quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Feliz Natal


A beleza, o mistério e o milagre do nascimento...

GRACIAS A LA VIDA

Prezados Amigos e Amigas leitores do EvoraOculta:
porque o Natal deverá ser antes de tudo um Hino à Vida,
à Liberdade, à Justiça e à Verdade,
é com muito sentido que vos desejo
os Votos de um Natal luminoso e inspirador de mais humanidade,
tal como nos cantou Violeta Parra no seu poema "Gracias a la Vida".
Que o Natal aconteça e permaneça no coração de todos nós...
Emanuel

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo.
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abedecedario
Con él las palabras que pienso y declaro
Madre amigo hermano y luz alumbrando,
La ruta del alma del que estoy amando.
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio.
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano,
Cuando miro al bueno tan lejos del malo,
Cuando miro al fondo de tus ojos claros.
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto,
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto.
Gracias a la vida
Gracias a la vida
Gracias a la vida
Gracias a la vida.

Violeta Parra

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Janelas...


Universidade de Évora

A ARTE DE SER FELIZ

Houve um tempo em que minha janela
se abria sobre uma cidade que parecia
ser feita de giz. Perto da janela havia um
pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra
esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre
com um balde e, em silêncio, ia atirando
com a mão umas gotas de água sobre
as plantas. Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o
jardim não morresse. E eu olhava para
as plantas, para o homem, para as gotas
de água que caíam de seus dedos
magros e meu coração ficava
completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o
jasmineiro em flor. Outras vezes
encontro nuvens espessas. Avisto
crinças que vão para a escola. Pardais
que pulam pelo muro. Gatos que abrem
e fecham os olhos, sonhando com
pardais. Borboletas brancas, duas a
duas, como reflectidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega. Às
vezes um galo canta. Às vezes um
avião passa. Tudo está certo, no seu
lugar, cumprindo o seu destino. E eu me
sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de
cada janela, uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem
diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a
olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Natal na Arte


Pintura de Álvaro Pires de Évora - Séc. XV

ALGUMAS TRADIÇÕES DO NATAL EBORENSE

Apesar da «normalização» das Tradições nos tempos que correm, as memórias das antigas tradições desta quadra festiva ainda dinamizam algumas práticas peculiares, tais como:
– A presença lúdica do Presépio com figurinhas de barro, que tradicionalmente era costume as famílias visitarem em algumas igrejas da cidade. Embora não dispensasse a sua construção nas próprias casas.
– Ainda em algumas aldeias do Alentejo – embora seja um costume de cariz comunitário hoje praticamente inexistente – os vizinhos juntam grande quantidade de lenha normalmente no adro da igreja paroquial, acompanhada por um grande madeiro, que fazem arder durante toda a noite de Natal, aí convivendo. Em algumas residências queimava-se igualmente um grande madeiro na lareira. Os restos do madeiro do Natal guardavam-se para posteriormente acender quando fizesse trovoadas, diz-se, como protecção...
– Ainda em muitas paróquias da Cidade se celebra a Missa do Galo, por volta da meia-noite, muito concorrida era a de S. Francisco devido ao facto de se iniciar a cerimónia com a enorme nave iluminada por pequenas lamparinas de azeite, provocando um efeito estético deslumbrante.
– É tradição comum a chamada consoada, missadela, missada ou missadura: reunião familiar após a Missa do Galo, ou por volta da meia-noite do dia 24 de Dezembro, em que as pessoas se juntam para cear, consistindo tradicionalmente a Ceia de Natal por diversas iguarias próprias da época festiva: peru assado, bacalhau cozido com couves, linguiça e febras de porco assadas, filhós, rabanadas, sonhos, nógado e arroz doce. A quantidade e a qualidade das iguarias da Ceia correspondiam proporcionalmente às disponibilidades dos ganhos de cada família…
– Após a Ceia e antes de irem dormir, as crianças iam colocar o sapatinho ou a meia à chaminé para que o Menino Jesus durante a noite viesse colocar as prendas. É pena que as «lógicas» modernas dos pais natais consumistas tenham destronado este costume tão simples e poético.
– Ainda ligadas com a quadra festiva, cantavam-se, principalmente nas aldeias e bairros limítrofes da cidade, com características rurais, as Janeiras e os Reis. Tradições hoje praticamente desaparecidas, com a excepção de um grupo de homens da aldeia de Torre de Coelheiros que, resistentemente, ainda persistem na saída à rua na noite de Reis a fim de cantarem e encantarem os residentes e os forasteiros que àquela aldeia se deslocam para usufruírem de uma memória viva.

Recordo alguns Natais de Évora rebuscados nas memórias da minha infância:

Natal de Évora I

O Menino está dormindo
Nas palhinhas, despidinho,
Os anjos lhe 'stão cantando:
Por amor, tão pobrezinho.

O Menino está dormindo
Nos braços da Virgem pura.
Os anjos lhe 'stão cantando:
Glória a Deus lá nas alturas.

O Menino está dormindo
Nos braços de São José,
Os anjos lhe 'stão cantando:
Glória tibi, Dominè.

O Menino está dormindo
Um sono de amor profundo
Os anjos lhe 'stão cantando:
Viva o salvador do mundo!


Natal de Évora II

Eu hei-de dar ao Menino
Uma fitinha pr’ó chapéu
Também ele me há-de dar
Um lugarzinho no Céu.

Olhei para o Céu
Estava estrelado
Vi o Deus Menino
Em palhas deitado

Em palhas deitado
Em palhas ‘quecido
Filho duma rosa e
Dum cravo nascido.

Arre burriquito
Vamos a Belém
Ver o Deus Menino
Qu’a Senhora tem

Qu’a Senhora tem,
Qu’a Senhora adora
Arre burriquito
Vamo-nos embora.


Natal de Évora III

Eu hei-de dar ó Menino
Uma fita, uma fita pr’ó chapéu
Também ele nos há-de dar
Um lugar, um lugarzinho no Céu.

Não façam bulha ao Deus Menino
Não o acordeis que está dormindo
Em vez d’O brindar com algum mimo
Dêem-lhe leite que é pequenino.

Eu hei-de dar ao Menino
Ao Menino, ao Menino hei-de dar
Camisinha de Bretanha
Nesta noite, nesta noite de Natal.


Rui Arimateia

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Sol, a Luz e o Ovo


Pintura de Vladimir Kush

CÂNTICO DO IRMÃO SOL

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
a Ti pertencem os louvores, a glória, a honra e toda a bênção.
A Ti só, Altíssimo, se hão-de prestar
e nenhum homem é digno de pronunciar o Teu Nome.

Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as Tuas criaturas,
especialmente meu senhor o irmão sol
que faz o dia e nos dá a luz.
E ele é belo e radiante com grande esplendor;
de Ti, ó Altíssimo, nos traz a imagem.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas;
no céu as formaste, claras e preciosas e belas.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão vento
e pelo ar e a nuvem e o sereno e todo o tempo
pelo qual sustentas as Tuas criaturas.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã água
a qual é muito útil e humilde e preciosa e casta.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão fogo
pelo qual alumias a noite
e ele é belo e alegre e robusto e forte.

Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a mãe terra
que nos alimenta e governa
e produz variados frutos e flores coloridas e erva.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelos que perdoam, por amor de ti
e suportam enfermidade e tribulação.
Bem-aventurados aqueles que as sofrem em paz,
pois que por Ti, ó Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal
da qual nenhum homem vivente pode escapar;
ai daqueles que morrerem em pecado mortal.
Bem-aventurados aqueles que se tiverem conformado com Tua santíssima Vontade,
porque a morte segunda lhes não fará mal.

Louvai e bendizei ao meu Senhor e dai-lhe graças
e servi-O com grande humildade.


S. Francisco de Assis

domingo, 20 de dezembro de 2009

Solstício


O Sol durante o solstício

NATAIS

Natal I

Olho as colheitas alegres cantadas
Nos fogos do solstício de S. João Baptista E sinto ceifas tristes choradas Até ao equinócio húmido das sementeiras.
Passaram.

Ficaram já não as lágrimas de dor indignadas Mas só os sorrisos libertos da esperança.
Ficaram flores plantadas nos horizontes abertos Com água cristalina já sem sal regadas.
Ficaram frutos
E ficaram palavras e sementes perpetuadas Pelo arado da Vida em sulco a germinar.
Ao desabrochar, nascendo, é absoluto o renascer e puro, Neste solstício do princípio do Verbo de S. João Evangelista, Em novo ciclo, em cadeia, do passado para o futuro, Em degrau superior, de grau em grau, Com outra visão, menos escuridão, Mais Luz, Mais Irmão!

J. Rodrigues Dias (2009-12-11)

Natal II

Olho a Luz no Oriente, expectante,
Onde aparece a Luz de Menino nascido,
Renascido pela Força da Estrela Flamejante!
Olho nela a Sabedoria dos que já partiram Na Beleza dos sorrisos que deixaram.
Olho e volto a olhar o Belo
E fico em Paz,
A olhar dentro de mim o teu infinito sorrir, A sentir a Cadeia de União contigo, Irmão!

J. Rodrigues Dias (2009-12-11)

sábado, 19 de dezembro de 2009

A Senhora desaparecida...


Imagem da ermida de S. Jordão - Évora

O SIMBOLISMO DO PRESÉPIO

Um dos mais ternos símbolos do Natal, celebramo-lo tradicionalmente no nosso País, na cidade ou nos campos, nas vilas ou nas aldeias: o Presépio. Apresenta-se-nos como uma dramatização simbólica de grande significado humano e espiritual.
Denominamos vulgarmente por Presépio (palavra de origem latina que significa "local onde se recolhe o gado") aquela representação lúdica da cena do nascimento do Menino Jesus, com todo um enquadramento poético e bucólico. Nomeadamente descrevendo a Presença do Menino, entre dois animais (vaca e burro) acompanhado de Sua Mãe e por José e, perante eles, pastores, anjos e Reis (Magos) a adorá-Lo e a oferecer-Lhe presentes.
Porém, mais do que um simples passatempo anualmente organizado, é esta uma representação de cariz espiritual, que vai tocar no mais fundo de quem ousar jogar, brincar aos Presépios, vai tocar o Símbolo do Natal - o Nascimento do Cristo em-devir. E para além de todo o aspecto lúdico de construir o Presépio (autêntica cosmologia), tal como num Jogo de Xadrez, movimentando nós as peças no tabuleiro branco-negro - que afinal poderá significar a vida do ser humano em todas as suas dicotomias e vicissitudes tais como o amor/ódio, o positivo/negativo, a vida/morte, o bem/mal... -, existem Realidades transformadoras e transformantes que nos têm sido transmitidas ao longo dos séculos.
O Presépio... eis-nos perante uma manifestação popular religiosa em que transparece uma ligação entre o homem e a terra... entre o oleiro (o barrista) e o barro.
O homem pegou num pedaço de barro e, paradigmaticamente, moldou-o à sua imagem e semelhança, deu-lhe as cores da Vida, transmitiu-lhe um significado simbólico.
Do barro animado foi gerada uma obra estética que, por sua vez, deu origem à representação do símbolo do Natal: o Nascimento de Jesus, o futuro Cristo, reformador de Religiões e Curador dos homens. O Mistério aconteceu... há dois mil anos, em finais de Dezembro, despontava o Sol na obscuridade do signo zodiacal do Capricórnio (de onde a Gruta, por analogia), nascendo no horizonte, no seio da Constelação da Virgem e encontrando-se no alto do firmamento a Constelação Orion com as três estrelas no centro - os Reis Magos... Eis a encenação astronómica do Natal que deu origem ao nascimento do Cristo Mítico, pois nos encontramos perante a dramatização de um Mito Solar.

