa Gregório I, no século VII, reconhecendo a maneira de sentir das populações, nomeadamente das populações rurais e aldeãs, instruiu o clero no sentido de, se se encontrasse entre aquelas populações simples, crenças pagãs profundamente enraizadas, as quais não pudessem ser eliminadas facilmente, fossem transformadas em práticas cristãs:

“(…) e como eles têm um costume que consiste em sacrificar muitos bois ao Diabo, substituam-no por qualquer outra solenidade, como um dia de Consagração ou os Festivais dos santos mártires… nessas ocasiões podem construir abrigos de ramos para si próprios à volta das igrejas que dantes foram templos, e celebrar a solenidade com festividades devotas. Não devem sacrificar mais animais ao Diabo, mas podem matá-los para comer e em louvor de Deus, e agradecer ao que concede todas as dádivas a abundância de que gozam.”    [Bancroft, 1991]

 

No caso das Festas e Romarias dedicadas a São Marcos, foi criada, pelo espírito humano, toda uma dramatização ritual, podendo nós descobrir nela os resquícios das grandes Mitologias do passado pagão, tornadas mais persistentes e duradoiras enquanto os homens permanecessem com a sede do Sagrado e com o grande desejo de viverem e de sobreviverem, por mais vicissitudes que eventualmente pudessem ter sofrido, ao longo de um punhado de milénios de evolução, na construção de civilizações e culturas com as mais diversificadas tonalidades e colorações. [Arimateia,1992,1993]

 

A distribuição geográfica da Festa de São Marcos no território do Alentejo  

 

No território português, a Festa do Touro de São Marcos concentra-se preferencialmente no nordeste alentejano, junto à raia extremenha espanhola. Uma Festa quase clandestina… proibida pelas Constituições e Visitações eclesiásticas mas, apesar de tudo, realizada em diversos lugares do Alentejo… Assim como eram proibidas as festas com touros nos adros das igrejas… Costume muito comum por todo o Alentejo.

 
Passo a referir os locais onde, no Alentejo, se conhece notícia da existência do culto a São Marcos:

Montalvão, Póvoa e Meadas, Nisa, Amieira, Tolosa, Santo António das Areias, Gáfete, Aldeia da Mata, Portalegre, Alter do Chão, Alter Pedroso, Chancelaria, Seda, Avis, Elvas, Pardais, Evoramonte, Évora, S. Marcos da Abóbada, Serpa, Vila Nova de S. Bento, Alvalade, Sines, São Marcos da Ataboeira.

Em algumas localidades não há senão pequenas referências num ou outro autor clássico da Etnografia, sendo necessárias pesquisas locais mais aprofundadas.

 No Alandroal não foi encontrada qualquer referência relacionada com o culto de São Marcos, contudo, no texto de uma Visitação à Igreja de Santa Maria do Alandroal, datada de 22 de Julho de 1534, apareceu uma proibição no sentido de não se fazerem corridas de touros no adro da igreja sob pena de excomunhão, uma vez que a população subia para os telhados da igreja, provocava-lhe danos e fazia muito barulho, o que não se coadunava com o serviço de Deus e da Igreja. [Proemça, 1534]

 Muito importante foi, e ainda é, a Festa de São Marcos em Santo António das Areias, no concelho de Marvão. O ritual da entrada do boizinho de São Marcos na Igreja Matriz, ainda se fazia com regularidade nos anos de 1920. [Arimateia/Oliveira, 2016]

O milagre da mansidão do touro de São Marcos e o rito da entrada do touro ou bezerro na igreja de Santo António das Areias e de outras igrejas e ermidas do Bispado de Portalegre aconteceu regularmente até 1924. Interrompendo-se pela intervenção coerciva do Bispo de Portalegre, D. Domingos Maria Fructuoso.

Apesar de tudo, no dia 25 de Abril de 1997, nas Festas de São Marcos em Santo António das Areias, aconteceu a reactualização do ritual da entrada do boizinho na Igreja Matriz. A devoção popular a São Marcos continuava viva na memória e nos sentimentos mais profundos da população das Areias.
 
Terra de criadores de gado, onde a transumância acontecia por rotas milenares, região farta de águas e cruzamento de antigos caminhos viários a partir nomeadamente do século V da nossa Era. Condições mais do que suficientes para terem dado origem a tradições religiosas arcaicas relacionadas com a Religião Popular criada, vivida e interiorizada pelas populações do território das Areias. Com a sacralização do Espírito do Lugar – local onde acontece o encontro, a dramatização ritual, a festa, a troca, a partilha e a consequente reprodução da Vida – a Romaria, a Festa e o culto a São Marcos foi acontecendo e crescendo mantendo-se activa ao longo dos séculos…

A transição do paganismo para o cristianismo, reorganizando os cultos ancestrais… foi muito bem apresentada, como atrás citámos, por José Leite de Vasconcelos: Ao paganismo lusitano-romano sucedeu o Cristianismo (…). A Igreja, impotente para extinguir completamente o paganismo, santificou numerosas crenças. [Vasconcelos,1938].

 

A principal característica do rito do tourinho de São Marcos, é a transformação do temperamento bravio do animal em manso, a partir do momento em que ele incorpora as invocações do sacerdote.

Era através da voz, e empunhando firmemente o hissope, que o sacerdote lhe ordenava:

 – Entra Marcos! Entra Marcos!

O bezerro é intimado a parar à porta do templo e de seguida a dirigir-se pacificamente para o seu interior.

Era este o milagre de São Marcos: fazer com que um bezerro bravo, convidado a entrar no templo pela água benta e pelo nome do Santo, se acalmasse e que, apesar da multidão, febril de excitação e altitroante o rodeasse e o comprimisse, este obedecia prontamente às palavras e aos gestos rituais do sacerdote.

Transformava-se num boi bento, que não era sacrificado in situ mas que no fundo retinha e manifestava, durante um curto período de tempo, propriedades de cura… pelo menos para as crianças mais bravas. Em certos locais (em Gáfete), o boizinho, após entrar na ermida, era benzido com água benta e o sacerdote batia-lhe na cabeça com uma cruz de madeira. Mais tarde a mesma cruz era usada para acalmar os meninos também com uma batida nas suas cabeças…

 
É enorme a diversidade cultural da Festa de São Marcos, nomeadamente em Portugal (Alentejo) e em Espanha (Extremadura e Andaluzia). Contudo, encontramos a devoção a São Marcos, com outras manifestações formais e performativas, por toda a Península Ibérica, Açores, Canárias, por toda a América Latina de língua castelhana e ainda no Brasil.

Como curiosidade refiramos que, particularmente na Estremadura espanhola, este culto a São Marcos, com a entrada do touro na igreja, teve um grande desenvolvimento, com a notícia de muitos prodígios e milagres. Esta Festa foi proibida em Espanha, por real provisão, a 6 de Abril de 1753. Mas foi tão somente em meados do Século XIX que o costume do touro de São Marcos, foi suspenso definitivamente. Anteriormente foi muito festejado nas localidades de Brozas, Casas del Monte, Casas de Don Gómez, Pozuelo de Zarzon, Mirabel, Talayuela, Trujillo e muito possivelmente naquelas povoações de Badajoz pertencentes ao Priorado de S. Marcos.

 
Ainda hoje se organizam as festas, com romaria e procissão na pequena ermida de S. Marcos de Seda/Chança, concelho de Alter do Chão, onde ainda nos inícios do século XX se celebrava intensamente o culto do boizinho de S. Marcos.

Por informação de Susete Antunes, residente em Chancelaria (Concelho de Alter do Chão), é referido que no dia 25 de Abril, se organizava todos os anos uma tradicional festa e romaria no local da ermida de S. Marcos de Seda ou de Chança.

