A minha Idade de Ouro
é a minha Infância...
Uma abordagem aos Contos Tradicionais, aos Contos de Encantar reveste-se sempre de dificuldades acrescidas uma vez que estamos a tratar de aspectos ligados às profundezas psicológicas e espirituais de um povo.
É uma matéria que por si só mereceria a organização de vários Encontros, exactamente pelo facto de ser extremamente rica e complexa.
Gostaria de introduzir nesta reflexão alargada a constatação da existência de uma CULTURA NATURAL em cada indivíduo, que permite o entendimento e a escuta de um em relação ao(s) outro(s), independentemente dos conhecimentos intelectuais e eruditos, dos conhecimentos técnicos e teóricos. Esta Cultura Natural terá mais que ver com as vivências acumuladas por cada um... com as capacidades que cada indivíduo possui, em si próprio, para responder positivamente aos desafios da Vida... com as necessidades de todos para a construção, juntamente com os seus semelhantes, de um mundo melhor, mais verdadeiro, mais belo e mais sensível...
Será esta Cultura Natural a que se encontra na origem e na preservação ao longo de séculos dos Contos Tradicionais da Humanidade?
Será esta a Cultura Natural que se encontra subjacente na essência dos Contos Tradicionais e dos Mitos que constituem aquela corrente de união subterrânea que liga indissoluvelmente as gerações humanas entre si? Independentemente de raças, de credos, de cores?...
Por outro lado consideremos a existência de uma Identidade Cultural Tradicional – Alentejana, Portuguesa, no nosso caso – que se encontra em risco de desaparecer dando lugar a qualquer coisa um tanto vaga, amorfa e uniforme, e para mais importada do exterior e ideologicamente caracterizada como europeísta e europeizante... não no sentido de se considerar uma Europa constituída e enriquecida por diferentes regiões, mas uma Europa considerada exclusivamente na sua vertente economicista e mercantil passando por cima das diferentes marcas e identidades culturais dos povos que nela se encontram e acentuando as clivagens socioeconómicas Norte/Sul.
Perante o conjunto de problemas e de males sociais que se nos deparam nas relações sociais do quotidiano, o indivíduo, a família, os grupos sociais encontram-se cada vez mais espartilhados física, psicológica e espiritualmente.
Problemas sociais tais como a falta de emprego; a competição desenfreada para a obtenção de um lugar que assegure um rendimento familiar mínimo; o rápido crescimento do extracto etário da 3ª Idade e a emergência urbana de uma 4.ª Idade. Males sociais como a droga e a tóxico-dependência, a violência, o racismo e a xenofobia que emergem por toda a parte.
Tudo isto tem como resultado imediato a fragilização do indivíduo e da família. Tudo isto vai condicionar a sociedade, complicá-la e desestruturá-la, apontando-lhe um fim que quase podemos profetizar escatologicamente como estando próximo.
Daí todos nós sabermos que a mudança terá de ter um carácter inadiável e inevitável para que valores como o Bom, o Belo e o Verdadeiro voltem à ribalta dos objectivos autênticos de sociedade e de socialização, e se constituam enquanto pragmáticas verdadeiramente humanas para reencontrarmos um Sentido para a Vida.
Os contos de encantar, principalmente ao nível da prevenção, poderão ter um papel extraordinariamente importante para as crianças e para os adultos de hoje.
Aspectos da Intervenção Sociocultural que têm que ver com a Prevenção, com a Educação e com a Mudança terão obrigatoriamente de ser reflectidos, e terão que, em conjunto, pugnar pela construção do Homem Novo.
A função educativa dos contos de encantar poderá exactamente estar na importância do fornecer ao imaginário da criança e do fazer relembrar ao adulto a Grande Verdade Antiga, o Grande Mito Universal de que a Vida é Una e o Homem faz parte d’Ela, possuindo em si uma acção verdadeiramente criadora e transformadora. A Grande Imagem que o conto fornece é afinal constituída pelas grandes imagens paradigmáticas procuradas pelo homem ao longo dos tempos, tais como, e volto a referir, o Bom, o Belo e o Verdadeiro, tais como a Sabedoria, a Força e a Beleza...
A possibilidade de criar imagens no seu íntimo, e de igualmente lhes conferir uma forma exterior, é uma qualidade essencial e singular do ser humano. A imagem possui para todos algo de fascinante e de arrebatador. Ainda hoje a vivência de imagens desempenha um papel deveras importante, conforme o demonstrou a rapidíssima ascensão sociocultural da televisão na nossa sociedade moderna.
Poder-se-á dizer que o homem moderno tem fome de imagens. Contudo existem questões em certa medida problemáticas que nos são colocadas e sobre as quais importa reflectir de modo claro e consciente:
– que qualidade de imagens consome a criança diariamente?
– que qualidade de imagens o adulto fornece à criança, durante o seu desenvolvimento, principalmente durante os primeiros anos da sua formação como ser humano?
