Em memória de Maria Beatriz
a Mãe, a Irmã, a Educadora, a Mulher, a Poeta- Mestre...
um grande bem hajas para onde quer que nos estejas a observar.
Pelo facto da nossa época estar tão conturbada social, ética e espiritualmente, em que os aspectos mais negativos e egoístas da Humanidade se manifestam declaradamente e estão constantemente a evidenciar-se com uma energia por vezes assustadora, foi esta a razão pela qual escolhi uma abordagem aos Contos Tradicionais nas suas vertentes mais luminosa e mais construtiva. (1)
Não escolhendo a abordagem do lado negro dos Contos, privilegiei essencialmente a sua importância tradicional na construção da Relação Humana, na Comunicação e nos aspectos unitários que ajudam a definir as diferentes idiossincrasias dos indivíduos inseridos nos seus grupos sociais.
É um universo complexo do conhecimento e das vivências do homem, porque rico e prenhe de significados. Na aproximação e na vivência do Sociocultural, é notória a importância da Relação Humana para os diferentes profissionais do Social, do Cultural e do Educacional desenvolverem uma intervenção na Realidade marcada pela qualidade, integrada e harmoniosa, tendente a fazer crescer os indivíduos, com mais comunicação, inibindo as tendências modernas do isolacionismo e do consumismo
E é importante esta preocupação de mais comunicação perante o conjunto de problemas e de males sociais que se nos deparam nas relações do quotidiano do nosso tempo, pois constatamos que o indivíduo, a família, os grupos sociais, se encontram cada vez mais espartilhados física, psicológica e espiritualmente. As consequências destes problemas e destes males sociais manifestam-se através de um progressivo isolamento do SER e na emergência de uma crise profunda, caracterizada pela ausência de valores construtivos e positivos, que contribuem para a formação e para a evolução do ser humano neste ou naquele Território, neste ou naquele País, enfim neste Planeta tão conturbado.
Possam os Contos Tradicionais vir novamente a preencher uma lacuna na Educação das nossas crianças e no aperfeiçoamento evolutivo do ser humano que tão bem os inventou e conservou ao longo de milénios.
É urgente a (re)invenção dos Contos Tradicionais e a sua difusão na Escola, nas Associações, nas relações humanas em geral do dia-a-dia, onde o crescer biológico e cultural deverá implicar sensibilidade, descoberta, atenção e mudança de mentalidades.
Nesta abordagem ao Conto Tradicional que passo a apresentar travei contacto com um sem número de paradigmas e metáforas, utilizados como palavras-chave desde há remotas eras até aos nossos dias por investigadores, místicos, antropólogos, filósofos e todos quanto têm reflectido sobre as realidades menos explícitas e pouco esclarecidas da Sabedoria Popular, manifestada através da Tradição Oral, portuguesa ou castelhana, francesa ou russa, hindu ou chinesa...
Algumas dessas palavras-chave que surgiram com mais acuidade e com maior profundidade de significado, foram as que passo a referir muito rapidamente:
Idade do Ouro e Ontologia das Origens; Verdade, Mentira e Imaginário; Mitos, Deuses e Heróis; Autoconhecimento, Totalidade e Caminho; Símbolo, Mistérios e Tradição; Sageza Imemorial e Demanda; Vida, Realidade e Evolução; Criança, Educação e Desenvolvimento; Identidade Cultural, Natureza e Cultura; Iniciação e Labirinto; Holismo, Sagrado e Religião; Ser, Estar e Relação Humana; Consciência e Logos; Comunicação e Linguagem; Sentido de Vida e Ecologia...
Lista extensiva de mais para ser esgotada num simples trabalho como este, mas que serve de sugestão, apontando pistas interessantes e extremamente sedutoras para serem seguidas, aprofundadas e posteriormente partilhadas.
Os Contos Tradicionais – ricos e complexos pela sua própria natureza, uma vez que as suas origens, remontarão eventualmente aos inícios da Cultura Humana – são contudo possuidores de uma presença e de uma actualidade que podemos considerar, quase como que mágica.