Antigamente cumpriam-se promessas ao Santo, em que se ofereciam, para leilão: vitelos, borregos, galinhas, bolos, folares, dinheiro, bordados, etc. A romaria começava com a celebração da Missa às 12:00, de seguida todos merendavam e conviviam no campo ao redor da ermida. Pelas 15:00 saía a procissão e contornava o cruzeiro, voltando de novo para a ermida onde as oferendas eram benzidas e depois leiloadas. Todos os anos era oferecido um vitelo que entrava na ermida, onde era benzido junto ao altar, e entregue depois aos caseiros, (que viviam numa pequena casa junto à ermida, hoje em ruínas) que o engordavam até ao ano seguinte, sendo depois leiloado e vendido, revertendo esse dinheiro para a manutenção da ermida. Estes caseiros viviam duma pequena horta, de algum gado e ainda de esmolas. Deslocavam-se, habitualmente, uma vez por semana, às aldeias próximas com uma pequena imagem de S. Marcos (que hoje se encontra recolhida na sacristia na Igreja Matriz de Chança) para dá-la a beijar e pedir esmola para o seu sustento. Esta imagem também era tradicionalmente requisitada pelos criadores de gado quando este adoecia e necessitava do auxílio sobrenatural do Santo Protector! [Antunes, 2011]

 
Corre um ditado por terras de Alter que diz: “És como o vitelinho do S. Marcos, só fazes o que queres!”. Como todos consideravam o boi benzido, como protegido, deixavam-no comer em todas as pastagens ao redor, e, ele fazia o que queria sem ninguém o incomodar.

  Pesquisando sobre a festa de São Marcos encontrei, ainda, uma descrição deliciosa sobre Alter do Chão e do seu costume ancestral num livro denominado “Os Miseráveis do Alentejo” [Cruz, 1863] onde se pode ler uma descrição do que teria sido a festa de São Marcos em Alter do Chão, no dia 25 de Abril do ano de 1838:

 “Já foram a Alter do Chão, e viram, ao passar, abandonando Fronteira, a fonte dos bonecos, próxima áquella antiquissima povoação?

Admiraram por acaso o seu lago, ou dormiram na estalagem que fica no rocio mesmo ante a ermidinha de S. Marcos?

Estamos no dia vinte e cinco de Abril do ano de 1838.

O povo, o senhor povo, a patulêa, o pé fresco, ainda n’esse tempo assim não eram denominados; haviam somente dois partidos: setembristas e chamorros!

A concorrência era extraordinária. Grupos e grupos de povo paravam cheios d’enthusiasmo ao pé da ermida do santo. Do lado de Alter Poderoso – Altieri, dos já corrompidos vocábulos latinos – descem pela antiga via dos romanos, que de Merida atravessava as povoações extinctas das raças primitivas indígenas, e das invasoras da Lusitânia. Conduzindo o boisinho, que tinha de fazer n’esse dia o milagre de beijar o evangelho, feito pelo mesmo santo, nos cornos de um toiro; e a seu turno de receber os ósculos de milhares de pastores vindos de longas terras, e mesmo de muitos cidadãos da localidade.

E até da antiga Amae Júlia era numerosíssimo o concurso.

Porem, todos os povos, desde a vetustíssima Scalabis Castrum procuravam a Ponte de Sôr, e Villa Formosa, atravessando suas bellissimas pontes – tambem da via latina – onde ainda actualmente se descobrem os vestígios de minas exploradas – parando só em Altieri – Alter do Chão – para admirarem o boisinho.

Lá toca á festa.

As senhoras de Alter do Chão, com suas riquíssimas saias pretas, talhadas com primor e gesto, coucas feitas de papelão – similhante aos chapéus, que se usaram em 1836, cobertas de lucto eterno; com suas mantilhas curtas da mesma cor, e seu véo também negro; voavam para a ermidinha. As mulheres do povo, quasi todas lindíssimas, e de formas inimitáveis, trajavam do mesmo modo, e assim, como por descuido, desejavam, que os seus amores as vissem.

É hoje pois dia de S. Marcos – do senhor San’Marcos, honra que lhe concedem n’este dia – pois não ficaria contente se lhe não dessem uma senhoria. – Quase iamos rimando.

Uma musica tocava – se aquilo era tocar, e esperava a entrada do boisinho, no meio da numerosíssima chusma de espectadores!

Os foguetes, que restrugiam desde a vespora á noite, e que extasiaram os admiradores com seu estridolo estourar, ainda n’este momento eram as delicias da mor parte do auditório.

Que lindissima loucura!

Só um espectador manêta ria internamente de tanto brilho!

Era sceptico: morreu sem o ser em 1862, dia de S. Bartholomeu – dia em que o diabo anda á sôlta!

Vamos ao que importa, e os leitores e leitoras saberão cruelissimas atrocidades que este phenomeno commetteu.

«Entra Marcos, entra, em louvor do senhor S. Marcos!»

E o povo, com varinhas, tocava o boisinho milagreiro, e acompanhava cada dóse com as palavras acima ditas.

O maneta ria constantemente.

O povo desesperado bramia surdamente, e de uns para outros, pela bocca pequena, diziam:

«Quebramos a este faz formas, faztudo, o outro braço?!...»

A prudencia de alguns moderou os mais exaltados, pois não prestaria o milagre se houvesse desordens.

O santo effectivamente foi bastante festejado, praticando o boisinho bruscamente o milagre, e isso mesmo devido aos impulsos do povo, e seus devotos.

As senhoras da coucas sahiram do templosinho.

O povo resmungou todo o dia contra o maneta, por mangar esturdiamente dos seus crédulos costumes.

Houve á tarde os invariáveis touros – vaquinhas mansas da localidade – as quaes foram brutamente espicaçadas, concedendo a competente auctoridade, licença com a innocentissima intenção de se respeitarem os usos, e de se arranjarem alguns vinténs a favor dos estabelecimentos de caridade!

Gostâmos d’isto.

Falleceram dois insignes toireiros no hospital – ‘entre aquelles que beberam mais vinho.

A culpa não foi d’elles. É dos que apregoam civilização e consentem que se pratiquem d’estas e de outras scenas barbaras.

No entanto que, os filhos dos lavradores, fazem, pelas maxima parte, galla em não saberem ler nem escrever!

Não moralisâmos, porque estas idéas que aqui estampâmos laboram em muitos cérebros!...”

 

As proibições eclesiásticas

 
As proibições Eclesiásticas em Espanha (Extremadura e Andaluzia), embora tivessem existência anterior, foram somente eficazes a partir de meados do século XIX e, no Alentejo, a partir de 1924, mais concretamente a partir da Diocese de Portalegre, por imposição episcopal. Embora o Doutor Manuel Valle de Moura já se tivesse pronunciado a partir da Inquisição de Évora, no ano de 1620, com a publicação do livro “Incantationibus Seu Ensalmis”. [Arimateia, 1992].

Este rito religioso foi de facto proibido por todo o território da Diocese de Portalegre em 1924, através de um aviso efectuado a todos os párocos das freguesias, por D. Domingos Maria Fructuoso, com a finalidade de “suprimir abusos condenáveis que com o correr do tempo se teriam introduzido na celebração” da festa de São Marcos. O caso de Gáfete, foi paradigmático, demonstrando uma grande tensão e confronto entre as populações locais e a hierarquia religiosa. [Arimateia, 1992]

Enquadrou juridicamente as proibições anteriores a publicação de Breve do Papa Clemente VIII a 10 de Março de 1598, dirigido a uma Diocese de Bispo Civitatense (de Ciudad Rodrigo), respondendo a solicitação deste último prelado. O Papa condenava a prática do Rito de São Marcos, por considerá-la: uma prática Supersticiosa, uma prática Escandalosa e uma prática Indecente. [Feijóo, 1755]

A evolução das mentalidades e a Inquisição em Espanha (embora defensora do milagre de São Marcos ainda durante o século XVI) bem como as polémicas que se fizeram sentir ao longo dos séculos XVII e XVIII, levaram à irradicação definitiva de terras de Espanha da Festa e Culto de São Marcos, por prática supersticiosa e contra os Mandamentos da Santa Madre Igreja.

Os espanhóis davam o nome de aldeia de “São Marcos” à povoação de Santo António das Areias, devido à fama das festas ao Santo que provocava uma enorme ocorrência dos vizinhos da raia extremenha, para presenciarem a entrada do boizinho na igreja e para assistirem às touradas e arraial.