Numa outra perspectiva, considerando como Cultura tudo aquilo que é susceptível de ligar os homens, então, o Presépio (o Mistério do Natal) é um acto, é uma manifestação cultural por excelência. Assim, todo o acto cultural é um acto criativo porque vai tocar o que de mais íntimo, o que de mais essencial permanece, quiçá inato, no homem. Através da Festa do Natal, através da dramatização multisecular do Presépio, esse íntimo, essa essência, é afinal a Criança que ultrapassa a realeza (pois reis lhe oferecem o Ouro), que está acima de qualquer sacerdote (pois é contemplada com incenso, por magos), e venceu a Morte (significando a oferta de Mirra, o conhecimento dos segredos da Imortalidade).
Por analogia, representando simbolicamente a tentativa do homem se renovar, se purificar, renascer anualmente, ciclicamente. Isto é, representando, festejando o nascimento do Homem Novo e, em última análise, a Renovação da Humanidade através do Nascimento de uma Criança, símbolo da Inocência, da Inofensividade, da Tolerância...
O Presépio é, afinal, a leitura e a interpretação popular, imbuídas de sentido estético particular, de um sentimento religioso emanado e veiculado através da evolução institucional (e por vezes ideológica) do Cristianismo. Constituem-no figuras com alma própria, aperfeiçoadas ao longo dos Séculos, permitindo uma apropriação vivida daqueles Mitos e Mistérios que, por sua vez teriam sido reintegrados pelo próprio Cristianismo. A sensibilidade espiritual dos Presépios conseguem transmitir ao longo de gerações toda uma Mística e toda uma Mitologia superiores que ainda hoje sobrevivem e são transmitidas.

Avancemos uma proposta de significação dos principais elementos simbólicos presentes no PRESÉPIO:

Presépio: palavra de origem latina que significa: "local onde se recolhe o gado". Na Tradição portuguesa: presépio ou lapinha (gruta).

Belém: significa literalmente a "Casa do Pão" [em hebraico, Beith-Lehem]; mas também poderá significar, através de uma interpretação simbólica baseada na Cabala judaica, a "Casa de Deus" [Beith-El].

Estábulo e manjedoura: símbolos da pobreza. Do corpo humano e do interior do corpo de onde Jesus nasceu. Os habitantes do Estábulo eram um boi e um burro. Símbolos da geração/fertilidade e da personalidade, respectivamente. Estábulo como símbolo do corpo humano, contendo dentro de si duas forças em permanente conflito: personalidade e sensualidade. Jesus, o Cristo, poderá todavia ser considerado um Iniciado nos Mistérios da Espiritualidade Universal, conseguindo transmutar em si próprio o boi e o burro, colocando-os ao seu serviço.

Estrela: este símbolo é reconhecido pelos Iniciados na Religião-Sabedoria dos Mistérios Antigos. É símbolo do Homem, feito á imagem e semelhança de Deus Criador (daí o aforismo Hermético: "O que está em cima é igual ao que está em baixo").

Os três Reis Magos: Melchior, Baltazar e Gaspar, segundo a Tradição, um Vermelho, um Branco e outro Preto, remetendo-nos eventualmente para interpretações alquímicas, de Construção da Obra... Conferiram/reconheceram no Menino Jesus um Salvador Espiritual da Humanidade, um Reformador dos Mistérios.

Ouro: significará simbolicamente que Jesus era Rei e possuía em si a luz dourada da Sabedoria.

Incenso: símbolo do Sacerdócio, da Verdadeira Religião (ou Religião da Verdade), do Coração e do Amor.

Mirra: Símbolo da Imortalidade. Era utilizada para embalsamar os corpos e preservá-los da corrupção e destruição.

Galo: símbolo solar por excelência. Anunciador da luz do dia.

Concluindo, o Presépio, com todo o seu sistema de símbolos, transmite, de forma poética e lúdica, realidades espirituais de suma importância, vivencial e humana. Talvez inventado por S. Francisco de Assis, para a mentalidade cristã medieva, por volta do século XIII, tem como figura central, como protagonista, o Menino, figura tão grata aos espirituais franciscanos ao longo dos tempos. A sua realidade fundamental é a da possibilidade, de facto, do Cristo vir-a-nascer na Humanidade em geral, no indivíduo em particular...

Rui Arimateia

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Nascimento da Luz


Estrela Faria - pintura para postal de Natal dos CTT

O ESPÍRITO DO NATAL

«Ukko, o Grande Espírito, cuja moradia é em Yûmala (o Céu ou Paraíso),
escolhe como veículo a Virgem Mariatta para se encarnar por meio dela em Homem-Deus.
Ela concebe colhendo e comendo um baga vermelha (marja).
Repudiada pelos pais, dá nascimento a um "Filho imortal" numa manjedoura de um estábulo.»
in KALEVALA


Os Cristãos celebram, por alturas do Solstício de Inverno, a Festa chamada Natividade ou Natal, para comemorarem o nascimento de Jesus - o Cristo, o Salvador do Mundo. Festa religiosa tradicional que celebra a passagem do Sol pelo Solstício. Festa que sofreu diversificadas evoluções ao longo dos milénios, consoante os povos e as mentalidades que dela se apropriavam culturalmente.
Todavia, esta Festa foi instituída canonicamente tão-só a partir do século IV da nossa Era pelo Papa Júlio I. O costume da festa religiosa em finais de Dezembro tinha origens remotas, a Igreja de Roma apenas fez coincidir o nascimento de Jesus em 25 de Dezembro para, de certo modo, sacralizar os festejos pagãos pré-existentes, reformando toda a manifestação da Sabedoria-Sageza contida nos Antigos Mistérios.
A tradição do Natal, por conseguinte, não é apanágio exclusivo dos Cristãos, com a representação da Natividade do Menino Jesus, com o nascimento de um Menino-Rei de uma Virgem.
Já os antigos Druidas celtas celebravam o dia 25 de Dezembro com iluminações. Mitra, avatar oriundo da antiga Pérsia, nascia de uma Virgem neste mesmo dia, assim como Horus, uma das figuras da antiga trindade Egípcia. Igualmente, entre os Gregos nascia Baco e, entre os Fenícios, Adonis; na Índia temos também o exemplo de Agni...
Todos eles com o significado da representação ou manifestação do Deus-Sol entre a Humanidade. Todos eles personificações do ancestral Mito Solar Cósmico - que considerava o Sol como a Fonte inesgotável de toda a existência e o Símbolo, por excelência, do Ser Divino e origem de toda a criação, o Logos, a manifestação física do Verbo Inefável e Eterno -, todos eles festejavam o (re)nascimento do Astro após os longos meses de invernia. Era a vitória da Luz sobre as Trevas, era o nascimento do neófito para a luz, e foi exactamente no Solstício de Inverno que a Igreja Cristã fixou o nascimento do Restaurador das Iniciações...

No nosso País tempos houve em que se acendiam madeiros nos adros das igrejas - local sagrado e de culto do Deus Solar, pois Cristo está por demais identificado com o próprio Sol... Mas, são tempos passados, resistindo, esporadicamente, tão só uma ou outra reminiscência destes actos verdadeiramente comunitários, pois a lenha ou o madeiro era transportado para o local do sacrifício por todos os vizinhos.
Porém, hoje em dia, a preocupação real da generalidade das pessoas está direccionada para o consumismo que tão bem caracteriza a nossa sociedade moderna, livre e ocidental ... O Natal - totalmente profanizado, no sentido de ter sido esvaziado dos conteúdos que nos são oferecidos pelo Mito cosmogónico e pelo menino Jesus, símbolo de pureza e de pobreza, de partilha e de amor -, o Natal, fizemo-lo sinónimo de consumo, corporalizado pelo frenesim das compras das vésperas e das trocas de prendas, passando-o em lautos banquetes... Poderemos então, perguntarmo-nos: e o que resta para o Outro? - As prendas oferecêmo-las a nós próprios, nos banquetes devoramos muito mais do que o razoável, para não dizer do que necessitamos... E o Outro? E os Outros? E os milhões e milhões de outros que neste preciso momento necessitam desesperadamente nem que sejam umas pitadas daquele Espírito de Natal que sabemos qual é mas que não temos a coragem, nem a sensibilidade, nem a disponibilidade de assumir porque estamos demasiadamente ocupados em olhar o nosso umbigo... ao invés de escutarmos o Coração e de praticarmos o acto da Dádiva?!...