Queria aproveitar esta oportunidade para, e queiram desculpar-me a ousadia, fazer uma humilde homenagem a uma grande figura extremenha e investigador erudito e exaustivo da Tradição Primordial desta Terra que, através do contacto que tive com a sua extensa obra literária e filosófica, passou também a ser, um bocadinho e por adopção, a minha Terra... Estou a falar-vos de D. Mario Roso de Luna.
Nascido em Logrosán, Extremadura, no ano de 1872, morreu em Madrid a 8 de Novembro de 1931, tendo passado 65 anos da data da sua morte no passado dia 8 de Novembro do corrente ano.
Teósofo, Astrónomo e Escritor. Licenciado em Letras, Ciências Fisicoquímicas, Filosofia e Direito. Como Astrónomo descobriu um cometa a que foi dado o seu nome. A sua extensa bibliografia destaca-se tanto pela beleza da sua escrita como pela sua extraordinária erudição. D. Mario Roso de Luna, «el Mago de Logrosán», como ficou conhecido pelos seus conterrâneos, foi membro do Ateneu de Madrid, tendo passado toda a sua vida de investigador a buscar no coração humano a sinceridade, a lei cósmica reguladora do universo, e, por convicção, a manifestação do espírito imortal na vida do homem.
Pela sua beleza e profundidade vou apresentar-lhes de seguida o excerto de um texto, datado de 1921, todavia pleno de actualidade, da autoria de D. Mario Roso de Luna, cujo conteúdo se insere perfeitamente no nosso objecto particular de estudo:
«(...).
En edades primitivas o “de Oro” reinó soberana la Verdad hasta que la Mentira, logró disfrazarse de Verdad y engañar al mundo con su Maya o ilusión. La Verdad desnuda fué rechazada desde entonces por los hombres, enamorados ya de las apariencias de la Mentira, pero ella, a su vez, se disfrazó con el “Velo de Isis” tranformándose asi en mito o fábula, y en Parábola sus consiguientes enseñanzas.
Hubo un hombre sin embargo – habría y hay tantos en todas las Edades! – que buscó decidido la verdad en el mundo, en la corte, en el claustro, y doquiera le dijeron “hace ya muchísimo tiempo que estuvo aquí, pero desapareció y nadie ya ha vuelto a encontrarla”. Los dioses, envidiosos de la grandeza del hombre, la habían hurtado, y escondido nada menos que en el propio corazón humano, porque si lo hubiera hecho en otra parte, monte, abismo, nube o desierto, el incansable anhelo progresivo del hombre la habría encontrado al cabo, mientras que llevándola él, sin saberlo, dentro de su pecho, donde no mira por desgracia nunca, le sería imposible el volverla a hallar. Aleccionada, al fin, la Humanidad por el rebelde Prometeo logra encontrarla mediante esa máquina terrible de invención y hallazgo que se ha llamado desde entonces Filosofia, o “nósce te ipsum” socrático [o sea, en castellano: “Oh Hombre, conócete a ti mismo!”].
Con la Filosofia, en efecto, caemos en la cuenta de que la “Verdad Absoluta o Suprema”, no está en ninguna percepción concreta, ni en ninguna ciencia particular llámese como se llame, sino en el augusto y abstracto misterio del Símbolo porque en el Símbolo concurren, se aunan y hacen compatibles las revelaciones parciales de las diversas ciencias ya que estas últimas no son sino ramas de un gran tronco primitivo y oculto.
Porque nosotros, ciegos sempiternos, tenemos siempre interpuesto entre nuestra vista y el mundo superior de la Verdad un tupido velo que se ha llamado por los poetas el “Velo de Maya” y por los matemáticos modernos “el misterio geométrico del mundo de las ene dimensiones del espacio”, desde el día memorable que se cortaron las comunicaciones estre este pobre mundo de los mortales y los “supermundos” de héroes, semidioses y dioses antiguos.
(...).» (2)
Desde tempos imemoriais que os Antigos Mistérios, detentores da Sageza das Idades, têm tido como fim último da sua Demanda, a cabal compreensão da Verdade. Contudo, esta parece ser inatingível, para o homem comum, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, vem transformando e espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que o ajudam a dominar a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios.