 

O Santo     origens, atributos e virtudes

 

Sobre o Apóstolo São Marcos, podemos ler na obra “Vidas e Paixões dos Apóstolos” [Brihuega, 1989], o seguinte:

“Sam Marcos, evangelista, ante que se convertesse, foi sacerdote dos judeus.

Mais converteu-o, depois, Sam Pedro, e bautizou-o, e foi seu discipolo, bem como Sam Lucas, de Sam Paulo.

E, ao tempo que Sam Pedro foi a Roma, foi Sam Marcos com el, ouvindo sempre a sua preegaçom, e parando muito mentes em nas cousas que preegava, e contava / muito do feito de Nosso Senhor Jesu Cristo.

E el reteve-as mui bem em seu coraçom. E, porque Sam Marcos screvera já os seus Evangelhos em Terra de Judea em na lingoagem dos judeus, rogaram-lhe todolos cristãos qye eram em Roma que el screvesse um Evangelho de todo aquelo que ouvira dizer a Sam Pedro e do que aprendera del. E el screveo seu Evangelho mui pequeno e mui breve. E, dês que o houve scripto, mostrarom-no a Sam Pedro, e el leu-o e deu-lhe sua outoridade e seu outorgamento, que devia a seer leudo bem come aquela scritura em que nom havia senom verdade.”

 

Em relação ao “nosso” São Marcos, o do boizinho, em termos de referências bíblicas e eruditas ao boi, estas são inexistentes a não ser uma muito rápida referência, na obra atrás citada de Brihuela. Assim, no capítulo 263.º, às páginas 362 e 363, “De como Sam Marcos foi arrastado e açoutado, e apareceu-lhe Nosso Senhor e morreu”, poderemos ler:

“(…).

E enton veo un dia de Pascoa, sete dias por andar d’Abril, e em aquel dia faziam eles festa a un dos seus ídolos. E todos aqueles que o buscavam eram ali ajuntados, e andarom-no tanto buscando que o acharom u stava cantando Missa.

E deitarom-lhe bem ali un baraço na garganta, e levarom-no, fazendo-lhe muito mal. E tragiam-no pela cidade, e doestando-o muito, e diziam:

- Levemos este boi ao / lugar u matam os bois!

(…).

E a manhãa sacaram-no do carcer e deitarom-lhe outra vergada o baraço na garganta, e fezeram-no restrar, e, tragendo-o assi rastrando de ca e de la, iam bradando empos el, e diziam:

- “Trahite babulum ad loca buculi”, que quer dizer: “Levade esse boi ao lugar u matam os bois”. (…).

Nesta referência parece-me interessante sublinhar o facto do martírio de São Marcos ocorrer em Abril, durante a Páscoa e o facto de certo modo haver a coincidência entre a morte do santo e o terem levado para o “lugar u matam os bois!”, lugar de sacrifício onde o taurobólio acontecia…

Existem ainda outras referências, digamos assim, eruditas, referindo o facto de São Marcos ter tido igualmente a autoria de “milagres”. Segundo reza a obra Acta Sanctorum, citada por Pedro A. D’Azevedo [1989] e que passo a citar o resumo por este apresentado:

“(…). Causava admiração aos habitantes da Apúlia, na Itália meridional, não chover havia cinco annos no paiz, até que lhes foi revelado por certos religiosos, que isso era motivado por não observarem a festa e São Marcos. Reuniram-se então todos na Igreja por ocasião da mais próxima festa do santo onde “impetraram” com orações os benefícios de São Marcos: e logo choveu com mais abundância do que havia esperança, cessando a esterilidade da terra.            

(…).”

As origens nebulosas das tradições de São Marcos foram influenciadas pela arcaica religião Pagã (de pagus, relativo à aldeia, ao campo).

Marte Silvanus foi deus romano da agricultura. Posteriormente, São Marcos foi, por sua vez, o protector das colheitas, das vinhas e das madeiras.

Será o rito do Boizinho de São Marcos, originário dos antigos cultos romanos de Marte ou de Diana, ou de quaisquer outros Deuses de outros Panteões? Este culto teve, e tem ainda nas suas formas mais modernas, nas suas reminiscências, como finalidade última a constituição e a construção da Romaria, onde desde sempre o Sagrado e o Profano se juntavam e confundiam, e onde aquela se constituía como forte factor de coesão social, garante, ao longo dos tempos, da sobrevivência física, psíquica e espiritual do homem e da comunidade…

A Festa de São Marcos, a 25 de Abril, coincide com a antiga Festa Romana Rubigalia, que era celebrada para pedir a protecção contra o rubigus – ferrugem – do trigo. Nesse mesmo dia, no âmbito do ritual dos Mistérios de Isis, procedentes do Egipto e fortemente implantados tanto na Grécia como em Roma – através da Alexandria, local onde segundo os hagiógrafos cristãos se terá dado o martírio de São Marcos – se celebrava a festa mistérica de Serapis. Era esta uma divindade sem mito, puramente salvífica (de sôter, salvador, um cognome de Júpiter), que vinha unir-se ao mito de Isis e Osíris, tomando a personalidade do Deus despedaçado e as qualidades solares do boi Ápis e note-se que Serapis, enquanto nome próprio, é uma união Osíris-Ápis. Serapis era a divindade propiciatória da fertilidade da Terra – a deusa Mãe – e, através dos ciclos agrários, da morte e da ressurreição do ser humano. Há que fazer notar que os cultos Isíacos, como praticamente a totalidade dos ritos mistéricos, tiveram na Hispânia uma enorme difusão. E cabe aqui recordar que o serapeu mais importante de entre os que se descobriram na Península é o de Panóias, referido pelo Dr. José Leite de Vasconcelos na sua obra “Religiões da Lusitânia”, e não longe dos lugares extremenhos onde Feijóo e o Padre Coria confirmavam a presença activa do rito festivo do touro de São Marcos em obra publicada em pleno Século XVIII. Tal como pode, pois, deduzir-se de todos os dados dispersos surgidos nas festas que se celebram em torno de São Marcos, o Evangelista teria passado a substituir, na data precisa, uma divindade serápica que teria sido provavelmente venerada nos lugares onde posteriormente se renderia culto ao santo. [Feijóo, 1755]

Várias virtudes possuía o Santo e, além de padroeiro dos gados (das reses), pois tinha como missão a de livrar os gados dos lobos e de moléstias…

Em algumas localidades, no dia da Festa, enfeitava-se o altar de São Marcos com espadanas que, depois de benzidas pelo pároco, eram dadas aos lavradores para que as pendurassem nas árvores ou as espetassem no chão das searas ou das hortas a fim de que as plantas prosperassem.

Hoje ainda, sob a invocação de São Marcos, São Mamede, São Luís, Santo António ou outro santo, os camponeses e lavradores levam o seu gado junto às capelas respectivas, fazendo-o dar certo número de voltas às mesmas, antes de serem benzidos pelo sacerdote.

Outros atributos de São Marcos: protector dos campos, das colheitas e do gado vacum. O apaziguador de pragas (lagostins); o amansador de meninos bravos; o propiciador da chuva…

No Brasil, diz-nos Câmara Cascudo que não houve culto de São Marcos (tal como o conhecemos em Portugal), mas a sua figura está presente no devocionário supersticioso de orações fortes, dedicadas justamente à doma de touros bravos. Contudo, na tradição popular brasileira, as orações ao santo foram utilizadas não só apenas para amansar animais bravos mas também para “laçar” pessoas desejadas como amantes (para amansar corações…).

 
 
O Touro, o Homem e a Cultura ao longo das Civilizações

 
A importância cultural e civilizacional do Touro/Boi, na sua relação com o Homem, impõe-se desde as mais recuadas manifestações artísticas da Pré-História – em Lascaux, em Cuenca e no Vale do Côa… O Touro sempre esteve ligado à própria sobrevivência física do homem…
 

A representação escultórica de um eventual antigo culto do touro no III Milénio a.C. manifesta-se abundantemente na Arte Antiga que chegou até aos nossos dias, no Egipto e em Creta…

 
O boi Ápis no Egipto, antiga divindade agrária, simbolizava a força vital da natureza e a sua força geradora; e as representações de jogos com os Touros nas Civilizações pré-helénicas de Creta.