Serão imagens que irão fortalecer a personalidade da criança com falsas necessidades (tais como o consumismo, a abundância, a guerra, o ódio, a violência gratuita, etc.) e falsos valores ideológicos? Ou, pelo contrário, vão fornecer-lhes imagens que contribuam construtivamente para a educação da vida social em comunidade e em relação como o que a rodeia? Fornecer-lhe imagens com o intuito de fazer com que os instintos agressivos/anti-sociais e negativos da criança se transformem em instintos virados para a socialização e coesão social do grupo ao qual pertence?
A criança necessita de imagens que lhe forneçam valores essencialmente humanos e criativos; ao identificar-se com eles, na relação com os seus semelhantes vai querer usá-los, imitá-los, experimentá-los... em liberdade.
Os homens de hoje somos seguidores acérrimos de um estar e de um ser a que convencionámos denominar por modernidade, e que caracterizámos segundo diversos itens conforme o nosso estado de espírito, o nosso grupo socioeconómico de pertença ou de referência, segundo a nossa ideologia, crença ou o nosso particular sistema de valores. No que diz respeito à nossa sociedade em particular, modernidade é, para o senso comum, sinónimo de consumo e este, por sua vez, contrapõe-se a estados do Ser e do Sentir, ignorando situações onde o Escutar e o Criar podem de facto permitir um Estar-em-plenitude com tudo o que nos rodeia. A modernidade e o consumismo hodiernos privilegiam o Ter e, em última análise, inviabilizam a concretização da célebre máxima socrática:
Homem, conhece-te a ti próprio!...
E, conhecendo-te, conhecerás o Universo e os próprios deuses!...
Os homens de hoje julgamos estar mais próximos da Verdade e da Realidade do que os nossos antepassados, para quem o contar contos de encantar tinha uma finalidade de re-creação... de recordação de vivências espirituais arcaicas, mas autênticas, porque transformantes e transformadoras, de mentalidades e de personalidades, principalmente ao nível da infância, onde tudo era bebido insaciavelmente até à última gota.
Os homens de hoje, teremos nós capacidade para uma compreensão total da Verdade? Daquela Verdade cantada poeticamente e assumida de forma onírica e velada nos Contos de Encantar que até nós chegaram através da Tradição Oral?
Para o homem de hoje, contudo, parece-nos inatingível uma profunda compreensão dessa mesma Verdade; e nós, para ultrapassar a frustração e a incapacidade que nos (a)parecem inatas, vimos transformando e espartilhando o que julgamos entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que nos ajudam a dominar, ou antes, a domesticar e a tentar modelar, a nosso gosto, aquilo que julgamos ser a Realidade e a Vida... segundo os nossos próprios juízos e critérios. Sempre olhamos para o exterior de nós próprios quando queremos compreender qualquer mistério vital, sempre temos julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, nalgum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza:
«Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...»,
resta-nos a possibilidade de encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... é o nosso génio ...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluírem através de nós como os grãos de areia escorrem através da nossa mão aberta, a realidade que julgamos rodear-nos assume cada vez mais uma condição virtual. A matéria é olhada de modo completamente diferente pelo cientista deste fim de século, em relação ao seu colega de há vinte, trinta, quarenta anos... Toda a imensa evolução tecnológica e científica, apesar de nos abrirem novas perspectivas para a compreensão da matéria, da vida manifestada, vem-se também deparando com complexidades cada vez mais ténues, mais subtis, de cada vez em dimensões de estar e de ser mais inacessíveis, onde o acaso e a Consciência irão ter progressivamente alguma coisa a dizer... Nem na própria morte nós poderemos descansar o nosso espírito indagador, elegendo-a como a única certeza nesta vida...
Poderemos então perguntar: o que nos resta, enquanto seres vivos dotados de inteligência, de capacidade de perguntar, de procurar e de encontrar?... Talvez tão só o tomar consciência dessa capacidade e sorrirmos perante aquela POSSIBILIDADE de viver o que dia-a-dia, minuto-a-minuto, acontece perante nós próprios, em nós próprios, e nos faz ouvir muito suavemente, muito subtilmente, no fundo da nossa ténue Consciência: «Fecha a mão!», e, ao fecharmos a mão, depararmos com três grãozinhos de areia que conseguimos suster... E com que alegria os olhamos, tal como uma criança olha um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, pelas coisas mais simples que encontrou ao sabor do vento durante as suas brincadeiras inocentes...
Não queria deixar de vos apresentar um pequeno texto de Almada Negreiros, denominado A Verdade:
«Eu tinha chegado tarde à escola. O Mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! Quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...» (1)
E conseguiremos reviver o estádio de infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada de adultos, procurando a verdade absoluta e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do dia-a-dia?
Tal como diz o Poeta:
não se gastou nem se perdeu a infância
a nossa infância
ficou junto escondida em qualquer canto da vida
sem mudança igual a ser
como a vida que mora por dentro do viver (2)
Para o homem de hoje, os Contos de Encantar podem muito bem ser aqueles grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias complicadas e intricadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade. O Conto de Encantar poderá ser eventualmente aquela possibilidade de olharmos para nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais...