Sempre o homem comum olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer mistério vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, em algum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: «Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...», resta-nos a possibilidade de (re)encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... ou, como disse D. Mario Roso de Luna, oculto no nosso Coração...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluem através de nós próprios como os grãos de areia escorregam através da nossa mão aberta.
Aqueles Mistérios Antigos, através das roupagens dos Contos da Tradição Oral podem muito bem ser esses grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias complicadas e intrincadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade de vida...
Os Mistérios, os Contos, as Lendas... com toda a sua carga simbólica e com toda a sua autêntica Autoridade, conferidas pela Tradição-Sageza milenar, poderão constituir, de facto, a possibilidade de olharmos em nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais!...
Por demasiadas vezes, se calhar, não conseguimos ou não queremos, ouvir uma voz muito ténue – aquela voz maravilhosa que sempre acompanha o herói ou a heroína nos contos de encantar – que nos faz ouvir muito suavemente no fundo da nossa Consciência: «Fecha a mão!», e que, se estivermos atentos, ao fecharmos a mão, conseguiremos reter três grãozinhos de areia... e com que emoção e alegria os olhamos, tal criança perante um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, mais sem sentido – para nós adultos – pelas coisas mais simples que ela encontrou ao sabor do vento, nos seus sonhos, criadas pela sua imaginação criadora, durante as suas brincadeiras inocentes...
Falar-se de Contos Tradicionais nos tempos que correm, é falar-se de Identidade Cultural de um Povo e, paralelamente, do desenvolvimento mais ou menos harmonioso que esse Povo sofreu e sofre através dos diferentes estádios de crescimento e maturação dos indivíduos e das comunidades que o constituem.
Refiramos, por outro lado, a diferente função do Conto conforme se trate de uma criança ou de um adulto. Os fins de uma e de outro, no desenrolar do mesmo, são intrinsecamente diferentes.
Para a criança o conto é, de facto, uma autêntica iniciação para a vida que a rodeia e da qual ela própria faz parte integrante. Escutar contos, contar contos tem que ver com o próprio desenvolvimento físico, psicológico e espiritual de um ser que se encontra a desabrochar para a devir plenitude do adulto.
Através deles, a criança torna-se um ser-em-relação, primeiramente com ela própria, e quase simultaneamente com o outro e com o mundo, e não esqueçamos de que a Iniciação é, no fundo, a total assunção do outro...
Nos contos tradicionais manifestam-se, através da alegoria e do símbolo, os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua História e Evolução: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta. Tal como o peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:
– Oh, Mãe! O que é o Mar?
E a Mãe, com aquela ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:
– Olha, meu filho, tu estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...
União com o Todo ou com o Amado, que os místicos espanhóis como São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila tão bem souberam cantar nos seus poemas e nos seus escritos de religião, e por vezes tão incompreendidos pela superestrutura católica da sua época.
Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio, saírem vitoriosos para a Luz do dia...
Narração rica de mistério e de magia é a que apresento de seguida, uma lenda popular da região de Évora (Alentejo – Portugal) cujas especificidade narratória e linguagem simbólica me pareceram valer a pena partilhá-la convosco. Foi recolhida da tradição oral local no ano de 1983, no decorrer de uma sessão de Curso de Alfabetização de Adultos, na Freguesia (rural) de S. Sebastião da Giesteira, que dista cerca de 18 quilómetros da sede do Concelho. Passo a contar:
Na Herdade dos Padres há uma nora muito antiga, quiçá do tempo dos Mouros... Com largos muros e águas negras e profundas, com lodo que a uns escassos metros da superfície esconde eficazmente as suas profundezas, os seus habitantes e os seus tesouros...
Conta-se que, realmente existirá no fundo desta nora um tesouro oculto, um grande tesouro, que fará muito rico quem tiver a sorte de o encontrar, se tiver a coragem para o procurar... Isto porque o tesouro é guardado por uma enorme serpente pronta a resistir a quaisquer profanações.