 
A Civilização Greco-Romana deixou-nos um extraordinário legado mitológico sobre o Touro. O rapto de Proserpina, por Plutão, assim como a representação dos mitológicos trabalhos de Hércules (na imagem vemos a luta do Herói capturando o touro de Creta, o Sétimo trabalho de Hércules), são dos exemplos mais representativos.

Por outro lado, o Deus Mitra dos Romanos, através da religião mitríaca, deixou vestígios por todo o território português, nomeadamente no Alentejo.

 
O Mito de Teseu e Ariadne descreve-nos o herói enfrentando e vencendo o Minotauro do Labirinto de Creta.

Simbólica e mistericamente, o Labirinto foi construído de modo a chegarmos sempre ao seu Centro. A questão de encontrarmos ou não o Minotauro no Caminho para o Centro e a questão de o dominarmos ou não durante a nossa Demanda é outra conversa! A natureza do Minotauro confunde-se com a nossa própria natureza e a escolha é única e exclusivamente nossa, e como na fábula: teremos de decidir se alimentamos o touro/lobo mau ou o touro/lobo bom... para, mais uma vez, conseguirmos sobreviver!...

 
Denominamos vulgarmente por Presépio (palavra de origem latina que significa "local onde se recolhe o gado") aquela representação lúdica da cena do nascimento do Menino Jesus, com todo um enquadramento poético e bucólico. Nomeadamente descrevendo a presença do Menino, entre dois animais (boi e burro) acompanhado de Sua Mãe e por José e, perante eles, pastores, anjos e Reis (Magos) a adorá-Lo e a oferecer-Lhe presentes.

Diz-nos José Leite Vasconcelos: “Quando se lançam as sementes à terra, chega-se ao focinho do boi a cesta que as contém, para este as bafejar, e a sementeira produzir, porque o boi bafejou Cristo no presépio (passim no Minho e Douro).” [Vasconcelos, 1986]

 
O Milagre de Santa Maria narrado por Afonso X na Cantiga n.º 144 – “Como Santa Maria guardou de morte un ome bõo, en Prazença, dun touro que vera polo matar.”    O costume do Touro Nupcial, na Idade Média, resumia-se ao seguinte: o noivo tinha de tourear um touro junto à casa da noiva colocando-lhe bandarilhas decoradas por esta e sacrificando-o. A prenda da noiva, associada ao sangue do touro bravo, garantiria a fertilidade do matrimónio…

 
Representações pictóricas do touro na Arte Zen (Japão) e em Picasso (Guernica). O touro na Astrologia – a Constelação de Touro. Manifestações artísticas dos nossos tempos que reactualizam o significado essencial do antigo animal mítico.

 
Nos trabalhos da lavoura: no arar os campos, no carrego do cereal, por todo o Portugal foram utilizados bois. Na faina da pesca de mar – a arte xávega tradicional com o carrego dos barcos para o mar… um sem acabar de relações entre homem e boi/touro.

 
As chegas de bois no Minho e em Trás-os-Montes. A capeia arraiana no Sabugal. As touradas e as garraiadas como festas eminentemente populares por todo o país. A festa, a terra, o sangue, a força, a fertilidade… tudo relacionado e atado pelas arcaicas religiões tradicionais e que chegaram de modo mais ou menos profano aos nossos tempos.

 
 
Conclusão

 
O tempo longo do Rito/Mito do Touro [de São Marcos] ainda permanece inscrito nas memórias e nos genes das populações das aldeias e das vilas por esse Alentejo fora… e manifesta-se pela aceitação das práticas possíveis para as mentalidades dos tempos de hoje…

A problemática da Religião Popular foi abordada de modo a permitir uma outra abordagem que foque de um modo integrado essa Realidade nos seus diferentes mas complementares factores constituintes: a Romaria, o Templo, o Mito, o Sacerdote, o Crente, a Fé, a Unidade, o Deus, a Vida, os Santos, os Ritos, a Tradição…

Realidade multifacetada cujo fio condutor tem o poder de a dominar, de a compreender e de a transformar, fio esse que é afinal o próprio Homem…

Afinal o que é a Religião senão a “técnica” que o homem encontrou ou inventou para ultrapassar a sua própria efemeridade e atingir a imortalidade?! Isto é, encontrar um factor de coesão grupal que permita dar continuidade à própria espécie humana, à sua memória, ao seu Ser, que no fundo se encontra ligado a tudo o que constitui o Universo…

Em épocas primevas o homem não se considerava em absoluto a medida de todas as coisas. Sabia que a sua vida era enquadrada, assim como a das plantas e flores e animais, por “estações”, por ritmos e pulsações, por ciclos de grandeza cósmica, ontem conhecidos e respeitados, mas hoje já praticamente esquecidos ou ignorados. A estes ritmos cósmicos ajustava ele, inteligentemente, a sua actividade criadora e a sua vida em comunidade.

 
 
 
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BIBLIOGRAFIA

 

ANTUNES, Susete (2011). São Marcos na Chança, in “Mensageiro de Alter”, Alter do Chão, Ano LVIII, Abril.
 
ARÉVALO, Javier Marcos (2004). La tradición, el património y la identidade, in “Revista de Estudios Extremeños”, 60 (3), págs. 925-955.
 
ARIMATEIA, Rui (1992). A Festa de São Marcos e a Religiosidade Popular, in “Ibn Maruán”, Revista Cultural do Concelho de Marvão, N.º 2, Dezembro, Ed. Câmara Municipal de Marvão, págs. 15-49.
 
ARIMATEIA, Rui / OLIVEIRA, Jorge de (2016). A Festa de São Marcos em Santo António das Areias – História e Tradições, Ed. Junta de Freguesia de Santo António das Areias, Abril.
 
ARIMATEIA, Rui (1993). O Mito de São Marcos (Breve análise), in “Ibn Maruán”, Revista Cultural do Concelho de Marvão, N.º 3, Dezembro, Ed. Câmara Municipal de Marvão, págs. 111-119.
 
AZEVEDO, Pedro d’ (1982). A Festa de S. Marcos próximo de Serpa, in “A Tradição”, Vol. I, Ano 1, N.º8, Ed. Fac-simile, 2.ª Edição, Câmara Municipal de Serpa (1.ª edição de 1899).
 
BANCROFT, Anne (1991). As Origens do Sagrado, Col. ‘Margens’, Editorial Estampa, Lisboa [cit. pág. 156].
 
BRIHUEGA, Bernardo de (1989). Vidas e Paixões dos Apóstolos, Vol. II, Col. “Textos Dispersos”, 1, Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica.
 
CONCÍLIO PLENÁRIO PORTUGUÊS - MCMXXVI (1931). Pastoral Colectiva / Decretos, Ed. Portuguesa Oficial, Tip. Da União Gráfica, Lisboa.
 
CRUZ, António Marciano da (1863). Os Miseráveis do Alentejo, Edictores – Bravo Corrêa e Mello, Typ. Pharol do Alemtejo, Évora, 1863 [Cit. II Parte, Cap. 1, págs. 93 a 96].

 FEIJÒO, Don Fray Benedito Geronymo (1755). Teatro Critico Universal o Discursos Vario sen todo genero de matérias, para desengano de errores comunes, Imprenta de Don Eugénio Bieco, Madrid, Año de M.DCC.LV.

 PROEMÇA, Luis Aluarez de (1534). Vysytaçam da Igreja de Samta Maria do  Alamdroal,  Biblioteca Pública de Évora, Códice CXXIII-I-I, Fólios 164-165 verso.

 S/A (1643). Acta Santorum, Ed. Bollandus, Antuérpia – Paris, 1643 e ss., 67 Vols.

 VASCONCELOS, José Leite de (1906). Ensaios Ethnograficos, III, Lisboa.

 VASCONCELOS, José Leite de (1982). O Dia de S. Marcos, in “Etnografia Portuguesa – Tentame de Sistematização”, Vol. VIII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa.

 VASCONCELOS, José Leite de (1981). Religiões da Lusitânia, 3 Vols., Col. “Temas Portugueses”, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa.
 
