sábado, 15 de junho de 2013

Túlio Espanca - 1913-2013


IN MEMORIAM TÚLIO ESPANCA – ÉVORA, MAIO DE 2013


Fez no dia 3 de Maio vinte anos que Túlio Espanca deixou fisicamente de conviver connosco. Contudo, a sua Obra e a sua Presença por esta Évora nos alvores do III Milénio, perdura.

Por outro lado, comemorou-se a 8 de Maio o Centenário do seu Nascimento.

Para quem com ele conviveu de perto, a sua memória continua viva.

Para falar um pouco sobre Túlio Espanca, para o apresentar às gerações mais novas e que não tiveram o privilégio de privar com ele, não basta dizer para lerem a sua imensa Obra escrita! É importante falar sobre a sua própria pessoa: sobre a sua postura inconfundível, o seu sorriso, o seu olhar, a sua disponibilidade em ensinar sobre a História de Évora e do Alentejo. Importa falar da sua sensibilidade artística e humana. Falar da sua capacidade de encantar através da palavra e da escrita. Encantar o cidadão comum pela oralidade, assim como encantar o erudito pela sua escrita competente e rebuscada.

Mas afinal quem era Túlio Espanca? Como se formou? Quem o formou? De onde, de que, para quê e para quem falava e escrevia? A quem se dirigia?

São questões que, em parte, todos quantos o conheceram de perto saberão responder. Contudo estão ainda por desocultar muitas facetas daquele que foi, por excelência, o inventariador da História da Arte do Alentejo

Túlio Espanca, se ainda estivesse fisicamente entre nós teria completado no passado dia 8 de Maio 100 anos de idade. O que quer dizer que, durante praticamente os seus oitenta anos de vida atravessou e viveu diferentes tempos históricos, culturais e sociais por que passou a Sociedade Portuguesa. Formou a sua personalidade base durante os conturbados tempos dos finais da 1.ª República. Viveu os dramáticos tempos das duas Guerras Mundiais. Desenvolveu a sua formação intelectual durante todo o período do Estado Novo. Não era, importa dizer, um simpatizante do antigo regime de Salazar, embora parte significativa da sua obra se tivesse desenvolvido nesses tempos difíceis para um homem da sua sensibilidade e postura perante a vida e a sociedade. Viveu intensamente o dia 25 de Abril de 1974, com o reaparecimento da Democracia e da Liberdade em Portugal.

Em Julho de 1940, Túlio Espanca foi nomeado «cicerone» da Comissão Municipal de Turismo de Évora, tinha sido o melhor classificado no curso de «cicerones» organizado no ano anterior pelo Grupo Pro-Évora. A partir desta altura, a presença de Túlio Espanca era praticamente obrigatória em qualquer visita à Cidade de Évora. Não só de eminentes personalidades visitantes da Cidade, como por exemplo, a da Rainha Mãe da Bélgica em Janeiro de 1947, e a do Presidente da República General Francisco Higino Craveiro Lopes a 29 de Junho de 1952.

Em Janeiro de 1943, Túlio Espanca acompanhou, numa visita à Sé e ao Museu Regional, o Director do Museu de Arte Antiga, Dr. João Couto. Anos mais tarde, a 15 de Maio de 1948, e por iniciativa deste, foi lida na Academia Nacional de Belas Artes em Lisboa um trabalho de Túlio Espanca intitulado “Pintores em Évora nos Séculos XVI e XVII”, sendo posteriormente publicado no Boletim “A Cidade de Évora” n.º 15-16 do mesmo ano. Este trabalho e a publicação regular do Boletim “A Cidade de Évora” – de que foi Editor deste o primeiro número até à data da sua morte – foi causa de notoriedade por parte de importantes personalidades ligadas à História e à Arte e que anos mais tarde culminaria com o convite a Túlio Espanca para ser o compilador e organizador dos Inventários Artísticos do Concelho e Distrito de Évora e, já nos anos 80 do Distrito de Beja.

Já nos anos 60, e por proposta do Arquitecto Raul David, Presidente da Comissão Municipal de Turismo, em sessão de Câmara de 1 de Outubro de 1964, organizou-se um ciclo de Visitas Guiadas aos principais monumentos artísticos da cidade e do seu aro suburbano, orientado pelo crítico de arte Túlio Espanca. Este Ciclo de Visitas Guiadas teve uma periodicidade anual praticamente até aos finais dos anos 80, com algumas interrupções, mas sempre muito concorrido por gentes de toda a condição social e intelectual, que acorriam para melhor conhecerem a Cidade através dos olhos e da palavra de Mestre Espanca.

          Túlio Espanca foi um erudito local que teve dois grandes enquadramentos institucionais ao longo da sua carreira: o Grupo Pro-Évora e a Câmara Municipal de Évora, nomeadamente a Comissão Municipal de Turismo, tendo sempre como pano de fundo a investigação sobre Évora e sobre o Alentejo.

Haverá que continuar a estudar e a trabalhar a personalidade e a Obra de Túlio Espanca, figura ímpar da nossa Memória e da nossa História, responsável pela desocultação e posterior publicação e divulgação de incontáveis documentos, de factos históricos, de memórias há muito esquecidas, verdadeiro operário da escrita e co-responsável pela preservação da Cidade de Évora, das suas ambiências histórico-culturais, a par com o Grupo Pro-Évora e com o Município Eborense, cujo corolário foi a Classificação de Évora como Património Mundial pela UNESCO em 25 de Novembro de 1986.

Mas, falemos um pouco mais desta extraordinária personagem.

Túlio Espanca foi uma personalidade ilustríssima da Cultura e da História portuguesas do Século XX,  Túlio Espanca nasceu em Vila Viçosa no dia 8 de Maio de 1913. Vem aos sete anos viver para a Cidade de Évora, que adoptou e pela qual foi adoptado, transformando-se, por assim dizer, no mais cidadão dos cidadãos eborenses.

Homem dos sete ofícios, foi operário corticeiro na Rua das Alcaçarias, foi aprendiz de chapeleiro à Porta Nova, foi aprendiz e mestre de barbeiro na Rua de Aviz e na Praça do Giraldo, foi militar voluntário, foi desenhador durante o tempo da tropa, foi músico na Academia dos Amadores de Música Eborense, foi cicerone dos monumentos de Évora da Comissão Municipal de Turismo, foi historiador – historiógrafo, como ele se apressava a corrigir – foi, enfim o comunicador nato que todos quantos privaram com ele poderão ainda recordar e testemunhar com saudade e alguma nostalgia.