Ouçamos as palavras e o testemunho da parteira Zaquel, de Belém de Judá, descrevendo um episódio que terá acontecido há quase dois mil anos:

«(...) Naquele momento pararam todas as coisas, silenciosas e atemorizadas: os ventos deixaram de soprar; não se movia folha alguma nas árvores, nem se ouvia o ruído das águas; os rios ficaram imóveis e o mar sem agitação; calaram-se as nascentes das águas e cessou o eco de vozes humanas. Reinava (por toda a parte) um grande silêncio. Até os próprios povos abandonaram naquele momento o seu vertiginoso movimento. O curso das horas quase havia parado. Todas as coisas se tinham abismado no silêncio, atemorizadas e estupefactas. Nós (estávamos) esperando a chegada do Deus das alturas, a meta dos séculos.
Quando chegou, pois a hora, descobriu-se a virtude de Deus. E a donzela, que olhava fixamente o céu converteu-se (como) numa vinha [estátua branca], pois já avançava o cúmulo dos bens. E enquanto a luz jorrava, a donzela adorou Aquele a quem reconheceu haver ela própria dado à luz. O Menino resplandecia tal como o Sol. Estava limpissimo e era gratissimo à vista, pois só Ele apareceu como a paz que apazigua todo (o universo). À hora do nascimento ouviu-se a voz de muitos espíritos invisíveis que diziam a uma só voz: "Amén". E aquela luz multiplicou-se e obscureceu com o seu esplendor o fulgor do sol, ao mesmo tempo que esta gruta se viu inundada por uma intensa claridade e por um aroma suavissimo. Esta luz nasceu da mesma maneira que o orvalho desce do céu à terra. O seu aroma é mais penetrante que o perfume de todos os unguentos da terra.
Eu, por minha parte, fiquei cheia de assombro e de admiração e o medo apoderou-se de mim, pois tinha fixo o meu olhar no intenso resplendor que emanava a luz que tinha nascido. E esta luz foi-se pouco a pouco condensando e tomando a forma de um menino, até que apareceu um infante (tal) como costumam ser os homens ao nascer. Então eu tomei coragem: inclinei-me e toquei-o, levantei-o nas minhas mãos com grande reverência e enchi-me de espanto ao verificar que não estava minimamente manchado, mas que o seu corpo era nítido, como acontece com a orvalhada do Deus Altissimo; era ligeiro de peso e radiante ao olhar. E enquanto me surpreendia ao ver que não chorava, como costumam fazê-lo os recém-nascidos, e o fitava com grande atenção, dirigiu-me um suavissimo sorriso; depois, abrindo os olhos, fixou em mim um penetrante olhar e simultaneamente saiu da sua vista uma grande luz como se se tratasse de um relâmpago. (...).»
[in Liber de Infantia Salvatoris, Cod. Museu Britânico,Séc.IX?]

O Natal - Festa Cíclica que deveria inspirar os homens para que vivessem continuamente aquele estado de inocência e pureza que é a infância, que assumissem o regresso à Infância... Deste modo, a dramatização do Presépio - através da sua construção com as pequenas figuras de barro, com o musgo e todos os objectos que permanecem na nossa memória mais longínqua - deveria constituir uma oportunidade do homem reflectir o seu estar e o seu ser, autenticamente humanos, no mundo.

Não é demais reafirmar que a Festa do Natal é, acima de tudo, a Festa do Cristo, individualidade ímpar na Tradição Religiosa da Humanidade. Esta imensa Entidade que o cérebro humano não apreende na sua real dimensão, pertence ao domínio da intuição e do espírito, embora se manifeste pelo pensamento, pela emoção e pela sensação física. Daí que possamos eventualmente olhar essa Excelsa Figura em três dimensões (entre outras) diferentes, embora complementares: a dimensão Histórica, a Cósmica e a Mística.
O aspecto Histórico do Cristo está relacionado com aquele Menino Jesus que há cerca de dois mil anos nascia em Belém de Judá, na Palestina. Manifestação física e susceptível de ser verificada na história dos homens.
O aspecto Cósmico tem que ver com a manifestação do Cristo na Natureza, enquadrado astronomicamente (como atrás se viu) em todo o Universo. Cristo enquanto representante de um Logos-Solar (conceito que eventualmente pode ser traduzido por Deus, por Todo...) num Cosmos manifestado e sensível, tal como o vemos, o sentimos, o compreendemos.
O terceiro aspecto, quiçá o mais humano e simultaneamente o mais profundo, terá que ver com a faceta Mística do Cristo, relacionada com o tal Menino passível de ser-nascido no Coração ou na Gruta de todo o ser humano, nas profundidades de todo o indivíduo.
No entanto, para ser apreendida, intuída, na sua profundidade religiosa (de re-ligare), terá que ser vivida, por cada um de nós, interiormente e em liberdade. Primeiro porque é a vivência interior de um Símbolo que poderá vir a conferir a capacidade criadora e transformadora de nós próprios. Segundo, em liberdade, pois não transformemos essa Mensagem em dogma instituído, em prisão de nós próprios, ou em meia verdade, ou em autoridade repressiva... o Cristo é realmente um Ser livre - no grande sentido espiritual do termo - e de uma interioridade tal, conseguindo que a Sua chamazinha interior se transformasse num foco, num fogo radioso de luz ígnea, num autêntico Sol vivificador de Universos, de Indivíduos...

Mas, poderemos, novamente perguntar, que significado terá, hoje em dia, o Presépio e o Natal? Qual o modo, pelo qual, o homem vive essa realidade e essa época festivas? Encontrar-se-á atento à Mensagem subjacente, às perenes e inefáveis Realidades transmitidas!? E os pais-natais, personificando símbolos de puro consumismo, e anti-pedagógicas porque alienantes, quais os seus papéis na dramatização espiritual do Natal e do Presépio?
O Espírito do Natal, através das suas muitas e diversas manifestações tradicionais, da aldeia ou da cidade - o Presépio, o Madeiro, a Missa do Galo, a Consoada e a Missadura -, só fará humanamente sentido se estiver consolidado com valores autenticamente fraternais onde a partilha e a disponibilidade prevaleçam e o Humano se torne mais Solar, mais divino...
Atentemos, para terminar, nas palavras inspiradoras de Rabindranath Tagore quando afirma que «cada vez que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda confia nos Homens.».


Rui Arimateia

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O Menino entre as Flores


QUADRAS AO MENINO JESUS

Qualquer filho de homem pobre
Nasce num céu de cortinas.
Só tu, Menino Jesus,
Nasceste numas palhinhas.
a)

Ó meu Menino Jesus
Ó meu menino tão belo,
Logo Vós foste nascer
Na noite do caramelo!
b)

O Menino chora, chora,
Chora com muita rezão:
Fizeram-le a cama curta,
‘Tá c'os pézinhos no chão.
a)

José, embana o Menino,
Com a mão e não com o pé;
Esse Menino que embanas
É Jesus de Nazaré.
b)

Esta noite, à meia noite,
Ouvi cantar ao Divino;
Era a virgem Maria
Que embalava o seu Menino.
b)

O Menino chora, chora,
Chora pelos calçõezinhos.
Calai-vos, ó mê Menino
Faltam-le os botõezinhos.
a)

Cantai, anjos, ao Menino,
Que a senhora logo vem:
Foi lavá-los cueirinhos
À ribeira de Belém.
b)

Ó mê Menino Jasus,
Qu'é da tua camisinha?
Tá lá fora na ribeira
Em cima duma pedrinha.
a)

Pastor do gado branco,
Não arranques o rosmaninho,
Pois é onde a Virgem Pura
Estende os cueirinhos.
a)

- Ó meu amado Menino
Quem Vos deu o fato verde?
- Foi uma moça donzela
Duma doença que teve. b)

- Ó meu menino Jesus
Quem vos deu? Porque chorais?
- Deram-me as moças da fonte;
Não hei-de tornar lá mais.
b)

Ó mê Menino Jasus,
Quem vos pudera valer,
com sopinhas da panela
Sem a vossa Mãe saber!
b)

Ó mê Menino Jasus,
Boquinha de requêjão:
Quem vo-la comera toda
C'um bocadinho de pão.
a)

Ó mê Menino Jasus
Da Lapa do coração,
Dai-me da vossa merenda,
Que a minha mãe não tem pão. b)

Ó meu amado Menino,
Boquinha de marmelada,
Dai-me da vossa merenda,
Que a minha mãe não tem nada.
b)

Ó mê Menino Jasus,
Quem te deu essa boleta?
Foi a minha avó Sant'Ana
Qu'a tinha lá na gaveta.
a)

Olha o Deus Menino,
Nas palhinhas deitado,
A comer pão e toicinho
Todo besuntado!
c)

Notas:
a) Recolha de M. Inácio Pestana in Etnologia do Natal Alentejano, Edição da Assembleia Distrital, Portalegre, 1978.

b) Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português, vol. III, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1983.

c) Recolha de Hernâni Matos, Estremoz, 1960.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Mãos criadoras


A. Rodin "A Catedral"

LIBERDADE

Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome

Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome

Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco de cada dia
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome

Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome

Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome

Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome

Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome

Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome

No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome

Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome

Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade

Paul Éluard
(Trad. Carlos Drumont de Andrade
e Manuel Bandeira)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Mãe de Meninos


NUM MEIO-DIA DE FIM DE PRIMAVERA

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou
–«Se é que ele as criou, do que duvido»
–«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

Alberto Caeiro Fernando Pessoa

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Anunciação


8 DE DEZEMBRO

o menino é um recém-chegado de outros mundos.
anunciador de uma distância íntima. de onde nascer
é revelar

sinal de uma viagem a um viver separado.

memória. vaga memória. de brisas além da terra
em mares de aprofundar.

ele é o Anjo enviado de nossos reinos secretos. a este
mundo de fora onde depois da infância nos encontrámos
habitando. sem saber de outro lugar.

mas o menino é de longe. a Boa Nova soada de praias
além do mar.

rosto voltado aos cantos da distância.
olhos despertos ao acenar do longe.

de onde vieste e ainda lembras sem saber lembrar?

eco de mundos de silêncio o teu silêncio. menino
de silêncio olhando.
presença de um Real chamando.
além das vozes. das coisas. e dos gestos.


Beatriz S. Branco, 1969

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Um menino... como o Outro


A ORIGEM DO NATAL

"Nascimento do Deus Sol Invencível" era o tema da grande festividade romana que comemorava o solstício de inverno no dia 25 de Dezembro. Outras celebrações, como a “Saturnália”, em honra ao deus Saturno, tomavam conta da Europa neste mês, entre 17 e 22 de Dezembro, ainda no século 3 d.C. Em momentos simultâneos da história, cristãos comemoravam as diferentes etapas da vida de Cristo, buscando testemunhos do dia exacto de seu nascimento, enquanto pagãos celebravam a chegada da luz e dos dias mais longos ao fim do inverno. Foi somente no ano de 354 d.C que o Papa Libério, querendo cristianizar as festividades pagãs entre os vários povos europeus, instituiu oficialmente a celebração do Natal - a data de nascimento de Jesus.