VASCONCELOS, José Leite de (1938). Sur les Religions de la Lusitanie, in “Opúsculos”, Vol. V,- Etnologia (Parte I), Imprensa Nacional de Lisboa  [cit. págs.130-131].
 

VASCONCELOS, José Leite de (1986). Tradições Populares de Portugal, 2.ª Edição, Col. ‘Temas Portugueses’, Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa [cit. pág.212].
 
_____________________

Rui Arimateia – Centro de Recursos da Tradição Oral e do Património Imaterial do Concelho de Évora, 17 de Março de 2017 [ rui.arimateia@gmail.com ].

Texto completo com as ilustrações publicado in  CADERNOS DO ENDOVÉLICO - 3 (Da Arqueologia à Etno-Botânica e da Etnografia à Etno-Literatura), Edições Colibri/Centro de Estudos do Endovélico - Câmara Municipal do Alandroal, Lisboa, 2017.


[1] Centro de Recursos da Tradição Oral e do Património Imaterial do Concelho de Évora
 

A MORTE É A CURVA NA ESTRADA

Relembrando Fernando Pessoa:

A morte é a curva na estrada.
Morrer é só não ser visto.
Se escuto eu te oiço a passada.
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O PEREGRINO


TRADIÇÃO E MODERNIDADE ENTRE A MEMÓRIA E A REVITALIZAÇÃO DOS CULTOS - APROXIMAÇÕES TEOSÓFICAS


Tenhamos consciência de que estamos inseridos numa sociedade que se caracteriza por um conjunto de opções e de práticas baseadas em anti-valores humanos desconstrutivos, privilegiando o consumo extremo, o endeusamento do capital, a busca alienada e desenfreada do prazer pelo prazer e, finalmente, postulando uma total ausência de compromisso individual ou colectivo perante o outro ou perante a Natureza, acrescentando o fosso entre os poucos que tudo possuem e os demasiados que nada detêm, nomeadamente em termos de acesso à Cultura, ao Desenvolvimento e ao direito de se viver condignamente.
Daí a importância da realização de reflexões como a que estamos conjuntamente a realizar nesta edição de 2015 do Congresso “Por Terras do Endovélico” no Alandroal em boa hora organizada pelo seu Município com a colaboração do Centro de Estudos do Endovélico. Não esqueçamos de que até a ténue luz de uma vela afasta a mais negra escuridão!...

Este meu trabalho, agora apresentado, encontra-se ancorado em algumas premissas que continuamente me acompanham nestas áreas de reflexão sobre Cultura e Religião e que passo a enumerar:

1.     Tudo está ligado a tudo... ou, tal como é expresso nas palavras inspiradas de Hermes Trismegistos: O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa…” (ver Nota 1)
2.     A Unidade da Vida é uma realidade sempre presente para a evolução natural e harmoniosa de todos os seres vivos e do próprio Planeta;
3.     Não há Religião superior à Verdade, encarando todas as manifestações do génio humano – religiosas, sociológicas, antropológicas, filosóficas e científicas…– numa perspectiva Teosófica (ver Anexo único);
4.     Considero a Palavra como uma criação superiormente inspirada – do Espírito, do Logos, de Deus, da Natureza, da Vida Una… – que anima interiormente o homem e a mulher esse manifesta para a realização e compreensão de maravilhas;
5.     Sempre a ter em conta: “Não separarás o teu ser do Ser, e do resto, mas fundirás o oceano na gota de água, e a gota de água no oceano. / Assim estarás de acordo com tudo quanto vive…” (ver Nota 2)

Por outro lado, considero essenciais a utilização de três ferramentas metodológicas para a desocultação dos significados mais profundos do Espírito Religioso:

1.     A Poesia – pois esta permite-nos falar a língua dos Deuses:
2.     A Imaginação Criadora – permite-nos ouvir e entender a voz dos Deuses;
3.     A Analogia – permite-nos compreender a intenção mais profunda nas diversas manifestação dos Deuses.

Tal como Fernando Pessoa comunicava numa linguagem superiormente inspiradora quando nos legou o poema que de seguida se apresenta e que nos permite a compreensão de uma Religião totalmente integrada na Natureza:

Oscila o incensório antigo
Em fendas e ouro ornamental.
Sem atenção, absorto sigo
Os passos lentos do ritual.

Mas são os braços invisíveis
E são os cantos que não são
E os incensórios de outros níveis
Que vê e ouve o coração.

Ah, sempre que o ritual acerta
Seus passos e seus ritmos bem,
O ritual que não há desperta
E a alma é o que é, não o que tem.

Oscila o incensório visto,
Ouvidos cantos estão no ar,
Mas o ritual a que eu assisto
É um ritual de relembrar.

No grande Templo antenatal,
Antes de vida e alma e Deus...
E o xadrez do chão ritual
É o que é hoje a terra e os céus...


Fernando Pessoa  (ver Nota 3)


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A CONSCIENTIZAÇÃO DA UNIDADE DA VIDA
Construção de um homem novo num mundo em transformação


Uma das preocupações centrais da Iniciação na antiga Religião dos Mistérios, ao longo dos tempos, tem sido a de potencializar e possibilitar a procura e o encontro ou re-encontro da UNIDADE DA VIDA pelo Peregrino, viajante em demanda…
Procura baseada no pressuposto de que a Relação Humana, a Verdade e a Liberdade estão, de facto, contínua e dinamicamente presentes na Busca Espiritual e na Demanda pela Verdade última e perene da Existência.
Hoje, o homem moderno perdeu ou está a perder, a capacidade de vivenciar a mensagem mais profunda dos Mistérios e dos símbolos da Vida e da Morte. Distancia-se mais e mais deles. O stress e a superficialidade dos quotidianos, com todo o condicionalismo daí resultante, impossibilitam ao homem actual relacionar e inter-relacionar as Grandes Verdades da Vida Una, tendo em conta a complexidade das miríades de facetas das relações humanas que o preenchem e o distraem daquilo que mais importa!...
Verdade, Unidade e Liberdade são, afinal, grandes objectivos de vida que desde sempre o homem procurou alcançar através de diferentes caminhos, de diferentes perspectivas: Religião, Filosofia, Ciência, Arte... É essencial que, cada um por si, procure a sua própria Via, procure escutar o acorde harmonioso que a ponha em sintonia com a Via do Coração, representante da chave autêntica que abre a porta dos Mistérios da Natureza, dando acesso ao Graal da Sageza das Idades a fim de nele beber e saciar a insaciável sede do sagrado.
Existem duas perguntas, fundamentais para a consciencialização e compreensão do ser humano em demanda: de onde vimos e para onde vamos?
Poderemos filosoficamente tentar uma resposta: – vimos da Unidade e voltamos à Unidade. Integração e re-integração. A premissa essencial para se colocar e tentar responder à pergunta é a compreensão e a apresentação como hipótese de trabalho da UNIDADE DA VIDA como um facto real e de autêntico desenvolvimento humano.
Vimos de um Todo e voltamos para um Todo. De um estado de ser potencial de pré-nascimento – para todos nós o Desconhecido, – para um estado de ser pós-morte – igualmente o Desconhecido. Temos contudo, e perante o atrás referido, a consciência de que no nosso estado de evolução espiritual, o processo total da Unidade da Vida é-nos, apesar de tudo, ainda desconhecido.

Só o Presente nos é presente!

Podemos considerar que a criança, desde o primeiríssimo momento da sua existência enquanto Ser Humano, se encontra unida à Vida Cósmica. Com o desenvolvimento e a afirmação da sua personalidade, vai-se artificialmente separando da Realidade Última da própria Existência e “converte-se” numa entidade separada, absorta no complexo processo de crescimento e desenvolvimento do seu ser.
Afinal o “pecado original” não será outro senão o da assumpção do estado de separatividade e do “esquecimento”/recusa da UNIDADE essencial da Vida.