Ninguém como o Senhor Espanca, como nos acostumámos a tratá-lo, sabia sobre Évora e os seus monumentos, sobre as suas gentes e as suas histórias.
           Como exemplo deste seu conhecimento quase enciclopédico sobre Évora, passo a referir uma descrição que, na Conta-Corrente, faz Vergílio Ferreira sobre um episódio passado em Évora, acerca da erudição famosa de Túlio Espanca:
 
            «(...). Há lá em Évora o Sr. Espanca, homem erudito das coisas eborenses que jamais deixou sem resposta uma pergunta que lhe fizéssemos. Um dia, li na Fénix Renascida (4 volumes) do século XVII uma referência aos excelentes vinhos de Évora. Como no meu tempo não havia lá vinhos, caí na imprudência de falar no caso ao Sr. Espanca. O que eu fui dizer. Inundou-me de tal forma sobre os vinhos que ali houve outrora, que ao fim da explicação eu já me sentia quase bêbado. A gente interrogava-o sobre uma pedra mais destacada de uma rua ou viela e ele tinha logo uma informação abundante que metia reis e batalhas e servidores subalternos em torno da pedra em questão. Nós sonhámos o sonho impossível de o encavacarmos com uma pergunta impertinente a que não soubesse responder. Até que um dia o Infante lhe pôs esta questão:
            – Senhor Espanca: qual é a diferença entre as arruelas e os besantes?
            - São duas rodelas, dizia, absolutamente iguais com o feitio de queijinhos de cabra. Espanca encordoou. Não sabia. Foi um dia glorioso para nós. Espanca, afinal, não era em tudo divino. Tinha as suas ignorâncias mortais.»
 
[in VERGÍLIO FERREIRA – conta-corrente 3, Livraria Bertrand, Lisboa,1983 (passagem referente ao ano de 1981 15 de Março (domingo), às págs.277-278).]

           Folheemos as suas obras e lá veremos referências à Sé e ao Templo Romano, ao Museu e aos Conventos, às Igrejas e Ermidas, aos Palácios e às Casas Senhoriais assim como aos seus recheios artísticos, às Ruas e à Toponímia, mas também aos episódios pitorescos acontecidos ao longo dos anos, descritos nas centenas e centenas de obras e de documentos que ao longo da sua vida consultou, leu e releu, que editou – os Inventários Artísticos de Évora e de Beja, o Boletim "A Cidade de Évora", os "Cadernos de História e Arte Eborense", etc.

 A extensa obra escrita que nos legou é qualquer coisa de fenomenal, de grandioso. Recordemos que as habilitações literárias de base de Túlio Espanca ficavam-se pela antiga 4ª Classe da Instrução Primária do seu tempo de menino. Mas, que lições ele dava a professores universitários que amiúde passavam por Évora aquando das suas pesquisas sobre a História da Arte ou sobre a História de Portugal.
           Como testemunhos registados deste facto atentemos às palavras de Santos Simões num artigo publicado no Boletim “A Cidade de Évora”, sob o título “Alguns Azulejos de Évora”, onde, a certa altura refere, no texto inicial de apresentação do artigo:

«(...).
           Antes de passar à frialdade descritiva desejo patentear aqui o meu mais sincero reconhecimento pelo valioso concurso recebido da Comissão Municipal de Turismo de Évora para a minha investigação, muito principalmente aos Ex.mos Snr. Dr. António Bartolomeu Gromicho – cujo amável acolhimento foi o principal incentivo para o prosseguimento do trabalho – e Snr. Túlio Espanca, companheiro constante e competentissimo piloto nêsse  mare magnum que é a Cidade de Évora.
            Tomar, Outubro  1943.
            João dos Santos Simões»

          [in  «A Cidade de Évora», n.º5, Dezembro de 1943 (pág.4).]

          Recordemos, pela sua singularidade e grande importância cultural, as celebérrimas Visitas Guiadas, realizadas durante décadas aos sábados de tarde, a que ocorriam incontáveis interessados e curiosos, eborenses e não só, que iam literalmente beber as palavras de Mestre Espanca: desde a dona de casa ao senhor professor do liceu, desde o estudante até ao funcionário público…, todos escutávamos com enlevo as vividas descrições do assalto ao castelo de Évora durante a crise de 1383-85, ou então outras descrições que sobre o mesmo período Fernão Lopes nos deixou nas suas Crónicas e que Mestre Espanca tão bem enquadrava e citava, de cor, ou então as vindas da Corte, dos Infantes e da Nobreza para Évora e da sua permanência, ou então falava-nos daquele pormenor da pequena imagem de um Menino Jesus que teria sido oferecido ao Convento do Paraíso por uma dama da alta nobreza que... e ia por aí fora e o tempo passava e passava e quase não dávamos por ele passar, ficava tão só a voz de Espanca e Évora e mais Évora, e História  e Arte...

A propósito das Visitas Guiadas à cidade podemos ler no semanário “A Defesa”, na sua edição de 31 de Maio de 1947, à pág. 4, no artigo de actualidade “Vida Civil – III Curso de Cicerones Eborenses”:

          «(...).
            A lição de amanhã será dada sobre os Loios, S. Antão, Santa Clara e Mercês, pelo sr. Túlio Espanca, informador oficial da Comissão de Turismo e primeiro diplomado do I Curso de Cicerones Eborenses. (...).»

          E, sobre o mesmo assunto, no jornal local diário “Notícias d’Évora”, de 3 de Junho do mesmo ano, à pág.1, inserido no artigo intitulado “III Curso de Cicerones Eborenses”:

            «(...).
            Continuando esta iniciativa do Grupo Pró-Évora, realisou se, no passado domingo, dia 1, a sua 5.ª lição.

Pelas 15 horas, cerca de 60 pessoas, reunidas no adro da Igreja de S. João Evangelista (Loios), visitaram este monumento, acompanhadas pelo sr. Tulio Espanca, que lhes ia fornecendo as necessárias e curiosas explicações.

Percorridas as dependências e o claustro do antigo convento, os assistentes deslocaram se depois, á Igreja de St.º Antão, longamente pormenorizada e admirada.

Seguiram-se as antigas igrejas de Santa Clara e das Mercês, terminando a lição junto do Palácio de D. Manuel, no Jardim Público.

Todos os presentes se confessaram encantados, com o que, de curioso e interessante, lhes fora dado a admirar, nesta larga visita de estudo e prazer espiritual, pela arte e valores que a revestiram de princípio ao fim, uma profusão de apontamentos em datas e referências históricas, reveladoras do profundo conhecimento, saber e competência do sr. Túlio Espanca.
           (...).»

          Túlio Espanca esteve ligado, desde a sua génese, aos famosos ciclos de visitas guiadas á cidade, foi ele o garante da continuidade das visitas que chegaram até aos anos 80, com uma frescura e uma eloquência que  a todos encantava e a todos instruía de modo exemplar.