A palavra Natal deriva do latim Natale - escrita com a inicial maiúscula quando se refere ao nascimento de Jesus, cujo aniversário teria sido escolhido, segundo boa parte dos estudiosos, para coincidir com a festividade romana do deus Sol. À festa de raízes pagãs foi conferida uma nova linguagem cristã, da mesma forma que alusões ao simbolismo de Cristo como o “sol da justiça” (Malaquias 4:2) e a “luz do mundo” (João 8:12) expressam o sincretismo religioso desta data. Hoje, junto com a Páscoa, o Natal é a celebração mais significativa para a Igreja Católica e cristã em geral, ao mesmo tempo em que é encarado universalmente por vários credos como sendo o dia da reunião da família, da solidariedade e da fraternidade entre as pessoas. No Brasil, as celebrações natalinas já ocorriam com a presença dos jesuítas, no século 16, e eram marcadas por uma festa religiosa tradicional, com a missa do galo, o jantar em família e a montagem de presépios como os momentos mais importantes.

A distribuição de presentes, o Pai Natal ou a árvore natalina seriam introduzidas só nos fins do século 18 no país, quando a festa começa a ser associada à infância. Principalmente após a 1ª guerra mundial (1914) fixam-se os costumes de distribuição de presentes a crianças carentes, mas é provável que famílias de elite e de classe média tenham iniciado as comemorações como as conhecemos hoje antes disso, pelo contacto com países industrializados e protestantes.

De celebração de uma simples missa, o Natal foi substituindo várias festividades em diversos países e passou a incluir um infinito número de tradições. Com o individualismo característico da Reforma Protestante tornou-se uma forma de movimentar a troca de mercadorias e o capitalismo. Também a figura do Pai Natal, calcada em São Nicolau (ver Tradições Natalinas) incorporou práticas do paganismo nórdico. Daí as imagens de neve associadas ao evento e à árvore de Natal .


Prof. Henrique José de Souza

domingo, 6 de dezembro de 2009

Presépio



David 2003

O SIMBOLISMO DO NATAL

Um dos mais belos e significativos acontecimentos do ano é, sem dúvida alguma, o Natal. O mundo cristão comemora nesta data o nascimento de Jesus, o Cristo. Aquele que os cristãos consideram o Salvador do Mundo e que os verdadeiros Teósofos e Ocultistas reconhecem, além do mais, como a manifestação cíclica do Espírito de Verdade, ou seja, como um Avatara Divino. Nessa data, plena de encantamento e de amor, as famílias cristãs se congregam em reuniões as mais íntimas e santas para cultuarem no recesso de seus lares o simbolismo do Natal.
Na noite de 24 para 25 de Dezembro, conhecida há perto de vinte séculos como a Noite de Natal, comemora-se em todo o mundo cristão o nascimento do Menino-Deus, com as manifestações do maior regozijo e da mais pura devoção. Pai-Natal faz nessa noite sua visita tradicional aos petizes, deixando-lhes uma lembrança no sapatinho posto à beira da cama. Nos lares, engalanados com enfeites multicores, há o Presépio e a Árvore de Natal. Desse modo, ano após ano, de uma forma inconsciente e agradável, é transmitida de geração a geração uma tradição extraordinariamente bela, cuja origem se perde na noite dos tempos, anterior mesmo ao advento do Cristianismo.
O simbolismo do Natal oculta transcendentes mistérios. À luz dos conhecimentos eubióticos, procuraremos levantar uma pontinha do denso véu que encobre, aos olhos profanos, tais excelsitudes.
Diz a tradição que o Anjo Gabriel apareceu à Virgem Maria e Lhe anunciou o nascimento do Filho de Deus.
As religiões de todos os povos possuem as suas Virgens-Mães, Marias ou Mayas que são: Adha-nari, a brâmane; Ísis, a egípcia; Astaroth, a hebraica; Astarté, a síria; Afrodite, a grega; Vesta, a romana; Herta, dos germanos; Ina, da Oceania; Isa, a japonesa; Ching-Mu, a chinesa, e muitas outras, inclusive a que o nosso tupi denomina de Jaci, "a mãe dos frutos", etc., pois como é sabido, Maria provém de Mare – o Mar – simbolicamente "a grande ilusão". Entre os iorubanos da África, Iemanjá, o orixá feminino, é a mãe d'água ou o próprio mar divinizado, equivalente no seu culto àquilo que em tais religiões simboliza a Virgem Mãe, Ísis, a Lua, desde que Osíris representa o Sol.
Os egípcios acreditavam que o pequeno Hórus era filho de Osireth e de Oset, cujas almas se transformaram respectivamente nas do Sol e da Lua, depois da morte desses personagens.
Os antigos israelitas, muito antes da nossa Era, chamavam a rainha do céu (ou "Regina Coeli") de Mênia, donde se derivou Neomênia (Nova Lua), que vem a ser a mesma Maria (em seus diversos nomes), mãe de Deus encarnado, nos vários cultos religiosos.
Quanto ao lugar do nascimento do Menino Jesus, diz a Igreja que ele se deu em Belém, cidade da Palestina, tendo sido a criança recém nascida colocada numa manjedoura. A palavra Belém é formada de duas letras hebraicas, Beth e Aleph, significando cabalisticamente a Casa de Deus ou Templo de Deus. Este é também o significado da palavra Apta, muitíssimo mais antiga, pois provém da submersa Atlântida, tendo sido o nome de sua oitava cidade, a Shamballah ou "Região dos Deuses", que mantinha a espiritualidade entre as demais cidades que se podem interpretar também como províncias ou países, governadas pelos "Sete Reis de Edom", Reis que eram na Terra as expressões humanas dos Sete Dhyans-Choans. Seria supérfluo assinalar a identidade de sentido entre Edom e Eden, o bíblico Paraíso terrestre.
APTA tem ainda o significado de "creche ", manjedoura , presépio e também "O lugar onde nasce o Sol". O simbolismo do presépio é uma cópia fiel do que existe nos ritos bramânicos, além de outros. Segundo Bournouf, assim se explica sua origem: A cruz Suástica (não confundir com a Sovástica do Nazismo que tem a rotação em sentido contrário, símbolo portanto da involução) é representada por dois pedaços de madeira que, para não se moverem, são cravados com quatro pregos e na junção dos braços da cruz passa uma corda que, pela fricção, produz fogo. O Pai do Fogo Sagrado é o divino carpinteiro Tuashtri, que prepara a cruz e o pramanta que deve gerar o filho divino. A Mãe do Fogo Sagrado é Maya, que equivale à Virgem Maria cristã.
Quando o pequeno Agni nasce (Agni é fogo em sânscrito; Agnus, em latim, é o Cordeiro. "Agnus Dei Qui tollis peccata mundi"...) - é colocado num berço (manjedoura) entre animais, e ao lado fica a Vaca mugidora. Ora, Vach (o mesmo que vaca), em sânscrito significa o Verbo Sagrado, Palavra Criadora ou Logos Criador.
Procuremos agora relacionar esses fatos com aquela conhecida passagem bíblica: "No princípio era o Verbo, e o Verbo se fez carne e habitou entre nós..."
O sacerdote brâmane toma o pequeno Agni em suas mãos, coloca-o sobre um altar untando-lhe o corpinho com manteiga clarificada, do que se originou a sagrada unção pelos santos óleos adoptada pela Igreja nos baptismos. É justamente quando o menino Agni recebe o nome de Ungido (Iluminado), Akta em sânscrito e Christos, em grego. Torna-se ele resplandecente, pois que tudo em seu redor se ilumina. As trevas desaparecem e os demónios fogem espavoridos ao clarão de sua luz cintilante.
Ele é o Mestre dos mestres e toma o nome de Jâtavâdas: Aquele em quem a Sabedoria é inata.
Como se vê, a tradição da Sagrada Família aqui no Ocidente representada por Jesus, Maria e José (o carpinteiro), se encontra nos Vedas, a escritura sagrada dos hindus, com uma antiguidade de 3100 anos anterior à nossa Era.
A mãe de Krishna, que surgiu na Índia cerca de 3500 anos A.C. se chamava Devaki, linda e virtuosa princesa, irmã do Rei de Madura, em torno da qual se criaram as mesmas lendas relativas a outras Virgens-Mães ou Marias. É curioso também assinalar a estranha semelhança de grafia e de som entre a expressão latina Jesus Christus e Ieseus Krishna...
Escreve Blavatsky em sua Doutrina Secreta: "Desde os rischis indianos até Virgílio, e de Zoroastro à última sibila, todos, sem excepção, desde o começo da Quinta raça-mãe, profetizaram, cantaram e prometeram a volta cíclica da Virgem e o nascimento de uma criança divina, que faria voltar a "Satya Yuga", a idade de ouro sobre a Terra. Logo que as práticas da Lei estiverem na ocasião precisa de terminar o ciclo da "Kali Yuga" (idade negra, em que ainda vivemos), um Aspecto do Ser Divino, que existe em virtude de sua própria natureza espiritual, na pessoa de Brahmâ, e que é o Começo e o Fim (Alfa e Ômega), descerá sobre a Terra. Ele nascerá na Família de Vishnujasha, como um Eminente Filho de Shamballah e Senhor dos oito poderes do Iogui. Por seu imenso poder, destruirá Ele todos aqueles cujo mental é voltado à iniquidade. Então a Justiça se fará na Terra, e os que viverem até o fim da "Kali Yuga", despertarão com o mental transparente e puro como o cristal".