Contudo, tendo em conta a natureza da Iniciação aos Mistérios, a vida de um ser humano é apenas um dia na mais vasta vida do Espírito do verdadeiro Homem – o Eterno Peregrino nestes ritmos da Criação.
Por toda a parte observamos o mesmo Alento Criador: a manifestada múltipla diversidade procedente da Unidade e o seu retorno à mesma Unidade da Vida Cósmica. É o canto da Criação do qual fazem parte todos os cantos, todos os ritmos do Universo.
Vem a propósito um pequeno fragmento do poético e inspirador livro, da autoria de Mabel Collins, Luz sobre o Caminho (ver Nota 4), pérola literária da filosofia teosófica do século XX:
«(…) apenas fragmentos da grande canção chegam aos vossos ouvidos. Mas se a escutais, lembrai-a bem, para que nada que chegou até vós seja perdido, e tentai nela aprender o sentido do mistério que vos cerca. Em tempo não precisareis de mestre. Porque, assim como o indivíduo tem voz, também a tem aquilo em que o indivíduo existe. A própria vida tem fala e nunca está silenciosa. E a sua fala não é, como vós os surdos podeis crer, um grito; é uma canção. Nela aprendei que vós sois parte da harmonia; nela aprendei a obedecer às leis da harmonia.(…).»
Vivamos momentos de Paz e de Solidão, “aniquilando-nos”, isto é, integrando-nos na Vida que, sem cessar, cresce e se desenvolve ao nosso redor e em nós. Tentemos escutar e ouvir a Canção da Vida e ousemos transmutar-nos a partir da nossa natureza interior. Alimentemos o fogo que arde no nosso mais recôndito Santuário, tentemos fazer com que o Sol consiga livremente iluminar a chama interna e eterna conservada no interior do nosso Coração.
Diz-nos o sufi marroquino Sheij Sidi Hamzaque: “O verdadeiro conhecimento somente se obtém através da humildade. O modo correcto de nos dirigirmos a ele, deverá assemelhar-se ao de uma pessoa que quer beber água de um riacho: deverá inclinar-se para a beber. A água está sempre situada no lugar mais baixo, temos necessidade de ser como a água.”
O Conhecimento, por mais incipiente que seja, implica responsabilidade. Um trabalhador que use eficazmente a sua ferramenta de ofício é-lhe exigido socialmente cada vez mais, maior perfeição. A Obra – de transformação de si próprio e do que o rodeia – precisa, em cada dia que passa, de mais e de melhores trabalhadores e a Obra inicia-se a todos os momentos em nós próprios. Para se compreender o subjacente, o autenticamente verdadeiro na Obra, para se compreender o seu âmago, a sua essência, há que buscar e compreender a perenidade dos símbolos e das mensagens espirituais Nela implícitos.
Importa dizer que Conhecer é viver, é ensinar, é aprender, mas também é, e sobretudo, estar em comunhão com o outro, estar num estado de Compaixão, de solidariedade e de dádiva.

Conhece-te a ti próprio… Conhecer é Ser mais e melhor…

Nos Antigos Mistérios da Humanidade – de Elêusis, de Ataegina, de Mitra, de Isis, de Orfeu, de Dionísio,dos Egípcios, dos Tibetanos, dos Celtas, dos Cristãos, dos Gnósticos, dos Sufis, e de tantos outros… , através de uma abordagem muito particular da alegoria e do símbolo, os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua História e Evolução têm sido: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta.
Lembremo-nos da história daquele peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:
         – Oh, Mãe! O que é o Mar?
         E a Mãe, com aquela ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:
         – Olha, meu filho, tu estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...
         A união com o Todo ou com o Amado, que os místicos ibéricos como São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila tão bem souberam cantar nos seus poemas e nos seus escritos de religião, e por vezes tão incompreendidos e até mesmo rejeitados e perseguidos pela dogmática e repressiva superstrutura católica da sua época.
         Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio de luz, saírem vitoriosos para a Luz Solar...

Da luz para a Luz!

Igualmente e também desde tempos imemoriais que os Antigos Mistérios, detentores da Sageza das Idades, têm tido como outro objectivo essencial na sua Demanda, a cabal compreensão da Verdade. Contudo, esta parece ser inatingível, para o homem comum, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, vem transformando e espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que o ajudam a dominar a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios.
         Sempre o homem comum olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer mistério vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, em algum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: «Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...», resta-nos a possibilidade de (re)encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... ou oculto no nosso Coração...

Eu sou aquilo que sou!

O grande paradoxo que enfrentamos é o facto de termos de buscar uma coisa, um facto, uma realidade, que reside em nós próprios… E termos de descortinar um Caminho que por mais voltas labirínticas que dê voltará sistematicamente para o interior de cada um de nós…
Percepcionar e compreender o Real talvez seja simplesmente olhar o outro, os outros, e identificarmo-nos ontologicamente com eles… Eu sou tu e tu és eu nesta demanda da palavra perdida que nos permitirá, se encontrada, a compreensão do Real em nós.

Deus criou o homem para o ouvir contar contos!

Há que reencontrar novas metodologias, novas mentalidades, para não nos afundarmos definitivamente nesta sociedade de consumo e de morte.
Sempre me lembro de África, para muitos o berço matriz da espécie humana, quando penso em alternativa. Sabe bem voltar à Mãe, à Raiz, à Fonte quando ameaças pairam perigosamente no ar à nossa volta…
Diz-nos NicolásBuenaventura Vidal após uma viagem ao País dos Griots:

“Houve um tempo em que não havia nada, só o vazio, um vazio insensível e cego. O vazio, insensível e cego, gostava de pensar de vez em quando, sé de vez em quando e, de cada vez que pensava, os pensamentos ficavam suspensos, flutuando no vazio; e os pensamentos foram-se somando e no vazio encontraram-se e puseram-se a brincar. A brincar, a brincar, foram criando novos pensamentos. No vazio começaram a nascer como turupes, isto é, como bossas, e essas bossas rebentaram e formaram palavras, porque o vazio era insensível e cego, mas não mudo. As palavras rapidamente se ergueram e começaram a diferenciar-se. Umas tornaram-se em árvores, trepadeiras, arbustos e florzinhas. Outras transformaram-se em água, e aconteceu que algumas se puseram a nadar e se tornaram peixes e as que se sentaram a descansar converteram-se então em pedras. As palavras a «pairar no ar» tornaram-se pássaros. Até que as palavras, fartas de serem elas a dar nomes, decidiram querer ser nomeadas e disseram Mulher e disseram Homem e as palavras Mulher e Homem caminharam até se encontrarem, nomearam-se e amaram-se. Eles deram nomes às palavras. Apareceu a palavra Casa e a mulher e o homem habitaram-na; disseram Mesa e tiveram onde se sentar para comer. Com a palavra Palavra apareceu a primeira ferramenta e, sentados em redor da palavra Fogo, a mulher e o homem contaram um ao outro, as primeiras histórias.” (Ver Nota 5)

Consideremos então a enorme importância da Palavra para a compreensão da realidade da UNIDADE DA VIDA que tem sido transmitida pelas inúmeras gerações através dos Mistérios e considerada por muitos como fio condutor que liga initerruptamente a Antiguidade à Contemporaneidade.
As palavras constituem, de facto, a matéria prima essencial da condição humana. É extremamente importante consciencializarmos o seu significado mais profundo, mais essencial e mais genésico, a fim de reencontramos a Palavra Perdida cuja re-utilização consciente nos dará acesso ao Reino dos Deuses…
E tantas palavras importantes, tantas palavras-força, que temos à nossa disposição para trabalharmos e re-construirmos, como por exemplo:
Culto | Sagrado | Natureza | Pedra | Terra | Água | Ar | Fogo | Ether | Sol | Lua | Árvore |  Erva | Fonte | Rio | Montanha | Gruta | Luz | Trevas | Noite | Dia | Ritmos | Ritos| Tempo | Lugar | Templo | Tradição | Religião | Ritual | Romaria | Peregrinação | Demanda | Cura | Viagem | Morte | Vida | Símbolo | Sonho | Oráculo | Animal | Mão | Homem | Mulher | TellusMater | Mito | Mistérios | Arquétipos | Unidade | Oferta | Sacrifício | Compromisso | Partilha | Solidariedade | Dádiva | Compaixão | …
Compreendamos as palavras, desocultemos os seus símbolos e significados mais profundos para melhor as podermos pronunciar e utilizar na transformação e compreensão de nós próprios e do mundo do qual fazemos parte.
É importante a partilha, tal como nos transmite uma quadra conhecida do Cancioneiro Alentejano.