A própria edilidade recebeu no seu quadro de funcionários Túlio Espanca, compreendendo na altura o importante papel cívico e educativo que representava esta iniciativa, instituindo os ciclos de visitas guiadas pelo historiógrafo, conforme se pode confirmar por notícia impressa no Boletim Oficial da Comissão Municipal de Turismo “A Cidade de Évora”, n.º 47, às págs. 227-228 e intitulado “As Visitas Guiadas e a Cidade de Évora”:

         «(...).
Segundo proposta do arquitecto Raul David, Presidente da Comissão de Turismo, em sessão camarária de 1 de Outubro de 1964, imediatamente patrocinada pela edilidade Municipal de Évora, realizou-se, com início em Outubro de 1964 e conclusão em Junho de ano seguinte, um curso livre de história local, constituído por um ciclo de 26 Visitas Guiadas aos principais monumentos artísticos da cidade e do seu aro suburbano, que foi orientado pelo crítico de Arte Túlio Espanca.»

        Poderá muito justamente dizer-se que Túlio Espanca foi o Autor que mais contribuiu para a divulgação do Património Cultural de Évora e do Alentejo, e consequentemente para a Classificação desta Cidade como Património Mundial, pela UNESCO, em 25 de Novembro de 1986.

       A par de ilustres figuras tais como Joaquim Augusto Câmara Manuel, Armando Nobre de Gusmão, Jerónimo de Alcântara Guerreiro, Júlio César Baptista, José Filipe Mendeiros, Mário Tavares Chicó, João António Rosa, Manuel Carvalho Moniz, António Silva Godinho, Celestino David, Henrique da Silva Louro, António Bartolomeu Gromicho e muitos outros que seria fastidioso citar, Túlio Espanca destacou-se como sendo um erudito local, seu contemporâneo, e que desempenhou um papel fundamental na procura e na caracterização de uma imagem para Évora e para o Alentejo, nomeadamente a partir dos anos de 1940, altura em que inicia o trabalho como guia intérprete na Comissão Municipal de Turismo, e altura em que trabalha os Arquivos Históricos da Câmara Municipal de Évora, realizando um hercúleo trabalho de sistematização, leitura e inventariação de documentos históricos que lhe viriam a permitir compreender e trabalhar na sua globalidade a História da Cidade.

Refere-se-lhe o Prof. Dr. Vítor Serrão:

«Túlio Espanca foi um dos grandes historiadores da arte portuguesa de sempre, o nosso mais acertado inventariante do acervo patrimonial, e grande homem dos valores do espírito e da cultura viva.»
          [in “A Cidade de Évora”, II Série, N.º1, 1994-95, pág. 39.]

 Contudo o seu interesse pela História e pela Arte aparece muito cedo, nomeadamente através da influência de seu tio paterno João Maria Espanca, negociador de antiguidades em Vila Viçosa e que frequentemente lhe emprestaria livros sobretudo de Arte e de História.

         Como já atrás foi dito, o interesse de Túlio Espanca pela História e Arte Eborenses não se inicia com a sua frequência do I Curso de Cicerones organizado pelo Grupo Pro-Évora no ano de 1939.

Túlio Espanca deixou-nos uma colecção de memórias manuscritas, assim como um conjunto de criações literárias da época da sua juventude, escritas entre os finais dos anos 20 e os anos 40, altura em que iniciou a sua actividade profissional como Guia Intérprete da Comissão Municipal de Turismo.     

Temos notícia dele próprio “editar” originais, manuscritos e desenhados, que partilhava com os amigos e camaradas de brincadeiras e aventuras, onde o texto e os desenhos se articulavam com um estilo dinâmico e revelador de leituras que exigiam uma preocupação não meramente de passatempo mas de instrução e aprendizagem.

Túlio Espanca deixou escrito nos seus "Diários", importantes referências para conhecermos o ambiente sociocultural de Évora da primeira metade do século XX. Refiramos a existência de diversos cadernos datados entre 1930 e 1940, onde nos descreve as suas aventuras juvenis; onde nos faz descrições de Évora e dos seus monumentos; onde nos apresenta em traços vividos as principais manifestações cívicas, públicas, militares e políticas do seu tempo. Faz-nos igualmente o retracto das suas relações familiares; dos seus namoricos; dos desportos e jogos que praticava; das suas viagens; descreve-nos os cinemas e os teatros, as festas e as romarias que presenciava e frequentava; fala-nos da sua vida como militar voluntário e como músico amador na Escola dos Amadores de Música Eborense. Tempos de intensa relação de sociabilidade.

Interessante será termos em conta algumas passagens dos escritos que Túlio Espanca nos deixou nos seus “Diários”:

 A 22 de Julho de 1931, durante a sua passagem pelo Serviço Militar, como voluntário, refere: «Estive a terças (leite) o que me poz em maior estado de debilidade. Deram entrada na mesma enfermaria dois doentes do meu regimento. / Sob a dolorosa estadia neste execrando hospital escrevi uma curta narrativa mais realista e empolgante do que socialmente verídica; encontrando-se incluída na Cartuxa Silenciosa ou Misterios dum Convento...»  
 
Apontamentos referentes aos dias 26 e 28 de Maio de 1935, aquando de umas festas realizadas na Escola Primária de S. Mamede: «Evocar páginas de S. Mamede, é sentir a nostalgia aguda da saudade invadir o meu coração e minh’alma. / Amo tanto as lembranças infantis que vertiginosas perpassam em cavalgadas de sonho ante a minha memoria... hó amo tanto a época inegualável da Escola!.»  Túlio Espanca foi extremamente motivado pelos seus tempos de Escola, daí que nunca tenha deixado de escrever, de ler, de exercitar a palavra escrita até ao extremo de, nos primeiros cadernos dos seus “Diários”, ele escrever uma primeira passagem a lápis e posteriormente passar todo o texto a tinta, e são centenas de páginas manuscritas.
 
No dia 16 de Dezembro de 1935, a propósito das suas influências literárias, Túlio Espanca escreve: «Muito jovem ainda, naquéla infancia que as leituras romanêscas de Conan-Coyle, Arnoud Galopim ou Michél Zévaco,  nos prendem completamente, nos ofuscam os sentidos e o nosso maior prazêr é antegosar a imitação dos heróis semi-deuses d’aquelas obras, tentei rivalizar Passavant, Francinett ou Sherlok Holmes, realisando apuradas peregrinações sob aguaceiros medonhos, incursões nocturnas em locais perigosissimos, penetrações em Conventos, egrejas, fortes, escaladas arriscadas e lutas titanicas para o triunfo coroar de glória a missão que propuzéra cumprir. /  Almas românticas existem poucas e, eu, sonhador plumitico [quereria Túlio Espanca dizer platónico?], adorador coerente do bélo, da virtude, da natureza inteira, como protésto de dedicação amiga, aos leais companheiros que me auxiliaram nesta historia salutar e culta “o têrmo será ambiguo, contudo é a expressão pura da verdade”, aqui lhes deixo tributado o meu reconhecimento.
                                                    Túlio Espanca»
 