Prof. Henrique José de Souza

Uma mensageira da Theosophia moderna


H.P.Blavatsky

A ORIGEM DA ÁRVORE DE NATAL

O costume da árvore de Natal (1) foi instituído muito recentemente. É de data tardia não só na Rússia, mas também na Alemanha, onde em primeiro lugar se estabeleceu e de onde se espalhou por toda a parte, do Novo como também do Velho Mundo. Em França a árvore de Natal só foi adoptada após a guerra Franco-Germana, posterior portanto a 1870. De acordo com as crónicas Prussianas, o costume de iluminar a árvore de Natal tal como nós vamos encontramos hoje na Alemanha, foi estabelecido acerca de cem anos. Penetrou na Rússia por volta de 1830, e muito cedo foi adoptado através do Império pelas classes mais abastadas.
É muito difícil traçar historicamente este costume. As suas origens pertencem inegavelmente à mais alta antiguidade. Os abetos desde sempre têm sido colocados num lugar de honra pelas mais antigas nações da Europa. Tais como as árvores de folha perene, e os símbolos da vegetação imorredoura, eles sempre foram consagrados às divindades naturais, tais como Pan, Isis e outras. De acordo com o antigo folclore, o pinheiro nasceu do corpo da ninfa Pitys (2) (o nome Grego daquela árvore), a amada dos deuses Pan e Boreas. Durante os festivais vernais em honra da grande deusa da Natureza, os abetos eram trazidos para os templos decorados com fragrantes violetas.
Os antigos povos Nórdicos da Europa tinham uma reverência semelhante pelo pinheiro e pelos abetos em geral, e faziam grande uso deles nos seus numerosos festivais. Assim, por exemplo, é bem conhecido que os sacerdotes pagãos da antiga Germânia, quando celebravam o primeiro estágio do regresso do sol perto do equinócio vernal, seguravam nas suas mãos ramos de pinheiros muito bem ornamentados. E isto aponta para a grande probabilidade do actual costume das árvores de Natal iluminadas serem o eco do costume pagão de considerar o pinheiro como um símbolo de um festival solar, o precursor do nascimento do Sol. Faz sentido que a sua adopção e instituição na Germânia Cristã lhe comunicasse uma nova, por assim dizer, forma Cristã.(3) Daí que recentes lendas – como sempre acontece – expliquem à sua própria maneira a origem do antigo costume. Conhecemos uma dessas lendas, imbuída de uma grande poesia na sua encantadora simplicidade, a qual pretende dar a origem deste agora universal e predominante costume de ornamentar árvores de Natal com velas de cera acesas.
Perto da caverna onde nasceu o Salvador do mundo cresciam três árvores – um pinheiro, uma oliveira e uma palmeira. Naquela véspera santa quando a estrela guia de Belém apareceu nos céus, aquela estrela que anunciou ao mundo longamente sofredor o nascimento Daquele, que trouxe à humanidade as alegres novas de uma esperança abençoada, toda a natureza rejubilou e diz-se que transportou para os pés do Deus-Menino os seus melhores e mais sagrados presentes.
Entre outras a oliveira que crescia à entrada da caverna de Belém deu à luz o seu fruto dourado; a palmeira ofereceu ao Bébé a sua verde e sombria abóbada, com protecção contra o calor e a tempestade; somente o pinheiro nada tinha para oferecer. A pobre árvore permanecia em consternação e pesar, tentando em vão pensar no que poderia apresentar como prenda ao Cristo-Criança. Os seus ramos estavam dolorosamente vergados para baixo, e a intensa agonia da sua dor forçou finalmente que brotasse da sua casca e ramos uma torrente de transparentes lágrimas quentes, cujas abundantes resinosas e pegajosas gotas caíssem espessas e firmes à sua volta. Uma estrela silenciosa, cintilando no dossel azul do céu, apercebeu-se destas lágrimas; e imediatamente, combinando com as suas companheiras – olhai!, um milagre aconteceu. Hostes de estrelas cadentes caíram por terra, tal como uma grande chuvada, sobre o pinheiro até que cintilaram e brilharam em cada agulha, de alto a baixo. Então, tremendo de alegre emoção o pinheiro levantou orgulhosamente os seus ramos caídos e apareceu pela primeira vez, ante os olhos de um mundo maravilhado, no seu mais deslumbrante esplendor. Desde esses tempos, diz-nos a lenda, que o homem adoptou o hábito de ornamentar o pinheiro na Véspera de Natal com inúmeras velas acesas.


H. P. BLAVATSKY

NOTAS:

(1) Este artigo foi originalmente impresso por H .P. Blavatsky em Lucifer, em Março, 1891. A partir de um artigo do Dr. Kaygorodoff em Novoye Vremya.
(2) Uma ninfa amada pelo deus Pan e transformada em abeto. [Ed. Lucifer.]
(3) Tal como no caso de muitos outros costumes, e mesmo dogmas, emprestados e preservados sem o mínimo reconhecimento. Se a fonte não for confessada, é porque à face da pesquisa e da descoberta tal já não poder ser possível.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009


Pintura de Leonor Serpa Branco - "A menina oleira" (pormenor)

O CONTO TRADICIONAL E A REALIDADE DO ETERNO PRESENTE

Em memória de Maria Beatriz
a Mãe, a Irmã, a Educadora, a Mulher, a Poeta- Mestre...
um grande bem hajas para onde quer que nos estejas a observar.

Pelo facto da nossa época estar tão conturbada social, ética e espiritualmente, em que os aspectos mais negativos e egoístas da Humanidade se manifestam declaradamente e estão constantemente a evidenciar-se com uma energia por vezes assustadora, foi esta a razão pela qual escolhi uma abordagem aos Contos Tradicionais nas suas vertentes mais luminosa e mais construtiva. (1)
Não escolhendo a abordagem do lado negro dos Contos, privilegiei essencialmente a sua importância tradicional na construção da Relação Humana, na Comunicação e nos aspectos unitários que ajudam a definir as diferentes idiossincrasias dos indivíduos inseridos nos seus grupos sociais.
É um universo complexo do conhecimento e das vivências do homem, porque rico e prenhe de significados. Na aproximação e na vivência do Sociocultural, é notória a importância da Relação Humana para os diferentes profissionais do Social, do Cultural e do Educacional desenvolverem uma intervenção na Realidade marcada pela qualidade, integrada e harmoniosa, tendente a fazer crescer os indivíduos, com mais comunicação, inibindo as tendências modernas do isolacionismo e do consumismo
E é importante esta preocupação de mais comunicação perante o conjunto de problemas e de males sociais que se nos deparam nas relações do quotidiano do nosso tempo, pois constatamos que o indivíduo, a família, os grupos sociais, se encontram cada vez mais espartilhados física, psicológica e espiritualmente. As consequências destes problemas e destes males sociais manifestam-se através de um progressivo isolamento do SER e na emergência de uma crise profunda, caracterizada pela ausência de valores construtivos e positivos, que contribuem para a formação e para a evolução do ser humano neste ou naquele Território, neste ou naquele País, enfim neste Planeta tão conturbado.
Possam os Contos Tradicionais vir novamente a preencher uma lacuna na Educação das nossas crianças e no aperfeiçoamento evolutivo do ser humano que tão bem os inventou e conservou ao longo de milénios.
É urgente a (re)invenção dos Contos Tradicionais e a sua difusão na Escola, nas Associações, nas relações humanas em geral do dia-a-dia, onde o crescer biológico e cultural deverá implicar sensibilidade, descoberta, atenção e mudança de mentalidades.

Nesta abordagem ao Conto Tradicional que passo a apresentar travei contacto com um sem número de paradigmas e metáforas, utilizados como palavras-chave desde há remotas eras até aos nossos dias por investigadores, místicos, antropólogos, filósofos e todos quanto têm reflectido sobre as realidades menos explícitas e pouco esclarecidas da Sabedoria Popular, manifestada através da Tradição Oral, portuguesa ou castelhana, francesa ou russa, hindu ou chinesa...
Algumas dessas palavras-chave que surgiram com mais acuidade e com maior profundidade de significado, foram as que passo a referir muito rapidamente:

Idade do Ouro e Ontologia das Origens; Verdade, Mentira e Imaginário; Mitos, Deuses e Heróis; Autoconhecimento, Totalidade e Caminho; Símbolo, Mistérios e Tradição; Sageza Imemorial e Demanda; Vida, Realidade e Evolução; Criança, Educação e Desenvolvimento; Identidade Cultural, Natureza e Cultura; Iniciação e Labirinto; Holismo, Sagrado e Religião; Ser, Estar e Relação Humana; Consciência e Logos; Comunicação e Linguagem; Sentido de Vida e Ecologia...

Lista extensiva de mais para ser esgotada num simples trabalho como este, mas que serve de sugestão, apontando pistas interessantes e extremamente sedutoras para serem seguidas, aprofundadas e posteriormente partilhadas.

Os Contos Tradicionais – ricos e complexos pela sua própria natureza, uma vez que as suas origens, remontarão eventualmente aos inícios da Cultura Humana – são contudo possuidores de uma presença e de uma actualidade que podemos considerar, quase como que mágica.

Queria aproveitar esta oportunidade para, e queiram desculpar-me a ousadia, fazer uma humilde homenagem a uma grande figura extremenha e investigador erudito e exaustivo da Tradição Primordial desta Terra que, através do contacto que tive com a sua extensa obra literária e filosófica, passou também a ser, um bocadinho e por adopção, a minha Terra... Estou a falar-vos de D. Mario Roso de Luna.
Nascido em Logrosán, Extremadura, no ano de 1872, morreu em Madrid a 8 de Novembro de 1931, tendo passado 65 anos da data da sua morte no passado dia 8 de Novembro do corrente ano.
Teósofo, Astrónomo e Escritor. Licenciado em Letras, Ciências Fisicoquímicas, Filosofia e Direito. Como Astrónomo descobriu um cometa a que foi dado o seu nome. A sua extensa bibliografia destaca-se tanto pela beleza da sua escrita como pela sua extraordinária erudição. D. Mario Roso de Luna, «el Mago de Logrosán», como ficou conhecido pelos seus conterrâneos, foi membro do Ateneu de Madrid, tendo passado toda a sua vida de investigador a buscar no coração humano a sinceridade, a lei cósmica reguladora do universo, e, por convicção, a manifestação do espírito imortal na vida do homem.

Pela sua beleza e profundidade vou apresentar-lhes de seguida o excerto de um texto, datado de 1921, todavia pleno de actualidade, da autoria de D. Mario Roso de Luna, cujo conteúdo se insere perfeitamente no nosso objecto particular de estudo:

«(...).
En edades primitivas o “de Oro” reinó soberana la Verdad hasta que la Mentira, logró disfrazarse de Verdad y engañar al mundo con su Maya o ilusión. La Verdad desnuda fué rechazada desde entonces por los hombres, enamorados ya de las apariencias de la Mentira, pero ella, a su vez, se disfrazó con el “Velo de Isis” tranformándose asi en mito o fábula, y en Parábola sus consiguientes enseñanzas.
Hubo un hombre sin embargo – habría y hay tantos en todas las Edades! – que buscó decidido la verdad en el mundo, en la corte, en el claustro, y doquiera le dijeron “hace ya muchísimo tiempo que estuvo aquí, pero desapareció y nadie ya ha vuelto a encontrarla”. Los dioses, envidiosos de la grandeza del hombre, la habían hurtado, y escondido nada menos que en el propio corazón humano, porque si lo hubiera hecho en otra parte, monte, abismo, nube o desierto, el incansable anhelo progresivo del hombre la habría encontrado al cabo, mientras que llevándola él, sin saberlo, dentro de su pecho, donde no mira por desgracia nunca, le sería imposible el volverla a hallar. Aleccionada, al fin, la Humanidad por el rebelde Prometeo logra encontrarla mediante esa máquina terrible de invención y hallazgo que se ha llamado desde entonces Filosofia, o “nósce te ipsum” socrático [o sea, en castellano: “Oh Hombre, conócete a ti mismo!”].
Con la Filosofia, en efecto, caemos en la cuenta de que la “Verdad Absoluta o Suprema”, no está en ninguna percepción concreta, ni en ninguna ciencia particular llámese como se llame, sino en el augusto y abstracto misterio del Símbolo porque en el Símbolo concurren, se aunan y hacen compatibles las revelaciones parciales de las diversas ciencias ya que estas últimas no son sino ramas de un gran tronco primitivo y oculto.
Porque nosotros, ciegos sempiternos, tenemos siempre interpuesto entre nuestra vista y el mundo superior de la Verdad un tupido velo que se ha llamado por los poetas el “Velo de Maya” y por los matemáticos modernos “el misterio geométrico del mundo de las ene dimensiones del espacio”, desde el día memorable que se cortaron las comunicaciones estre este pobre mundo de los mortales y los “supermundos” de héroes, semidioses y dioses antiguos.
(...).»
(2)