A propósito do Cante Alentejano e da Sabedoria das Idades – uma praxi se um exemplo a reflectir

Não me inveja de quem tem
carros, parelhas e montes
só me enleva quem bebe
água em todas as fontes.

O cante alentejano, através do seu cancioneiro tradicional e popular, contém em si, adivinhamo-lo, vestígios de uma muito antiga sageza, sem idade… Uma sabedoria oculta, subterrânea, ancestral, que nos diz que todos os homens são irmãos, que todos detêm um saber que está para além da propriedade material das coisas, dos objectos. Como consequência directa, todos poderão partilhar e simultaneamente usufruir as riquezas espirituais comuns, colocando-se cada qual disponível para ouvir o outro e partilhar com ele.
O alentejano ao ouvir as modas do cante está simultaneamente a escutar o outro e a aprender com ele; e quando canta está a partilhar, está a ensinar.
Através do cante, o alentejano está a ser ele próprio e está a interpretar aquela voz que lhe chega das entranhas da cultura milenar da terra-mãe, terra onde vive e onde trabalha e onde canta, onde vive e onde morre. Deste modo o cante apresenta-se-nos como um fiel retracto psicológico da identidade tradicional dos alentejanos.
Nos dias que correm é cada vez mais necessário que cada um de nós queira e consiga “beber água em todas as fontes” para que as diferenças de cada um possam ser compreendidas e aceites por todos e por cada um. Para que tudo aquilo que diferencia os homens uns dos outros seja um factor de aproximação entre eles e não um factor de desavença e de desentendimento; seja uma razão para procurarmos e vivermos a complementaridade.
Hoje é cada vez mais necessário investirmos culturalmente em mais comunicação, mais diálogo e mais partilha. A palavra e a música constituem ferramentas fundamentais para a construção e preservação de memória e de identidade, neste caso da nossa memória e da nossa identidade enquanto alentejanos.
Como atrás se disse, o ser humano é uno e indivisível tal como a própria Vida. Por factores desconhecidos e inexplicáveis, umas vezes é alentejano ou beirão; outras é cristão ou muçulmano; outras ainda é judeu ou hindu; poderá nascer preto ou branco, homem ou mulher… Contudo, no fundo, a essência vital que anima os corpos dos seres humanos é a mesma e eles estarão “condenados” a entenderem-se e a interagirem como irmãos se quiserem que a Civilização e a Cultura continuem e evoluam equilibradamente ao som da Música das Estrelas que nos envolve e que nos inspira a brotarmos para fora das nossas almas de alentejanos e de cidadãos do mundo aquele grito, aquele cante, que tanto nos diz e que tanto nos encanta…
Vida, morte, colheita, terra, trabalho, pão, cultura, vinho, alimento, partilha, campo, amor… História, Identidade, Património da Humanidade... Tudo isto é Cante tudo isto é Alentejo!...


A Natureza Humana e o livre arbítrio – que desafios?

Entrámos e instalámo-nos no Século XXI da Era Cristã, num mundo paradoxalmente marcado pela barbárie e pela selvajaria humanas, diria antes sub-humanas, e onde estas tristes mas factuais realidades são moda, basta olhar a televisão, a net, os jornais…
Nos dias de hoje, mais do que nunca, temos de olhar e repensar a essência da natureza humana. Esta encontra-se a ceder aos mais baixos instintos de animalidade, onde a emoção e o mental inferior se desenvolvem perigosamente, pondo em causa uma evolução harmónica, equilibrada e espiritual. A grande tentação das hegemonias e dos imperialismos, olhados,pessoal ou colectivamente, quaisquer que sejam as suas colorações – religiosas, económicas, culturais, civilizacionais –, conduzem a Humanidade a cometer autênticos genocídios e inclusivamente deteriorando irreversivelmente a própria vida natural do planeta.
Choques de culturas, choque de civilizações, choque de religiões, aliados à intolerância, ao despotismo e à prepotência, que caracterizam e normalizam a acção humana, são o apanágio do homem contemporâneo onde quer que ele se encontre.


A pegada ecológica humana marca negativamente o solo fértil de Gaia.

O planeta está a sofrer uma imensa e arriscada provação. Falando metaforicamente, um Dragão Negro está a possuir e a dominar as mentes, as consciências e, o que é mais grave, o coração dos homens, transformando os valores de uma cidadania partilhada em práticas de predação, de horror e de insensibilidade.
Nunca as palavras Fraternidade, Religião e Amor, estiveram tão vazias de sentidos e de sentir. O primado do ter sobrepõe-se irremediável e perigosamente ao primado do Ser.
Lágrimas, terror, sofrimento chegam constantemente aos nossos sentidos através dos mass-media. Possuímos a infeliz capacidade tecnológica de presenciar a(s) guerra(s) em directo. A enorme quantidade de informação manipulada, distorcida e censurada, entorpece-nos o sentir. Olhamos, vemos, ouvimos, tomamos partido, mas falta responder à grande questão: como actuar? Como agir, enquanto indivíduos racionais e conscientes, perante este caótico estado de coisas? Perante estas “normalizadas” atrocidades de lesa humanidade, destituídas de qualquer ética?
Imaginemos, através de uma imaginação criadora, que contemplamos a Terra dos altos céus: de imediato sentimos na nossa carne a agonia dos seres vivos! A Terra encontra-se coberta de feridas, cheia de cicatrizes, sangrentas, latejantes... causa de sofrimentos desmedidos...
E que alternativas estão ao nosso alcance para alterarmos positivamente este estado de coisas?
Por certo que igualmente se recordarão das tão simples e tão belas palavras de Jesus inscritas no Evangelho segundo São João (XV-12) – “Eis o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.” Fazer a guerra à Humanidade é fazer a guerra a Cristo, é recusar, repudiar e espezinhar a Sua palavra, o Seu exemplo, a Sua memória.
Lembremo-nos da grande verdade de que, não importa quão vasta a escuridão, quão vasta a noite, contudo uma pequena chama de vela detém essa grande escuridão. Na sua insignificância é invencível porque é Luz.
Que cada um de nós mantenha acesa a sua pequena chama. Cada qual, por si, pode tão só significar uma fraca luz, contudo a natureza de todas as chamas é a mesma, é Una. E todas juntas, na sua Unidade Essencial, firmemente dirigidas e erigidas aos céus ensombrados pelas densas nuvens negras do ódio e da ignorância, poderão, a pouco e pouco, afastar as trevas e fazer surgir mais uma vez e sempre a Grande Chama Universal, corporalizada pelo Sol a que os antigos denominavam por Cristo Solar ou Logos Solar...
Mais Fraternidade, mais Compaixão e mais Amor são precisos para que essa Chama Universal se manifeste e realmente se torne uma Realidade viva e verdadeiramente transformante e transformadora nos corações e nas consciências da Humanidade que é Una!
Temos dentro de nós próprios, enquanto seres humanos, a possibilidade de sintetizarmos, de compreendermos e de reproduzirmos o Kaose ou o Cosmos.