Finalmente, uma última referência, que pela sua singularidade vale a pena anotar, de Novembro de 1930, escreve Túlio Espanca no seu Diário: «DIA 23. Das duas horas em deante, eu, José Fontes e Socrates, andamos vesitando uma parte da cidade nobre, como as edificações romanas do roqueiro palacio dos Bastos; o portico renascença adaptado ao ‘Conventinho’; a entrada do patio de S. Miguel, com as trese arruelas brasonadas; a profanada ermida dos ‘Cavaleiros d’Evora’; as traseiras da admiravel catedral, com a testeira da ábside em marmore, aquitectada pelo prussiano J. F. Luduvicius, no pomposo reinado de D. João V; a sugestionante frontespício da universidade henriquina, rodeada de claustros marmoreos; as vetustas ruelas da idade-media que se mostram timidas e romanticas; acompanhando-mos depois, a estrada de circunvalação, até o Rossio, ao local que antigamente denominavam do ‘Outeiro da Corredoura’. Aí, em casas novas, mas já velhas pela miseria expoente do sofrimento, da egnomia, exprime-se o caracter dos extigmas da desolação. Barracas entelhadas com velhas latas, ocultam o interior, duma luta simbolica dos miseros que vivem á margem da vida. Farrapos imundos, encobrem a nudes descarnada de mulheres mendigas, no tudismo da escoria, na união das almas. Aí morre-se egnobilmente, atrosmente, enquanto que, a verdadeira cidade dos monumentos, se bamboleia arrogante, na admiração dos forasteiros, que só isso vêem e nada mais!.»

 Ao ouvir-se ler este texto parece que o achamos em contradição com o que nos habituámos a ouvir a Túlio Espanca nas suas conferências, palestras, visitas de estudo aos e sobre os monumentos de Évora. Sente-se uma escrita de revolta e simultaneamente de denúncia, descrevendo, por assim dizer, uma imagem negra de Évora. Olhando não só o monumento mas olhando e mostrando preocupação por uma situação de injustiça social.

         É este aspecto humano que reencontramos, ao longo das leituras dos diários e memórias manuscritos, o saudoso e amigo Túlio Espanca.

         São depoimentos escritos por um jovem, na altura dos escritos com a idade compreendida entre os 17 e os 22 anos, possuidor de reduzidíssimos estudos académicos, demonstra um aturado trabalho de leituras e de um exercício da escrita. É extremamente interessante acompanhar a evolução da linguagem escrita do autor, de ano para ano, vendo nós a progressiva complexificação do pensamento e da escrita a par de um gradual desaparecimento de erros ortográficos e de palavras inventadas e por vezes sem nexo.

         Em 1990, como corolário de toda uma investigação e publicação de índole científica, finalmente Túlio Espanca é reconhecido pelas hierarquias académicas e o Senado da Universidade de Évora confere-lhe o título de Doutor Honoris Causa  no dia 31 de Outubro, anteriormente os seus dotes de investigador tinham sido já reconhecidos pela Academia Portuguesa da História, pela Fundação F.V.S. de Hamburgo (Prémio Europeu da Conservação dos Monumentos Históricos, em Maio de 1982),  pela Academia Nacional de Belas Artes (atribuição da Medalha de Mérito em Dezembro de 1982), pela Câmara Municipal de Évora (atribuição da Medalha de Ouro da Cidade em Novembro de 1982) e pela Presidência da República Portuguesa (atribuição do Grau de Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da  Espada em Novembro de 1982).
 
           Olhando a sua extensíssima obra percebemos que a palavra escrita é um continuum na vida de Túlio Espanca.

A palavra escrita ordena, memoriza e expressa o pensamento. Túlio Espanca modelou o seu próprio pensamento, orientando-o para as temáticas do seu interesse – a História da Arte, Évora e o Alentejo –, escrevendo as memórias do seu quotidiano. Através da escrita tentou compreender e dominar a realidade que o cercava. Através da escrita tomou consciência da própria realidade, registando-a e simultaneamente transformando-a. Com esta prática tornou-se aquilo que sempre disse que era, assumidamente: historiógrafo.
 
Recordar Túlio Espanca é dar-lhe vida. Ler a sua Obra é preservar uma Memória que pertence a todos nós eborenses e amantes da História de Évora e do Alentejo.
  
         Mestre Túlio Espanca, obrigado e... até Sempre!

                                                                                             Rui Arimateia
                                                                                                                      Évora,  Maio de 2013.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A centenária Feira de São João de Évora


A Feira de São João em Évora: etnografia, história e tradição


“Évora festeja desde há muito o dia de S. João. Deste antiquíssimo costume permaneceu principalmente a Feira de S. João, tal como nos habituámos a chamá-la desde o momento em que juntávamos as sílabas para tentar pelas primeiras vezes, balbuciando, a Comunicação através da Palavra. Momento tradicionalmente grandioso para as gentes de Évora e dos arredores, em que se faziam negócios e combinavam contratos; se compravam os fatos, o calçado, as mantas, as louças, os queijos e até os capotes alentejanos e as peças de fazenda; se adquiriam por atacado um nunca mais acabar de produtos para a casa e para o seu gasto durante o ano que agora re-começava... E para as crianças, as principais atracções eram os carrosséis e os carrinhos de choque; as farturas ou brenhóis e o algodão doce; eram as barracas de quinquilharias e de brinquedos; e era o Circo!...  O Circo com os palhaços e os leões, os malabaristas e os equilibristas; eram as cores e a música, eram os cheiros, eram um nunca mais acabar de sentires e de desejos, de deslumbramento e de espantos... Era a Feira de São João.” [Rui Arimateia, in “Diário do Sul”, 24 de Junho de 1997].

 

1. Curiosidades Históricas – os antecedentes:

 

Feira de Santiago ­ – criada no reinado de D. Afonso III por carta régia, em 5 de Julho de 1275. Tendo sido transformada em feira franqueada, a 16 de Fevereiro de 1279, por D. Dinis.

No reinado de D. Afonso V (1438-1481), faz-se público um Regimento que determina «como se devem escrever e assentar os gados para evitar que sejam levados para Castela». Datado de 1455, esse Regimento impunha aos lavradores  que fizessem escrever e assentar todo o seu gado, em cada ano no dia de S. João.

No reinado de D. Manuel I, a 6 de Abril de 1501, este monarca, ouvindo o que a Câmara lhe manda dizer por João Mendes Cicioso, responde que «ha por bem que façam a eleição dos almotacés por um ano somente e que começará por S. João de 1501, em diante».

A 22 de Abril de 1513, o mesmo rei, manda passar um Alvará nesta cidade de Évora, dirigido ao Juiz, Vereador e Procurador de Évora, afirmando que «por assim sentirmos por bem e por boa governança da cidade, havemos por bem e nos prás que de S. João em deante em que os Oficiais novos entrarem nos ofícios desta cidade, fique sempre um dos Vereadores do ano passado aquele que é mais antigo para servir o ano que vem como Vereador com os dois que se elejam… no dito dia de S. João que vem , em deante.»