Desde tempos imemoriais que os Antigos Mistérios, detentores da Sageza das Idades, têm tido como fim último da sua Demanda, a cabal compreensão da Verdade. Contudo, esta parece ser inatingível, para o homem comum, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, vem transformando e espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que o ajudam a dominar a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios.
Sempre o homem comum olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer mistério vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, em algum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: «Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...», resta-nos a possibilidade de (re)encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... ou, como disse D. Mario Roso de Luna, oculto no nosso Coração...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluem através de nós próprios como os grãos de areia escorregam através da nossa mão aberta.
Aqueles Mistérios Antigos, através das roupagens dos Contos da Tradição Oral podem muito bem ser esses grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias complicadas e intrincadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade de vida...
Os Mistérios, os Contos, as Lendas... com toda a sua carga simbólica e com toda a sua autêntica Autoridade, conferidas pela Tradição-Sageza milenar, poderão constituir, de facto, a possibilidade de olharmos em nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais!...
Por demasiadas vezes, se calhar, não conseguimos ou não queremos, ouvir uma voz muito ténue – aquela voz maravilhosa que sempre acompanha o herói ou a heroína nos contos de encantar – que nos faz ouvir muito suavemente no fundo da nossa Consciência: «Fecha a mão!», e que, se estivermos atentos, ao fecharmos a mão, conseguiremos reter três grãozinhos de areia... e com que emoção e alegria os olhamos, tal criança perante um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, mais sem sentido – para nós adultos – pelas coisas mais simples que ela encontrou ao sabor do vento, nos seus sonhos, criadas pela sua imaginação criadora, durante as suas brincadeiras inocentes...

Falar-se de Contos Tradicionais nos tempos que correm, é falar-se de Identidade Cultural de um Povo e, paralelamente, do desenvolvimento mais ou menos harmonioso que esse Povo sofreu e sofre através dos diferentes estádios de crescimento e maturação dos indivíduos e das comunidades que o constituem.

Refiramos, por outro lado, a diferente função do Conto conforme se trate de uma criança ou de um adulto. Os fins de uma e de outro, no desenrolar do mesmo, são intrinsecamente diferentes.
Para a criança o conto é, de facto, uma autêntica iniciação para a vida que a rodeia e da qual ela própria faz parte integrante. Escutar contos, contar contos tem que ver com o próprio desenvolvimento físico, psicológico e espiritual de um ser que se encontra a desabrochar para a devir plenitude do adulto.
Através deles, a criança torna-se um ser-em-relação, primeiramente com ela própria, e quase simultaneamente com o outro e com o mundo, e não esqueçamos de que a Iniciação é, no fundo, a total assunção do outro...
Nos contos tradicionais manifestam-se, através da alegoria e do símbolo, os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua História e Evolução: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta. Tal como o peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:

– Oh, Mãe! O que é o Mar?
E a Mãe, com aquela ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:
– Olha, meu filho, tu estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...

União com o Todo ou com o Amado, que os místicos espanhóis como São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila tão bem souberam cantar nos seus poemas e nos seus escritos de religião, e por vezes tão incompreendidos pela superestrutura católica da sua época.
Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio, saírem vitoriosos para a Luz do dia...

Narração rica de mistério e de magia é a que apresento de seguida, uma lenda popular da região de Évora (Alentejo – Portugal) cujas especificidade narratória e linguagem simbólica me pareceram valer a pena partilhá-la convosco. Foi recolhida da tradição oral local no ano de 1983, no decorrer de uma sessão de Curso de Alfabetização de Adultos, na Freguesia (rural) de S. Sebastião da Giesteira, que dista cerca de 18 quilómetros da sede do Concelho. Passo a contar:

Na Herdade dos Padres há uma nora muito antiga, quiçá do tempo dos Mouros... Com largos muros e águas negras e profundas, com lodo que a uns escassos metros da superfície esconde eficazmente as suas profundezas, os seus habitantes e os seus tesouros...
Conta-se que, realmente existirá no fundo desta nora um tesouro oculto, um grande tesouro, que fará muito rico quem tiver a sorte de o encontrar, se tiver a coragem para o procurar... Isto porque o tesouro é guardado por uma enorme serpente pronta a resistir a quaisquer profanações.
Assim, aquele que à meia-noite conseguir ir ao fundo da nora e encarar com o tesouro, aparecer-lhe-á a serpente, vigilante desde há muitas eras, que subirá pela espinha do aventureiro atrevido e lhe irá dar um beijo na testa. E eis que acontece o momento supremo da lenda e decisivo para o protagonista arrojado: se ele se arrepiar, ficará encantado no fundo da nora de onde não mais sairá, mas se vencer a serpente e não se arrepiar, ganhará o tesouro e usufruirá das suas imensas riquezas.

Importa referir neste passo que é precisamente na Tradição Aldeã e Camponesa que esta forma de comunicação e de educação milenares se conservam ainda, apesar de tudo... Uma aldeia possui tradicionalmente os seus ritmos/ritos e os seus tempos/templos próprios, enquadrados naturalmente por Ciclos Anuais, correspondentes às festas religiosas locais e ao calendário dos trabalhos agrícolas, onde o sagrado e o profano se (con)fundem harmoniosamente.
Em última análise, os contos tradicionais e as lendas, de modo diverso, incorporam em si uma explicação do inexplicável. São contados pelo contador e são intuídas as mensagens pelos ouvintes, estabelecendo-se entretanto, uma relação mágica, total, holística, religiosa...

Façamos aqui um parêntesis para focar muito rapidamente a importante problemática do Holismo, conceito relativamente recente nos meios científicos e culturais, contendo em si subjacentes as ideias de integração, de totalidade, numa perspectiva abarcante de toda a realidade humana que faz parte integrante das nossas relações quotidianas, enquadradas pela Natureza e pela Cultura, agora olhadas enquanto duas faces da mesma moeda. Neologismo que se poderá identificar com uma perspectiva globalizante da Vida numa visão macroscópica, sistémica e ecológica. Conceito que vai obrigatoriamente relacionar-se com a Visão Unitária da Vida e do Homem, em que nada se encontra desligado e ou separado de nada, interpenetrando-se os conceitos, os átomos e as acções do e no quotidiano...pois tal como nos deixou registado Hermes Trimagistos na sua Tábua de Esmeralda:

«É verdadeiro, completo, claro e certo. O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é igual ao que está em baixo, para realizar os milagres de uma única coisa.»

Olhar os contos tradicionais a partir desta perspectiva holística, que tem tanto de abarcante como de sacralizante, permitir-nos-á a compreensão mais profunda das suas mensagens, permitindo-nos ainda, através dessas narrações, encontrar pontos comuns que unem as diferentes culturas, os diferentes povos e nações humanas, numa única Cultura Universal. A Linguagem e o substractum dos Contos Tradicionais são realmente Universais...
Aprofundando um pouco mais a perspectiva holística, vemos que as leis naturais começam a pouco e pouco a ser vistas como partes de um universo holístico no qual a ordem subjacente se desenvolve numa ordem muito explícita, que as leis naturais exemplificam em detalhe. Entidades e objectos separados não poderão ser significativamente estudados quando isolados do resto do universo. Existe uma relação mística (total) entre o observador e o observado, mesmo em disciplinas tais como, por exemplo, a física atómica. Existem muitos sistemas abertos inter-relacionados no mundo, incluindo diferentes unidades tais como o átomo, a célula biológica e o homem, que funcionam e evoluem, regulados pelo mesmo princípio auto-organizador no universo.
O homem espiritual e o homem holístico (o místico-religioso e o cientista) preocupam-se respectivamente com a busca do auto-conhecimento e com a busca das causas últimas da manifestação da Vida. Em última análise, ambas as demandas, com eventuais metodologias distintas, preocupam-se com a qualidade das coisas, com a Vida enquanto sinónimo de Totalidade, e, qualquer que seja o Caminho, qualquer que seja o início da pesquisa, a preocupação essencial e fundamental de ambos é caracterizada muito marcadamente por uma Ontologia das Origens, onde o Imaginário Real está presente, é, sempiternamente na base orgânica do entendimento do homem e da natureza em relação permanente com o Todo, isto é, com o Estado de Ser. Lembro uma curta citação de Menéndez Pelayo publicada nos seus “Estudios de Critica Literaria”, que diz:

«Muchas puertas llevan a la encantada ciudad de la Fantasía: no nos empeñemos, pues, en cerrar ninguna de ellas, ni en limitar el número de los placeres del espíritu.»

Tradicionalmente, contar um conto, o acto em si, reveste-se de uma importância relacional fora do comum, porquanto os sentidos da narração transmutam-se, através das vivências interiores, imaginárias, intuitivas dos ouvintes, em Sentidos para a Vida.
A disponibilidade na relação, o encontrar um sentido para a vida, são actos fundamentais para o homem moderno e citadino (re)descobrir.
Os contos tradicionais com a sua sabedoria milenar, poderão ajudar-nos a abrir as portas para uma relação humana qualitativamente diferente.