Os homens de hoje, encontramo-nos a redescobrir os Contos de Encantar. Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação, observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela – ela lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas que se formam na sua pequena cabeça.
Importante é esta pequena reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen (3):
«A infância não é coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! Voltar a captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»
Goethe, um dos grandes poetas da humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:
«O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo. Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos. Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a princesa não casará com esse miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração». (4)
Segundo Bruno Bettelheim:
«Os contos de fadas, para além de uma deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»
E é ainda Bettelheim quem afirma:
«A história de fadas é essa dádiva de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a desembrulhá-lo com felicidade!».
Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice Vieira, refere:
«Pode haver coisa mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»
Percorramos todos os velhos contos que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
O homem de hoje , tal como o homem de ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus, Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida que a Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma, há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar histórias maravilhosas aos seus netos.
E a criança aqui é um elemento-chave fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses mitos.
E porquê, neste virar de século – e de milénio –, os homens de hoje , pelo menos os que possuem responsabilidades ao nível da Educação, da Intervenção Sociocultural, da Psicologia, da Medicina e de muitas outras áreas afins e complementares, fazemos ressurgir os contos de encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da humanidade?
É muito possível que uma das respostas nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
A relação que tradicionalmente se estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre – não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em sensibilidade.
O acto de contar um conto nos tempos remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar de uma flor... acontecia e era um momento vivido como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
A importância de um Sentido para a Vida era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
A dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira....
Debrucemo-nos muito rapidamente sobre a sociedade moderna e poderemos ver como ela gera elementos desestruturantes, no sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão – os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso SER mais profundo...
A nossa moderna sociedade urbana caracteriza-se por exigir aos seus membros cada vez maior rapidez, em todas as relações humanas. Não há tempo para parar um momento, tudo possui rodas, o som foi ultrapassado, a vida quotidiana torna-se uma corrida contra-relógio. O êxito pertence ao mais rápido, ao mais competitivo (que raramente é o mais capaz...); “circular é viver, parar é morrer” – dizem os slogans publicitários nas bocas do senso comum. O lento, o velho (o idoso), encontra-se condenado, “arrumado”, no asilo, simplesmente à espera da libertação da sua “incapacidade” e da sua “lentidão”: a morte. O stress é o senhor da cidade. É urgente a mudança...
Nesta sociedade tudo se consome, tudo se compra e se vende. Eis-nos perante a era dos “instantâneos”, do “pronto a servir”. A rapidez alia-se à eficiência para formar ou para satisfazer necessidades, muitas das quais artificiais, falsas. A alienação impera. É urgente a mudança...
Da electricidade às auto-estradas da informática, dos audiovisuais à cibernética e à estimulação virtual, a evolução da electrónica nos últimos anos tem sido verdadeiramente alucinante. Terá o homem de hoje, teremos nós capacidade para dominarmos, para compreendermos estas mudanças radicais nos conceitos de tempo, de espaço, de matéria?...
Qual o espaço psicológico reservado para o Sagrado não instituído?
E o que terá isto tudo a ver com os contos de encantar e com o acto de os contar?
Vejamos então:
– As avós cada vez moram mais longe (e com certeza que não ficarão ligadas aos netos através da Internet!...).
– Os pais cada dia têm menos tempo disponível para uma relação profunda, sem pressas, com os filhos.
– A TV, o Vídeo, o Computador encontram-se sempre ligados nos sítios mais visíveis das casas.
– As mentalidades urbanas e modernistas consideraram que as crianças deveriam ser poupadas a estes “contos absurdos”, que nada têm a ver com os problemas do país, com os exercícios militares no mar da China, com o rebentamento de minas na Bósnia, ou então com os massacres realizados pela UPA(5), nos anos 60 em Angola e fotograficamente tão bem documentados em revista de grande tiragem nacional... É urgente a mudança...
– Os adultos começaram a considerar os contos como histórias de horrores, transmissores de sentimentos e pensamentos violentos, que traumatizavam as crianças - a geração futura – e vá de “suavizarem” os ditos contos: o João Ratão deixou de cair no caldeirão... A Bela Adormecida não se picou no fuso da fada má... À Branca de Neve, em vez de a ter mandado matar na floresta por caçadores, a madrasta mandou-a para um colégio interno...
Do silêncio criador do conto de encantar quereremos dar às nossas crianças o silêncio apodrecido desta modernidade alienante? É urgente a mudança...
O homem moderno, teremos de encontrar uma perspectiva diferente sobre os contos de encantar tradicionais, ou com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente, mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir viver aquém e além da fronteira do espelho, símbolo do símbolo.
Recordemos Victor Hugo quando afirma que:
«É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».
Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde está oculta a Pedra Filosofal dos antigos Alquimistas.
Rui Arimateia
NOTAS:
(1) NEGREIROS, José de Almada - poesia , Lisboa, 1971 (p.179).
(2) BRANCO, Beatriz Serpa -A Face e as Sombras, Évora,1969 (p.29).
(3) Cit. por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45).
(4) Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa, 1984 (p.195).
(5) União dos Povos de Angola, movimento político liderado por Holden Roberto.
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