A primeira Feira de S. João realizou-se no Rossio de S. Brás no dia 24 de Junho do ano de 1569.

A 7 de Novembro de 1574 aparece um Alvará de D. Sebastião (assinado pelo Cardeal Infante D. Henrique, seu tio), regulamentando a Feira de S. João no Rossio de S. Brás.

A 31 de Agosto de 1620, o rei Filipe II, manda de Lisboa um Alvará determinando «que os contratos que a Câmara fizer com os marchantes, sejam de S. João a S. João e não de Páscoa a Páscoa, como até agora se faziam.»

 

Outras Feiras tiveram lugar ao longo dos tempos no Rossio de São Brás, de que deixamos uma curta relação:

·         A Feira de Santiago, com notícia desde o reinado de D. Afonso III, em 1275;

·         A Feira Franqueada de D. Dinis, desde 1286;

·         A Feira dos Pucarinhos ou das Candeias, do reinado de D. João III, em 1525;

·         A Feira dos Estudantes, do reinado de D. Sebastião, em 1569;

·         A Feira dos Ramos, desde 1839;

·         A Feira Nova de S. Cipriano, desde 1900.

 

Como sugestão para um maior aprofundamento histórico e literário da temática da Feira de São João de Évora sugiro a consulta do livro “As Feiras de Évora” da autoria do Dr. Manuel Carvalho Moniz, uma edição da Câmara Municipal de Évora datada de 1997, na Colecção: “Novos Estudos Eborenses”, n.º 1.

 

2. A Feira de São João de Évora nos alvores do Século XX

 

Feira de tendas onde os mercadores e ofícios tinham uma importância fundamental. As arruadas arrumavam-se pelos ofícios e mesteres tradicionais: cirgueiros, cerieiros, curtidores de courama, mercadores de panos de cor, oleiros da loiça, ourives do ouro e da prata, filateiros das fiações, tecelões, caldeireiros, sapateiros, etc.

A movimentação na cidade nesta altura da Feira era enorme: mercadores, barraqueiros… assim como o policiamento da cidade durante o período de duração da Feira. Havia comboios especialmente fretados para trazerem pessoas para a Feira – de Lisboa e das cidades do Alentejo.

Era uma Feira que se impunha em termos económicos em todo o Sul do país, principalmente no que diz respeito ao comércio de gados.

A Feira de S. João era um certame fundamental enquanto instrumento de regulação dos preços dos produtos agro-pecuários – gado, trigo, farinhas, batata, azeite, vinho lãs, etc.

Período igualmente importante para as Estalagens existentes na época e posteriores Hotéis.

Durante muitos anos Évora foi a segunda cidade do Reino, daí a importância das feiras aqui realizadas para a economia da Região e do País.

A Feira de São João constituía-se enquanto a grande mostra dos produtos e das riquezas regionais.

Os dias mais festivos da Feira de S. João serviam como o espelho da moda de então: as toilettes e o social.

As cabanas e casas de pasto e os vendedores de droga e de fruta, os queijos e os enchidos. Dentistas e pedicuros. Todas estas actividades detinham a sua quota-parte na animação económica da feira.

Eram utilizadas as carretas e os carros de canudo alentejanos, para o transporte de mercadorias e das famílias.

A Feira de S. João enquanto espaço de diversão: as touradas e as cavalhadas; os Circos, Teatro e os Robertos; as barracas de répteis e outros fenómenos; barracas de jogos pim pam pum; as barracas de fotógrafos e os Museus Científicos; os Animatógrafos; as Filarmónicas Civis e as Bandas Militares dos Regimentos. O fogo de artifício.

Contribuía a Feira igualmente para o desenvolvimento do Teatro e da Música Filarmónica, pois nesta época muitas Companhias e Bandas Filarmónicas se deslocavam à cidade para apresentar as suas produções artísticas.

A própria família real visitou o certame por duas vezes, D. Carlos de Bragança e D. Amélia de Orleans estiveram na Feira de São João em 1889 e em 1903.

Após 1940 – o folclore e as inaugurações governamentais do Estado Novo marcaram presença transfigurando o aspecto tradicional da feira de São João. Re-organizou-se o terrado, apareceram as decorações ao gosto estético da época. Realizaram-se os cortejos do Trajo dos anos 60, tendo implícita a ideologia“ imperial” do Estado Novo.

Após o 25 de Abril – o Poder Local Democrático continuou a tradicional Feira de S. João, modernizando-a, e conferindo-lhe outras valências não só culturais mas também económicas: os concursos gastronómicos, as propostas socioculturais, o desenvolvimento tecnológico… Apesar de tudo a Feira de São João continuou como espaço e tempo catárticos dos cidadãos eborenses, fundamental para o equilíbrio funcional e emocional da sociedade eborense ao longo do restante ano de trabalho.

 

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Neste ano de 2013 em que se comemora o Centenário do Nascimento de Túlio Espanca, não queria deixar de partilhar a vivência deste nosso Amigo e grande historiador de Évora e do Alentejo, dos seus tempos de juventude. Túlio Espanca assenta praça como voluntário no Regimento de Artilharia Ligeira n.º1 em Évora no dia 25 de Fevereiro, onde permaneceu como militar até 1933, tendo sido licenciado como cabo condutor. Apresentamos de seguida o depoimento que Túlio Espanca deixou escrito nos seus Diários, sobre a Feira de S. João em Évora, decorrendo ano de 1931, nas entradas referentes aos dias 19, 23 e 24 de Junho:

 

“No rossio de São Brás, armavam-se já bastantes barracas, e a animação da tradicional feira de São João principiara. Os esqueletos do Cine-Teatro Rentini, companhia extravagante de comedias lofuquistas, e do velho barracão dos Três Irmãos Unidos, cujos fantoches eram os mais afamados que corriam de terra em terra. Rufando incessantemente e acompanhado pelos sons guturais dum realejo roufenho, mostrava-se ao começo do campo, uma escusa barraca com pequena esplanada na frente, onde se empoleirava um homensinho de grandes guias, bradando em altos gritos a propaganda de sua casa de clichés de cristal, num elenco formidável, mostrando as colossais caçadas ao leão africano, ao tigre indiano, ao elefante de Ceylão, à pantera do Senegal, ao ypophotamo, ao urso polar, etc., etc.; as grandes viagens de Cristóvão Colombo e a descoberta da América, a celebre travessia do Atlântico pelos arrojados aviadores Coutinho e Cabral, a terrível batalha de Marne etc. Cervejarias modernas, tombolas, quinquelharias, apareciam continuadamente nas ruas da feira, assim como jogos diversos, da argola, da bola nos palhaços, roleta, tiro ao pucarinho, ao alvo, ao canhão, ao pombo, às surpresas. Carrousseis, defrontavam-se dois abaixo do monumento aos Mortos, de troupes muito extravagantes.