Em última análise o homem é um ser intrinsecamente religioso. E encare-se este conceito na perspectiva de que o homem possui em si a capacidade de compreender e de efectuar a re-ligação das partes com o Todo. Re-ligar, eis a chave essencial para a compreensão do organismo homem e do organismo social – ambos vivos e susceptíveis de se reproduzirem e de evoluírem no tempo e no espaço das suas relações e interrelações na e com a Natureza.
O homem vive para penetrar e conhecer os segredos telúricos, sagrados e universais encerrados no Templo da Natureza, transformando-O e transformando-se. O animal atinge tão só o limiar do Portal dos Sages. O primeiro tem acesso ao Espírito Universal, o segundo fica prisioneiro da forma, e, subjugado, não consegue a verticalidade nem a liberação da mão (gesto) e da face (palavra), que o deveriam tornar num deus.
Nos contos tradicionais o homem comum, além da capacidade, tem a possibilidade de conhecer e de, através de transmutações de carácter mágico e onírico, penetrar esses segredos telúricos e aquela Tradição-Sageza que o transformam num Ser Real...
De tudo isto se evidencia que a importância da relação humana reside principalmente no Ser (Ser Consciente) e nunca no estar. Implicando este último concepções de espaço e de tempo limitadores da Relação Total. As partes são formadas pelas dimensões espaço-tempo enquanto que o Todo pertence à dimensão do Ser (Consciência, Logos), aquela dimensão que reside além das palavras e dos efeitos. O Ser adivinha-se através da Voz do Silêncio...
Analisemos então a palavra e a linguagem e a sua importância na Relação e na Comunicação humanas, sendo todos estes conceitos e realidades, de facto fundamentais para a vivência e para a compreensão dos Contos, ontem como hoje.

«(...) Se nós escutássemos o silêncio uns dos outros, em vez de meramente escutar palavras faladas, haveria maior compreensão e espírito de boa-vontade nas relações humanas. Justamente como numa melodia o que importa é o intervalo entre duas notas, também na vida é o intervalo entre as palavras e acções que é da maior significação. É neste intervalo que se pode perceber a qualidade de um ser. Ouvir a melodia é, portanto, compreender a qualidade dos homens e das coisas. (...).» (3)

O homem conseguiu um ganho cultural e espiritual na aquisição da linguagem. No entanto há que compreendê-la enquanto uma extensão (um meio) física e psicológica do ser humano e não enquanto um fim (uma causa). Há o perigo real de se confundir a extensão com a própria origem, com a própria fonte dessa extensão. Há o perigo, sempre presente, de se confundir o sujeito com o objecto, o ser com a manifestação desse ser.
Como disse o escritor, poeta, pintor e dramaturgo português Almada Negreiros:

«Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.»

Por outro lado, o investigador moderno da Sabedoria Sagrada e dos Mistérios do Antigo Egipto, Schwaller de Lubickz numa das suas obras refere que «não é preciso imaginar nada: é preciso calar... e escutar... É preciso olhar no silêncio, sem querer ver e aceitar o Nada, porque ao que o homem denomina por “nada” isso é a Realidade».
Realmente uma das provas mais difíceis da Iniciação Tradicional é a do Silêncio. Em o que o neófito tem de se enfrentar a si próprio, em que tem que calar a mente tagarela e justificadora, as emoções constrangedoras e apaixonadas, as sensações ilusórias e deformadoras da Realidade, para que o Príncipe possa (re)descobrir a Princesa Adormecida no seu leito do Palácio Encantado e despertá-la para a Vida através de um beijo de Amor. Para que isto aconteça, a disponibilidade do Ser deverá ser total!
Diz-nos Mircea Eliade (4) que:

«No mundo Ocidental, a iniciação no sentido tradicional e estrito do termo há muito que desapareceu. Mas os símbolos e os cenários iniciatórios sobrevivem a nível inconsciente, especialmente nos sonhos e universos imaginários.(...).
(...) Num mundo dessacralizado como o nosso, o “sagrado” encontra-se presente e activo principalmente nos universos imaginários. Mas as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total, não menos importantes que as suas experiências diurnas. Isto quer dizer que a nostalgia das provas e cenários iniciatórios, nostalgia decifrada em tantas obras literárias e plásticas, revela o anseio do homem moderno por uma renovação total e definitiva, uma renovatio capaz de mudar radicalmente a sua existência. (...).»

São as tradições, tais como as dos contos e lendas aldeãs, que, tanto pela sua riqueza antropológica e mítica, como pela sua complexidade vivencial, conferem toda uma idiossincrasia a um Povo e o ajudam a definir e a re-criar continuamente uma Identidade Cultural própria. Pela desmontagem dos ritos e dos mitos subjacentes a estes costumes adivinhamos o cruzamento de culturas, de crenças e de tradições de diferentes origens. Contudo, o olhar do investigador não deverá nunca ser limitado pelo dogma e/ou pela ideologia eventualmente dominantes, que cristalizam e condicionam pela sua acção, valores universais tais como a Verdade e a Liberdade entre os homens. É necessário cada vez mais olhar sem julgar, é necessário possuir a humildade que nos permitirá aprender com o próprio Povo, pois sem ele, não seríamos ninguém...

Como conclusão não gostaria deixar de frisar a importância de vivermos o dia-a-dia plenamente conscientes das mensagens de beleza, de riqueza e de harmonia que até nós chegam, nomeadamente por via da Sabedoria Popular Tradicional. Gostaria sinceramente que este pequeno contributo trouxesse alguma luz para melhor conseguirmos a compreensão de nós próprios, para melhor conseguirmos viver em harmonia e paz a Relação Humana, raiz do Desenvolvimento e da Cultura e clarificadora do Espírito. E, tal como nos transmitiu Rainer Maria Rilke, neste seu poema, mensagem de beleza e de esperança:


A Vida, não tentes compreendê-la,
e então ela será como uma festa.
E que cada dia te aconteça
como a uma criança que, ao caminhar,
de cada sopro do vento
vai recebendo presentes de flores.

Apanhá-las e guardá-las,
nem nisso pensa a criança.
Tira-as devagar do cabelo
onde se sentiam tão bem,
e estende as mãos aos jovens anos
para receber novas flores.

Rui Arimateia

NOTAS:
(1) Comunicação apresentada in I SEMINÁRIO INTERNACIONAL: CUENTOS Y LEYENDAS DE ESPAÑA Y PORTUGAL, Faculdad de Educación de Badajoz, 21 de Novembro de 1996
(2) D. MARIO ROSO DE LUNA, in “Prólogo” de Por el reino encantado de Maya, Madrid, 1921 (pp.8-9).
(3) MEHTA, Rohit – Procura o Caminho, São Paulo, Brasil, 1962 (pp.70-71).
(4) ELIADE, Mircea – Origens, Lisboa, 1989 (p.152).

domingo, 22 de novembro de 2009

sol e lua branco e negro vida e morte ...


O CONTO DE ENCANTAR OU O ESPELHO NO FUNDO DO POÇO

A minha Idade de Ouro
é a minha Infância...

Uma abordagem aos Contos Tradicionais, aos Contos de Encantar reveste-se sempre de dificuldades acrescidas uma vez que estamos a tratar de aspectos ligados às profundezas psicológicas e espirituais de um povo.
É uma matéria que por si só mereceria a organização de vários Encontros, exactamente pelo facto de ser extremamente rica e complexa.

Gostaria de introduzir nesta reflexão alargada a constatação da existência de uma CULTURA NATURAL em cada indivíduo, que permite o entendimento e a escuta de um em relação ao(s) outro(s), independentemente dos conhecimentos intelectuais e eruditos, dos conhecimentos técnicos e teóricos. Esta Cultura Natural terá mais que ver com as vivências acumuladas por cada um... com as capacidades que cada indivíduo possui, em si próprio, para responder positivamente aos desafios da Vida... com as necessidades de todos para a construção, juntamente com os seus semelhantes, de um mundo melhor, mais verdadeiro, mais belo e mais sensível...
Será esta Cultura Natural a que se encontra na origem e na preservação ao longo de séculos dos Contos Tradicionais da Humanidade?
Será esta a Cultura Natural que se encontra subjacente na essência dos Contos Tradicionais e dos Mitos que constituem aquela corrente de união subterrânea que liga indissoluvelmente as gerações humanas entre si? Independentemente de raças, de credos, de cores?...

Por outro lado consideremos a existência de uma Identidade Cultural Tradicional – Alentejana, Portuguesa, no nosso caso – que se encontra em risco de desaparecer dando lugar a qualquer coisa um tanto vaga, amorfa e uniforme, e para mais importada do exterior e ideologicamente caracterizada como europeísta e europeizante... não no sentido de se considerar uma Europa constituída e enriquecida por diferentes regiões, mas uma Europa considerada exclusivamente na sua vertente economicista e mercantil passando por cima das diferentes marcas e identidades culturais dos povos que nela se encontram e acentuando as clivagens socioeconómicas Norte/Sul.

Perante o conjunto de problemas e de males sociais que se nos deparam nas relações sociais do quotidiano, o indivíduo, a família, os grupos sociais encontram-se cada vez mais espartilhados física, psicológica e espiritualmente.
Problemas sociais tais como a falta de emprego; a competição desenfreada para a obtenção de um lugar que assegure um rendimento familiar mínimo; o rápido crescimento do extracto etário da 3ª Idade e a emergência urbana de uma 4.ª Idade. Males sociais como a droga e a tóxico-dependência, a violência, o racismo e a xenofobia que emergem por toda a parte.
Tudo isto tem como resultado imediato a fragilização do indivíduo e da família. Tudo isto vai condicionar a sociedade, complicá-la e desestruturá-la, apontando-lhe um fim que quase podemos profetizar escatologicamente como estando próximo.
Daí todos nós sabermos que a mudança terá de ter um carácter inadiável e inevitável para que valores como o Bom, o Belo e o Verdadeiro voltem à ribalta dos objectivos autênticos de sociedade e de socialização, e se constituam enquanto pragmáticas verdadeiramente humanas para reencontrarmos um Sentido para a Vida.
Os contos de encantar, principalmente ao nível da prevenção, poderão ter um papel extraordinariamente importante para as crianças e para os adultos de hoje.
Aspectos da Intervenção Sociocultural que têm que ver com a Prevenção, com a Educação e com a Mudança terão obrigatoriamente de ser reflectidos, e terão que, em conjunto, pugnar pela construção do Homem Novo.
A função educativa dos contos de encantar poderá exactamente estar na importância do fornecer ao imaginário da criança e do fazer relembrar ao adulto a Grande Verdade Antiga, o Grande Mito Universal de que a Vida é Una e o Homem faz parte d’Ela, possuindo em si uma acção verdadeiramente criadora e transformadora. A Grande Imagem que o conto fornece é afinal constituída pelas grandes imagens paradigmáticas procuradas pelo homem ao longo dos tempos, tais como, e volto a referir, o Bom, o Belo e o Verdadeiro, tais como a Sabedoria, a Força e a Beleza...
A possibilidade de criar imagens no seu íntimo, e de igualmente lhes conferir uma forma exterior, é uma qualidade essencial e singular do ser humano. A imagem possui para todos algo de fascinante e de arrebatador. Ainda hoje a vivência de imagens desempenha um papel deveras importante, conforme o demonstrou a rapidíssima ascensão sociocultural da televisão na nossa sociedade moderna.
Poder-se-á dizer que o homem moderno tem fome de imagens. Contudo existem questões em certa medida problemáticas que nos são colocadas e sobre as quais importa reflectir de modo claro e consciente:
– que qualidade de imagens consome a criança diariamente?
– que qualidade de imagens o adulto fornece à criança, durante o seu desenvolvimento, principalmente durante os primeiros anos da sua formação como ser humano?
Serão imagens que irão fortalecer a personalidade da criança com falsas necessidades (tais como o consumismo, a abundância, a guerra, o ódio, a violência gratuita, etc.) e falsos valores ideológicos? Ou, pelo contrário, vão fornecer-lhes imagens que contribuam construtivamente para a educação da vida social em comunidade e em relação como o que a rodeia? Fornecer-lhe imagens com o intuito de fazer com que os instintos agressivos/anti-sociais e negativos da criança se transformem em instintos virados para a socialização e coesão social do grupo ao qual pertence?
A criança necessita de imagens que lhe forneçam valores essencialmente humanos e criativos; ao identificar-se com eles, na relação com os seus semelhantes vai querer usá-los, imitá-los, experimentá-los... em liberdade.
Os homens de hoje somos seguidores acérrimos de um estar e de um ser a que convencionámos denominar por modernidade, e que caracterizámos segundo diversos itens conforme o nosso estado de espírito, o nosso grupo socioeconómico de pertença ou de referência, segundo a nossa ideologia, crença ou o nosso particular sistema de valores. No que diz respeito à nossa sociedade em particular, modernidade é, para o senso comum, sinónimo de consumo e este, por sua vez, contrapõe-se a estados do Ser e do Sentir, ignorando situações onde o Escutar e o Criar podem de facto permitir um Estar-em-plenitude com tudo o que nos rodeia. A modernidade e o consumismo hodiernos privilegiam o Ter e, em última análise, inviabilizam a concretização da célebre máxima socrática:

Homem, conhece-te a ti próprio!...
E, conhecendo-te, conhecerás o Universo e os próprios deuses!...


Os homens de hoje julgamos estar mais próximos da Verdade e da Realidade do que os nossos antepassados, para quem o contar contos de encantar tinha uma finalidade de re-creação... de recordação de vivências espirituais arcaicas, mas autênticas, porque transformantes e transformadoras, de mentalidades e de personalidades, principalmente ao nível da infância, onde tudo era bebido insaciavelmente até à última gota.
Os homens de hoje, teremos nós capacidade para uma compreensão total da Verdade? Daquela Verdade cantada poeticamente e assumida de forma onírica e velada nos Contos de Encantar que até nós chegaram através da Tradição Oral?
Para o homem de hoje, contudo, parece-nos inatingível uma profunda compreensão dessa mesma Verdade; e nós, para ultrapassar a frustração e a incapacidade que nos (a)parecem inatas, vimos transformando e espartilhando o que julgamos entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que nos ajudam a dominar, ou antes, a domesticar e a tentar modelar, a nosso gosto, aquilo que julgamos ser a Realidade e a Vida... segundo os nossos próprios juízos e critérios. Sempre olhamos para o exterior de nós próprios quando queremos compreender qualquer mistério vital, sempre temos julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, nalgum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza:

«Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...»,

resta-nos a possibilidade de encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... é o nosso génio ...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluírem através de nós como os grãos de areia escorrem através da nossa mão aberta, a realidade que julgamos rodear-nos assume cada vez mais uma condição virtual. A matéria é olhada de modo completamente diferente pelo cientista deste fim de século, em relação ao seu colega de há vinte, trinta, quarenta anos... Toda a imensa evolução tecnológica e científica, apesar de nos abrirem novas perspectivas para a compreensão da matéria, da vida manifestada, vem-se também deparando com complexidades cada vez mais ténues, mais subtis, de cada vez em dimensões de estar e de ser mais inacessíveis, onde o acaso e a Consciência irão ter progressivamente alguma coisa a dizer... Nem na própria morte nós poderemos descansar o nosso espírito indagador, elegendo-a como a única certeza nesta vida...
Poderemos então perguntar: o que nos resta, enquanto seres vivos dotados de inteligência, de capacidade de perguntar, de procurar e de encontrar?... Talvez tão só o tomar consciência dessa capacidade e sorrirmos perante aquela POSSIBILIDADE de viver o que dia-a-dia, minuto-a-minuto, acontece perante nós próprios, em nós próprios, e nos faz ouvir muito suavemente, muito subtilmente, no fundo da nossa ténue Consciência: «Fecha a mão!», e, ao fecharmos a mão, depararmos com três grãozinhos de areia que conseguimos suster... E com que alegria os olhamos, tal como uma criança olha um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, pelas coisas mais simples que encontrou ao sabor do vento durante as suas brincadeiras inocentes...
Não queria deixar de vos apresentar um pequeno texto de Almada Negreiros, denominado A Verdade:

«Eu tinha chegado tarde à escola. O Mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! Quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...»
(1)

E conseguiremos reviver o estádio de infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada de adultos, procurando a verdade absoluta e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do dia-a-dia?
Tal como diz o Poeta:

não se gastou nem se perdeu a infância
a nossa infância

ficou junto escondida em qualquer canto da vida
sem mudança igual a ser

como a vida que mora por dentro do viver
(2)


Para o homem de hoje, os Contos de Encantar podem muito bem ser aqueles grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias complicadas e intricadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade. O Conto de Encantar poderá ser eventualmente aquela possibilidade de olharmos para nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais...
Os homens de hoje, encontramo-nos a redescobrir os Contos de Encantar. Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação, observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela ­– ela lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas que se formam na sua pequena cabeça.
Importante é esta pequena reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen (3):

«A infância não é coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! Voltar a captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»

Goethe, um dos grandes poetas da humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:

«O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo. Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos. Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a princesa não casará com esse miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração». (4)

Segundo Bruno Bettelheim:


«Os contos de fadas, para além de uma deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»

E é ainda Bettelheim quem afirma:

«A história de fadas é essa dádiva de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a desembrulhá-lo com felicidade!».

Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice Vieira, refere:

«Pode haver coisa mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»

Percorramos todos os velhos contos que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
O homem de hoje , tal como o homem de ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus, Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida que a Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma, há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar histórias maravilhosas aos seus netos.
E a criança aqui é um elemento-chave fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses mitos.
E porquê, neste virar de século – e de milénio –, os homens de hoje , pelo menos os que possuem responsabilidades ao nível da Educação, da Intervenção Sociocultural, da Psicologia, da Medicina e de muitas outras áreas afins e complementares, fazemos ressurgir os contos de encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da humanidade?
É muito possível que uma das respostas nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
A relação que tradicionalmente se estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre – não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em sensibilidade.
O acto de contar um conto nos tempos remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar de uma flor... acontecia e era um momento vivido como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
A importância de um Sentido para a Vida era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
A dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira....
Debrucemo-nos muito rapidamente sobre a sociedade moderna e poderemos ver como ela gera elementos desestruturantes, no sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão – os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso SER mais profundo...
A nossa moderna sociedade urbana caracteriza-se por exigir aos seus membros cada vez maior rapidez, em todas as relações humanas. Não há tempo para parar um momento, tudo possui rodas, o som foi ultrapassado, a vida quotidiana torna-se uma corrida contra-relógio. O êxito pertence ao mais rápido, ao mais competitivo (que raramente é o mais capaz...); “circular é viver, parar é morrer” – dizem os slogans publicitários nas bocas do senso comum. O lento, o velho (o idoso), encontra-se condenado, “arrumado”, no asilo, simplesmente à espera da libertação da sua “incapacidade” e da sua “lentidão”: a morte. O stress é o senhor da cidade. É urgente a mudança...
Nesta sociedade tudo se consome, tudo se compra e se vende. Eis-nos perante a era dos “instantâneos”, do “pronto a servir”. A rapidez alia-se à eficiência para formar ou para satisfazer necessidades, muitas das quais artificiais, falsas. A alienação impera. É urgente a mudança...
Da electricidade às auto-estradas da informática, dos audiovisuais à cibernética e à estimulação virtual, a evolução da electrónica nos últimos anos tem sido verdadeiramente alucinante. Terá o homem de hoje, teremos nós capacidade para dominarmos, para compreendermos estas mudanças radicais nos conceitos de tempo, de espaço, de matéria?...
Qual o espaço psicológico reservado para o Sagrado não instituído?
E o que terá isto tudo a ver com os contos de encantar e com o acto de os contar?
Vejamos então:
– As avós cada vez moram mais longe (e com certeza que não ficarão ligadas aos netos através da Internet!...).
– Os pais cada dia têm menos tempo disponível para uma relação profunda, sem pressas, com os filhos.
– A TV, o Vídeo, o Computador encontram-se sempre ligados nos sítios mais visíveis das casas.
– As mentalidades urbanas e modernistas consideraram que as crianças deveriam ser poupadas a estes “contos absurdos”, que nada têm a ver com os problemas do país, com os exercícios militares no mar da China, com o rebentamento de minas na Bósnia, ou então com os massacres realizados pela UPA(5), nos anos 60 em Angola e fotograficamente tão bem documentados em revista de grande tiragem nacional... É urgente a mudança...
– Os adultos começaram a considerar os contos como histórias de horrores, transmissores de sentimentos e pensamentos violentos, que traumatizavam as crianças - a geração futura – e vá de “suavizarem” os ditos contos: o João Ratão deixou de cair no caldeirão... A Bela Adormecida não se picou no fuso da fada má... À Branca de Neve, em vez de a ter mandado matar na floresta por caçadores, a madrasta mandou-a para um colégio interno...
Do silêncio criador do conto de encantar quereremos dar às nossas crianças o silêncio apodrecido desta modernidade alienante? É urgente a mudança...
O homem moderno, teremos de encontrar uma perspectiva diferente sobre os contos de encantar tradicionais, ou com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente, mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir viver aquém e além da fronteira do espelho, símbolo do símbolo.
Recordemos Victor Hugo quando afirma que:

«É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».

Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde está oculta a Pedra Filosofal dos antigos Alquimistas.

Rui Arimateia

NOTAS:

(1) NEGREIROS, José de Almada - poesia , Lisboa, 1971 (p.179).
(2) BRANCO, Beatriz Serpa -A Face e as Sombras, Évora,1969 (p.29).
(3) Cit. por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45).
(4) Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa, 1984 (p.195).
(5) União dos Povos de Angola, movimento político liderado por Holden Roberto.