O Holismo – uma nova forma de Religião

A partir de meados do século XX, uma nova abordagem metodológica foi surgindo e começou a ser seriamente encarada pelos investigadores dos nossos dias – a perspectiva Holística.
Um modo de pensar abarcante, total e unitário, que olha as várias disciplinas do conhecimento do homem e da Natureza sempre em relação umas com as outras, não compartimentalizando e não separando, mas integrando o conhecimento, como um todo.
Este método revolucionário, sendo relativamente recente, não é novo pois que, o conceito holismo/holístico que, por um lado significa total e por outro sagrado, contrapõe-se àquela maneira de ser que fragmenta a realidade e que toma a parte pelo todo, que prefere a análise (separatividade) em detrimento da síntese (unidade).
Por outro lado, a perspectiva holística, para o homem, é, afinal, o acordar da totalidade dele próprio e do seu enquadramento vital criativo, no qual ele poderá desenvolver ou despertar a sua essência espiritual. Consequentemente, a consciencialização desta Unidade, em si próprio, confere ao homem uma imensa responsabilidade perante a Natureza, suas Leis e Evolução.
Esta nova descoberta poderá consequentemente provocar transformações radicais na ordem estabelecida anteriormente, podendo surgir então uma nova Cultura, uma nova Ciência e uma nova Religião. E porque não uma Nova Civilização?...
A aproximação holística apresenta-se como um fio condutor que poderá unir as várias ciências e filosofias num novo movimento com uma nova e consequente dinâmica de intervenção ao nível dos conceitos e das práticas de concepção do mundo.
Como consequência, a política, a economia e a tecnologia poderão igualmente mudar de carácter, assim como poderá mudar igualmente a relação de dependência Norte/Sul, do Ocidente em relação ao Terceiro Mundo e em última análise, as relações que os homens estabeleceram entre si e o Universo.
Holismo, é portanto, um neologismo que se poderá identificar com uma perspectiva globalizante da Vida numa visão macroscópica, sistémica e ecológica. Deveria constituir a raiz de uma nova Educação, de uma nova Ética para que possa surgir um Homem Novo.

Como conclusão:

As palavras muito antigas
São como as sementes
Que são semeadas antes das chuvas
Depois, a terra é ressequida pelo sol
A chuva vem molhá-la
A água da terra penetra nas sementes
As sementes transformam-se em plantas
Então, desenvolvem as espigas de milho
Assim tu, a quem acabo de dizer as Palavras Muito Antigas,
Tu és a terra
Eu planto em ti a semente da palavra,
Mas é preciso que a água da tua vida penetre na semente
Para que a germinação da palavra tenha lugar.

Ensinamento de um griotMandinka





ANEXOS

H. P. BLAVATSKY E A TEOSOFIA
I
A LEI FUNDAMENTAL
A unidade radical da essência última de cada parte constitutiva dos elementos compostos da Natureza, desde s estrela ao átomo mineral, desde o mais elevado DhyānChoan ao mais humilde dos infusórios, na completa acepção da palavra, quer se aplique ao mundo espiritual, intelectual ou físico – esta é a lei una fundamental na Ciência Oculta.(ver Nota 6)
NOTA da Sr.ª Ianthe H. Hoskins:
“A filosofia esotérica enfatiza que existe uma Realidade única por trás do variado mundo de nossas experiências, a fonte e a causa de tudo o que foi, é e será. O grande divulgador da tradição Védica, Sri Śankarāchārya, afirma-o com bastante simplicidade: não importa a forma dada à argila modelada, a realidade do objecto permanece sempre sendo a argila, o seu nome e a sua forma não são mais do que aparências transitórias. Do mesmo modo, todas as coisas, tendo-se originado do Uno Supremo, são em si mesmas esse Supremo na sua natureza essencial. Desde o mais elevado até ao mais inferior, do mais vasto ao mais diminuto, os infinitos fenómenos do universo são o Uno, revestido por um nome e por uma forma.
Este ensinamento da Unidade fundamental é o ponto principal do sistema teosófico. Conclui-se, assim, que nenhuma doutrina baseada numa dualidade última – do espírito e da matéria separados eternamente, de Deus e do homem como essencialmente distintos, do bem e do mal como realidades eternas, – pode ter lugar na Teosofia.”(ver Nota 7)


II
QUATRO IDEIAS BÁSICAS(ver Nota 8)

“(…).
Não importa o que se estude na Doutrina Secreta, a mente deve manter com firmeza as seguintes ideias como base de sua idealização:
(a) A UNIDADE FUNDAMENTAL DE TODA A EXISTÊNCIA. Esta unidade é algo completamente diferente da noção comum de unidade - como quando dizemos que uma nação ou um exército está unido, ou que este planeta está unido a outro por linhas de força magnética, ou algo semelhante. O ensinamento não é esse, e sim o de que a existência é UMA COISA, não uma colecção de coisas colocadas juntas. Fundamentalmente existe UM Ser, que possui dois aspectos: positivo e negativo. O positivo é o Espírito, ou CONSCIÊNCIA; o negativo é a SUBSTÂNCIA, o sujeito da consciência. Esse Ser é o Absoluto em sua manifestação primária. Sendo absoluto, nada existe fora dele. É o SER TOTAL. É indivisível, pois de outro modo não seria absoluto. Se fosse possível separar-lhe uma parte, o restante não poderia ser absoluto, pois surgiria imediatamente a questão da COMPARAÇÃO entre ele e a parte separada, e a Comparação é incompatível com a ideia de absoluto. Consequentemente, é evidente que essa EXISTÊNCIA ÚNICA, ou Ser Absoluto deve ser a Realidade existente em cada forma que existe.
O Átomo, o Homem, o Deus são, separadamente ou em conjunto, o Ser Absoluto em última análise; e isto é a sua INDIVIDUALIDADE REAL. Este é o conceito que se deve manter sempre no fundo da mente para servir de base para toda concepção que surgir do estudo da Doutrina Secreta. No momento em que esquecemos isso (o que é fácil acontecer quando estamos envolvidos com um dos muitos aspectos intrincados da Filosofia Esotérica) sobrevém a ideia da SEPARAÇÃO e o estudo perde seu valor.
(b) A segunda ideia a manter com firmeza é a de que NÃO EXISTE MATÉRIA MORTA. O mais ínfimo átomo está vivo. E não poderia ser de outra forma, pois cada átomo é fundamentalmente por si mesmo o Ser Absoluto. (…). O verdadeiro conceito é o de que cada átomo de substância, não importa de que plano, é ele mesmo uma VIDA.
(c) A terceira ideia a manter é a de que o Homem é o MICROCOSMO. Assim sendo, todas as Hierarquias dos Céus existem nele. Mas em verdade não existe nem Macrocosmo nem Microcosmo, mas UMA EXISTÊNCIA. O grande e o pequeno só existem como tais quando vistos por uma consciência limitada.
(d) A quarta e última ideia é aquela expressa no Grande Axioma Hermético que, na verdade, resume e sintetiza todas as outras:
Como o Interno assim é o Externo; como o Grande, assim é o Pequeno; como é acima, assim é abaixo; só existe UMA VIDA E UMA LEI e o que atua é o ÚNICO. Nada é Interno, nada é Externo; nada é GRANDE, nada é Pequeno; nada é Alto, nada é Baixo na Economia Divina.
(…)”.
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
  1. Hermes Trimegistos – CORPUS HERMETICUM E DISCURSO DE INICIAÇÃO (A Tábua de Esmeralda), Hemus-Livraria Editora, L.da, São Paulo, Brasil, 1978 (pág. 127).
  2. Helena Blavatsky – A VOZ DO SILÊNCIO, Col. Sete Estrelo, n.º 6, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1998 (tradução e notas de Fernando Pessoa¸ pág. 96).
  3. Fernando Pessoa – POESIAS INÉDITAS (1930-1935), Lisboa, Ed. Ática, 1955 (págs. 98-99 ).
  4. Mabel Collins – LUZ SOBRE O CAMINHO, Col. Sete Estrelo, n.º 10, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2002 (tradução de Fernando Pessoa¸ pág. 21).
  5. Nicolás Buenaventura Vidal – PALAVRA DE CONTADOR, Colecção “redes &  enredos”, n.º 8, Ed. Apenas Livros, L.da, Lisboa, 2007 (pág. 14).
  6. H. P. Blavatsky – A DOUTRINA SECRETA, Vol. I - Cosmogénese, Ed. Pensamento, São Paulo, s/d (pág. 267).
  7. Ianthe Hoskins – FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA ESOTÉRICA – H.P BLAVATSKY, Editora Teosófica, 2.ª edição, Brasília, 1993 (págs. 18-19).
  8. Ianthe Hoskins – FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA ESOTÉRICA – H.P BLAVATSKY, Editora Teosófica, 2.ª edição, Brasília, 1993 (págs. 23-25).

Rui Arimateia
rui.arimateia@gmail.com
Centro de Recursos da Tradição Oral e do Património Imaterial do Concelho de Évora

Alandroal, 19 de Julho de 2015