Dia 23. Fui escalado para ordenança de ronda à feira, da tarde à uma hora da madrugada, sendo oficial da mesma, o aspirante Carrilho.

Dia 24. Entrei de cabo da guarda à cavalariça. São João em Évora.

A feira animava-se: chegavam os circos Excelsior e Mexicano, representando este as feras amestradas e ilariantes clowes; a sensação do homem mais pequeno do mundo, o basar das surpresas universais etc, mas eu (fatalidade) continuava em serviço no quartel, sem poder sair.”

 

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Pela sua actualidade de análise e de linguagem será interessante a leitura de um artigo publicado em 1901 na Revista “Serões”, publicada na capital, e intitulado:

 

A FEIRA DE EVORA

 

“Com o volver dos tempos as feiras vão perdendo a sua antiga importância económica. É natural a evolução. Nos organismos sociais como nos vivos, os órgãos sofrem as modificações correlativas à intensidade dos eu exercício, desenvolvendo-se ou atrofiando-se consoante o predomínio da função que desempenham; outras vezes por adaptações sucessivas aos meios novos de existência, de sua natureza também variáveis, os órgãos transformam-se tão profundamente que na aparência se torna difícil estabelecer-lhes a derivação. As feiras obedeceram às leis gerais. A mais simples observação descobre a verdade banal do conceito. Em passadas épocas, quando a carência ou a dificuldade de comunicações e de transportes interrompia a circulação necessária dos produtos agrícolas e industriais, onerava de despesas e riscos a deslocação, quando a intensidade do movimento comercial não atingia a aceleração febril que hoje o domina, quando a especulação inteligente e produtiva não acendia disputas de concorrência tão calorosas como as que actualmente aquecem a vida económica universal, nem se feriam batalhas de tão numerosos combatentes a disputar primazias ou preponderâncias decisivas na conquista das riquezas, como as que a cada momento agora abalam o mundo dos negócios; era evidente que as feiras representavam uma acção muito importante na economia, eram órgãos de principalíssimas funções. Claro está também que a meio tão diverso do antigo, a nova condições e circunstâncias, as feiras transformaram-se radicalmente, multiplicaram-se, generalizaram-se nos mercados especiais, de periódicas que eram tornaram-se permanentes. E, curioso aspecto de regressão atávica, tendo principiado por serem festas, adquirindo depois conjuntamente as funções utilitárias de mercados, vão hoje outra vez restringindo-se à sua primitiva feição espectaculosa, à medida que perdem a importância comercial. Junto dos grandes centros de população a mudança é completa, embora as feiras vão lutando sempre pela vida, buscando alento na tradição, que nos mecanismos sociais representa o benefício de volante, vencedor dos pontos mortos e regularizador do movimento. Basta recordar para confirmação do asserto as diversas fases por que foram passando nestes últimos vinte ou trinta anos as memoráveis feiras de Belém ou do Campo Grande em volta de Lisboa. E ainda, esta regressão tão característica é que mesmo na história das exposições internacionais ou universais, desde a primeira de Londres à mais recente de Paris, essas grandes feiras da indústria e do comércio modernos, se reconhece o caminhar apressado para a festa espectaculosa e deslumbradora que a crítica económica aprecia severamente; porque na verdade, em obediência às leis gerais da vida, as exposições também se diluíram, se parcelaram, se subdividiram e se tornaram permanentes no mercado universal.

Todavia como preenchem funções indispensáveis, as feiras subsistem onde ainda as necessidades comerciais e o maior ou menor desenvolvimento do meio económico exigem o exercício daqueles órgãos. No nosso país ainda há anualmente feiras duma importância considerável, embora atenuada em comparação com períodos anteriores. Andam quase sempre ligadas às comemorações religiosas que constituíam em antigos tempos o calendário do povo, mnemónica tradicional de fácil uso; realizam-se por isso, conforme as localidades e segundo os objectos especiais a que se dedicam, pelas festas do Espírito Santo, pelo S. João, pelo S. Mateus, ou pelo S. Miguel, em elucidativa correlação dos trabalhos da lavoura com as épocas do ano, em enumeração cronológica ou em compreensivo registo de contratos e de vencimentos.

            Entre as feiras actuais, a de Évora pelo S. João é ainda uma das mais importantes do país, não obstante a diversão casual e festiva substituir já em grande parte a actividade de transacções que outrora nela se realizavam. Feira de lãs, reguladora de preços para a estação; feira de gado e de artigos de lavoura; enorme mercado de utensílios domésticos e de fornecimentos caseiros; exibição característica, pitoresca de costumes alentejanos, de aspectos de vida provincial, tão fortemente acentuada no nosso país, e tão desastradamente comprimida pela centralização administrativa, absorvente, niveladora, geométrica na disposição, nos preceitos e nos processos.

            A feira chama à cidade uma concorrência extraordinária, curiosa capital das regiões de além rio, do sul do país, como o Porto é do norte, e anima a vida normalmente concentrada, monótona, pouco exterior das suas ruas e das suas praças, tão pouco denunciadoras da riqueza que ela encerra ou representa. No vasto rossio alinham-se as barracas e as fileiras abundantemente fornecidas dos diversos objectos para venda. Ao fundo, junto da orla do arvoredo acumulam-se num ele-mêle indescritível os carros, os animais, e os homens, onde vivem durante os dias de feira, porque o carro alentejano com sua cobertura característica de lona branca, para defesa das ardências do sol no estio e dos ventos gelados no inverno, constante confirmação da ciência pelo uso, das teorias da reflexão e da emissão do calor segundo as cores pela experiência dos séculos, o carro serve de casa, de leito, de hospedaria volante nas longas jornadas através das extensas charnecas da província. Mais além agrupam-se os animais para venda, as muares e os burros, os bois e os cavalos, das raças próprias da região ou mescladas das importadas de Espanha. Aqui lavradores entendidos, alquiladores de profissão examinam atentamente, debatem, numa técnica de difícil compreensão para profanos, as qualidades e os méritos duma bela parelha de muares resistentes, ou dum cavalo do tipo Alter ou do tipo luso-andaluz na sua variedade alentejana, elegante e graciosa à vista apesar das modificações que tem experimentado na grossura dos membros, crinas abundantes, finas, ondeadas, orelhas espertas, estreitas, bem plantadas na cabeça seca e longa. Acolá, sob a tenda formada com o auxílio do carro que se transformou em loja de bebidas, senão em casa de pasto, fecham-se transacções avultadas, contam-se maços de notas, onde há anos se ouvia em contagem rápida o metálico som do ouro em libras a transbordar de bolsas de couro bem providas. Lá em cima, regulam-se as compras de lãs dos barros, avalia-se o rendimento utilizável na indústria, separam-se as categorias de aplicação. Além, naquele terreiro, apresentam-se os sofredores, e sóbrios burros, resignados apesar da sua teimosia, aptos para todos os serviços de lavoura, prestáveis a todos os transportes.

Assim se vai passando em revista na vasta feira d’Évora toda a casta de animais agrícolas e todos dos produtos que dos montes e as herdades do distrito, e mesmo da região sul, acodem àquele tradicional mercado, conjuntamente com os pandeiros e adufes onde em acompanhamento monótono de reminiscências mouriscas se percute o ritmo das canções campesinas ao S. João, dolentes e arrastadas; e destes variados aspectos se dá ideia geral nas fotografias documentais que acompanham estas linhas descritivas.”  [inSerões”, s/a,  Revista mensal ilustrada, Vol. 1, Nº 4, Lisboa, Julho de 1901, págs. 251-253]

 

 

 

3. A Etnografia e a Feira de São João de Évora

 

De trabalho anterior de minha autoria, publicado no “Diário do Sul”  na edição do dia 24 de Junho de 1997, retiro alguns excertos sobre o “São João de Évora e a Tradição”:

 

«…/…

Passando muito rapidamente pela tradição etnográfica portuguesa, verificamos que as Festas de São João constituem tradicionalmente a reminiscência de antiquíssimo rito pagão, muito anterior ao cristianismo que, tal como muitos outros, a Igreja assimilou à sua própria liturgia – constituem aquelas festas, na verdade, a adaptação cristã do longínquo culto do fogo através do qual os povos primitivos acompanhavam e celebravam a evolução solar ao longo das estações do ano. Neste caso, assinalavam com enormes fogueiras a passagem do solstício de Verão, em que o Sol atinge o seu máximo esplendor, e daí que o São João se celebre a 24 de Junho, com a abundância de fogueiras e folguedos à sua volta.

 

Podemos ler no jornal eborense “Sul”, datado de 22 de Junho de 1882:

 

     «Diz a  tradicção que o santo popular costumava festejar o seu dia com tal estrondo, com tão ruidosas festas, que d’ahi procediam as trovoadas, que n’essa epocha do anno nos atormentavam os ouvidos. Deus, para pôr termo a taes excessos, condemnou-o a dormir durante os dias 23, 24 e 25, de modo que S. João não póde festejar o seu anniversario.

     Allusivas ao somno, que a tradição menciona, conhecemos algumas quadras:

 

                            Se S. João bem soubera

                            quando era o seu dia,

                            viria do céu á terra

                            com prazer e alegria.

 

                            Desperta, João, desperta

                            que já chegou o teu dia;

                            vem ver como te festejam

                            com prazer e alegria.

                           

                            S. João adormeceu

                            nas escadinhas do côro;

                            deram as freiras com elle

                            depenicaram-no todo.

 

     Embora esteja condemnado a esse somno de tres dias, S. João não deixa de revolucionar, especialmente, as cabeças das raparigas, que na proxima noite de sexta-feira tentam a sorte, para ver se hão de morrer solteiras ou casadas.

     Estas experimentam a alcachofra, aquellas a gema do ovo lançada no copo da agua; umas deixam ao sereno a bacia em que mergulharam as sortes onde estão escriptos os nomes dos mais queridos do seu coração, outras lançam á meia noite do alto das escadas o velho sapato que, se chega ao patamar, lhes dá a triste noticia de que hão de morrer  solteiras, e, se fica parado em qualquer degrau, lhes annuncia quantos annos hão de esperar pelo matrimonio.

     A noite d’amanhã é, pois, anciosamente esperada pelas que desejam saber se o escolhido do seu coração ainda estará muito tempo sem lhes pertencer.

     Até á meia noite, hora destinada para se effectuarem taes crendices, reina o delirio dos bailes e dos descantes em volta da fogueira: e, depois d’uma pequena paragem, proseguem até manhã clara, para á noite reviver com o mesmo enthusiasmo.»

                       

            Sobre as festividades do São João de Évora, refere-nos o Professor José Leite de Vasconcellos, por ocasião de uma sua visita à cidade, na companhia de Gabriel Pereira no ano de 1888 [José Leite de Vasconcellos – Ensaios Ethnographicos, Vol.IV, Livraria Classica Editora, Lisboa, 1910, págs. 317-320]:

 

     «(...).

     Á hora marcada, no dia 23 de Junho, embarcámos no Terreiro do Paço (...). Em breve cortavamos, no mais agradável convivio, as agoas mansas do Tejo, para logo em seguida entrarmos no comboio do Barreiro, que, através de extensas planicies, charnecas e vinhas, nos conduziu sem incidente a Évora.

     Das janellas do vagão avistavam-se ás vezes na orla extrema do horizonte fogueiras a arder. Eram as manifestações populares em honra do Precursor do Messias.

 

                            Quando os Moiros na Moirama

                            Festejam a S. João,

 

no dizer da trova, não admira que nas nossas populações esteja vivo o sentimento de respeito e veneração a elle, embora esta festa não seja de origem catholica, e se filie em velhos cultos naturalisticos: poucas festas tem mesmo significação tão bem conhecida e estudada.

     Chegámos de noite. Na estação havia extraordinaria agglomeração de gente á espera de forasteiros que, como nós, iam á feira de S. João. (...).

     Parte da feira tinha assento diante d’este templo [ermida de S. Brás].

     (...).

     Por todos os lados se erguiam barracas de panno com botequins improvisados, tendas de quinquilharias, lojas de dôce, - e se ouvia algazarra enorme e confusa, em que o habitante do extremo Sul do reino misturava a sua algaravia com as pragas rudes do calão dos Ciganos.

     (...).

     Depois atravessámos ruas tortas e estreitas, apesar de uma d’ellas se denominar pomposamente Rua Ancha, passámos debaixo de arcadas, silenciosas como claustros, e installámo-nos por fim em casa de Gabriel Pereira(...).

     Apesar de ser vespera de uma grande feira de anno e noite de S. João, o casamenteiro das velhas e gracioso galanteador das moças, no interior de Evora não se percebia o menor ruido (...).

     A minha illusão desvaneceu-se de pressa, porque, quando eu me preparava para dormir, começaram a passar na rua bandos de raparigas, que cantavam ao som de adufes, em toada monotona e prolongada:

 

                            S. João perdeu a capa

                            No caminho do estudo...

                            Ajuntem-se as moças todas,

                            Façam-lhe uma de velludo.

 

                            S. João, vós sois ôrives,

                            Porque é que não trabalhaes?

                            Quem me dera ser thesôro

                            Do dinhêro que gánhaes.

 

     Esta toada, com o seu quê de mourisco, divergia muito das do Norte e centro do reino (Porto, Beira), que são mais alegres e mais vivas. Por fim tudo cahiu em silencio (...).

                       

 

            Refiramos ainda algumas tradições curiosas recontadas por José Leite de Vasconcellos de Norte a Sul do País [José Leite de Vasconcellos, inEtnografia Portuguesa - Tentame de Sistematização”, Vol.VIII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1982, págs.378-425]:

 

            “O Sol, ao nascer, na manhã de S. João, vem a dançar... dá três voltas... ou sete voltas...

            Que festa haverá aí tão popular como a do São João? – “‘Té os moiros da Moirama/ Festejam a S. João.” (Do «Romanceiro» de Almeida Garrett).

            A noite de São João é a noite das fantasias e do amor: as feiticeiras vão na casquinha de um ovo para a Índia; as mouras encantadas saem dos penedos e das fontes, e estendem os seus tesouros por sobre a relva verde à luz da lua...

            Tudo nessa noite é reboliço e vida, tudo é juventude e amor...

            Ao saltarem as fogueiras, nove vezes, com um ramo na mão, diz-se: – “Viva São João/Nosso Senhor nos dê muito pão!”, ou, saltam as moças nove vezes a fogueira e dizem de cada vez: – “Em louvor de São João/Que me dê um homem rijo e são!”, e ainda, pega-se numa bacia com água muito clara, passa-se nove vezes sobre a fogueira e depois miram-se na água; se virem a cara, chegam ao resto do ano, se não, não.

            Pelo São João as moças saberiam o nome do futuro marido... queimavam alcachofras e ervas pincheiras ou deitavam ovos em água para saberem o futuro...

            Por outro lado, as moiras encantadas aparecem cá fora, saídas das fontes e das grutas, são espíritos das Naturezas, despertados em época tão santa e especial - quando os frutos começam a aparecer.”

 

 

            Rocha Peixoto, outro eminente etnógrafo português, vê na crença das mouras encantadas, que nesta noite aparecem associadas à água a mostrarem tesouros escondidos, persistências da “simbólica do Sol renascendo da Terra e triunfando do Inverno; encanto: a luz dominada pela sombra; meadas de ouro: a vitória plena da luz.” [Rocha Peixoto, in “Etnografia Portuguesa”, Col.’Portugal de Perto’, nº20, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990, págs.57-64].

 

…/…».

 

4. A Tradição do São João

 

As festividades de São João Baptista e de S. João Evangelista, respectivamente a 24 Junho e a 27 de Dezembro são coincidentes com os solstícios. Assim, periodicamente, somos levados a reflectir na importância simbólica e espiritual do fenómeno solsticial, inserido este no período de um ano e directamente relacionado com o posicionamento do Sol face à Terra, ou vice-versa. Com efeito, no Solstício de Inverno inicia-se a fase ascendente do ciclo anual; marcando o Solstício de Verão o início da fase ascendente. No simbolismo greco-romano têm o nome de portas solsticiais e são representadas pelas duas faces de Janus, que por sua vez, deram origem aos dois São João, de Inverno e de Verão. A porta invernal introduz a fase luminosa do ciclo enquanto que a porta estival está relacionada com o, a partir desse momento, progressivo obscurecimento.

            Realidade Natural que se faz sentir com toda a certeza desde os primórdios da Criação, foi contudo aproveitada pelos Homens Sages para fazer transportar para as vivências da Humanidade outras Realidades, qualitativamente superiores, estas de cariz mais Espiritual e ligadas às tradições dos Mistérios.

            Nada melhor que o simbolismo de Janus – o deus das duas caras – para que pudesse ser transmitido aos homens o conceito de princípio permanente, pois que, este deus de cara dupla simbolizava o Uno Imanifestado que ligava o passado e o futuro no Único e Eterno Presente.

            Os antigos iniciados dos Mistérios romanos faziam representar Janus com duas caras, uma, jovem, simbolizando o ano crescente, a outra, velha, símbolo do ano moribundo. Contudo, porque símbolo do Sol, Janus não passava de uma realidade virtual, pois a Realidade Última, perene e inefável, teria que ser apreendida para além da manifestação dualística e exterior.

            As festas ritualísticas dos dois São João, como em certa medida toda a celebração litúrgica, repousam pois sobre o seguinte postulado: o tempo cósmico e humano está sujeito à regeneração perene, sendo este vai-vem rítmico dos solstícios como que uma imagem e um reflexo sensível e natural desta lei universal.

            Muito mais se poderia dizer e especular e argumentar, sobre as diferentes iniciações mistéricas, perante as diversas culturas e épocas, sobre superstições e realidades, sobre costumes bizarros e cultos atávicos, contudo, gostaria tão só referir alguns conceitos e realidades energéticas, porque ao meditá-los sinto a possibilidade de transformação de mim próprio, via um autoconhecimento que se pretende cada vez mais profundo.

            O SOL, a primeira realidade fundamental e elemento chave das Festas de S. João. Os solstícios são dois momentos cruciais no Ciclo da Natureza e do Ano. Realidades ligadas à transformação, à purificação, à mudança, ao crescimento e à colheita, à luz que combate as trevas - física, psicológica e espiritualmente. Manifestação de Arquétipo Universal.

            O FOGO, realidade ligada desde o primeiro momento com a criação, a manutenção da Vida e a Iniciação aos Mistérios da Humanidade. Associada à Terceira Pessoa da Trindade da Tradição Cristã - o Espírito Santo, mas indissociável a esta Tradição está também  o Cristo e o Baptismo pelo Fogo. Manifestação de Arquétipo.

            A FESTA, novamente a Iniciação aos Mistérios. A importância da dramatização dos Rituais. A Consagração do Sol, do Fogo, da Natureza, do Cristo - enquanto Realidades Cósmicas.  Vêm também as Fogueiras, a Magia Naturalista das Mouras e das Fontes, os Encantamentos e a Adivinhação, a Poesia, a Aldeia e o Paganismo. Manifestações de Arquétipos.

            Espiritualmente, todas as Realidades Arquetípicas, quando vividas com autenticidade, amor, tolerância, são Verdadeiras.

A cadeia do saber mistérico, iniciático e tradicional, encontra-se mergulhada nos arquétipos eterno presente. O princípio e o fim fundindo-se e transmutando-se na alquimia da Vida, numa génese única do Ser. A Egrégora Eterna…. A Iniciação Solar... Tão bem transmutada e transmitida através do simbolismo perene de São João e das suas festividades milenares.

            Tenhamos então e em conta as palavras de Mestre Jesus, chegadas até nós pela palavra de S. João Evangelista no Evangelho Segundo São João, XV,12-17, essência última da mensagem mais profunda da Religião Cristã:

 

     «Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos ordenei. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor: chamei-vos amigos, porque vos manifestei tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que escolhestes a mim; fui eu que escolhi a vós e vos constituí, para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja duradouro, a fim de que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda. Isto eu vos ordeno: que vos ameis uns aos outros.»

 

PAX  PROFUNDA

 

Rui Arimateia

rui.arimateia@gmail.com

Évora, Junho de 2013