Assim, aquele que à meia-noite conseguir ir ao fundo da nora e encarar com o tesouro, aparecer-lhe-á a serpente, vigilante desde há muitas eras, que subirá pela espinha do aventureiro atrevido e lhe irá dar um beijo na testa. E eis que acontece o momento supremo da lenda e decisivo para o protagonista arrojado: se ele se arrepiar, ficará encantado no fundo da nora de onde não mais sairá, mas se vencer a serpente e não se arrepiar, ganhará o tesouro e usufruirá das suas imensas riquezas.
Importa referir neste passo que é precisamente na Tradição Aldeã e Camponesa que esta forma de comunicação e de educação milenares se conservam ainda, apesar de tudo... Uma aldeia possui tradicionalmente os seus ritmos/ritos e os seus tempos/templos próprios, enquadrados naturalmente por Ciclos Anuais, correspondentes às festas religiosas locais e ao calendário dos trabalhos agrícolas, onde o sagrado e o profano se (con)fundem harmoniosamente.
Em última análise, os contos tradicionais e as lendas, de modo diverso, incorporam em si uma explicação do inexplicável. São contados pelo contador e são intuídas as mensagens pelos ouvintes, estabelecendo-se entretanto, uma relação mágica, total, holística, religiosa...
Façamos aqui um parêntesis para focar muito rapidamente a importante problemática do Holismo, conceito relativamente recente nos meios científicos e culturais, contendo em si subjacentes as ideias de integração, de totalidade, numa perspectiva abarcante de toda a realidade humana que faz parte integrante das nossas relações quotidianas, enquadradas pela Natureza e pela Cultura, agora olhadas enquanto duas faces da mesma moeda. Neologismo que se poderá identificar com uma perspectiva globalizante da Vida numa visão macroscópica, sistémica e ecológica. Conceito que vai obrigatoriamente relacionar-se com a Visão Unitária da Vida e do Homem, em que nada se encontra desligado e ou separado de nada, interpenetrando-se os conceitos, os átomos e as acções do e no quotidiano...pois tal como nos deixou registado Hermes Trimagistos na sua Tábua de Esmeralda:
«É verdadeiro, completo, claro e certo. O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é igual ao que está em baixo, para realizar os milagres de uma única coisa.»
Olhar os contos tradicionais a partir desta perspectiva holística, que tem tanto de abarcante como de sacralizante, permitir-nos-á a compreensão mais profunda das suas mensagens, permitindo-nos ainda, através dessas narrações, encontrar pontos comuns que unem as diferentes culturas, os diferentes povos e nações humanas, numa única Cultura Universal. A Linguagem e o substractum dos Contos Tradicionais são realmente Universais...
Aprofundando um pouco mais a perspectiva holística, vemos que as leis naturais começam a pouco e pouco a ser vistas como partes de um universo holístico no qual a ordem subjacente se desenvolve numa ordem muito explícita, que as leis naturais exemplificam em detalhe. Entidades e objectos separados não poderão ser significativamente estudados quando isolados do resto do universo. Existe uma relação mística (total) entre o observador e o observado, mesmo em disciplinas tais como, por exemplo, a física atómica. Existem muitos sistemas abertos inter-relacionados no mundo, incluindo diferentes unidades tais como o átomo, a célula biológica e o homem, que funcionam e evoluem, regulados pelo mesmo princípio auto-organizador no universo.
O homem espiritual e o homem holístico (o místico-religioso e o cientista) preocupam-se respectivamente com a busca do auto-conhecimento e com a busca das causas últimas da manifestação da Vida. Em última análise, ambas as demandas, com eventuais metodologias distintas, preocupam-se com a qualidade das coisas, com a Vida enquanto sinónimo de Totalidade, e, qualquer que seja o Caminho, qualquer que seja o início da pesquisa, a preocupação essencial e fundamental de ambos é caracterizada muito marcadamente por uma Ontologia das Origens, onde o Imaginário Real está presente, é, sempiternamente na base orgânica do entendimento do homem e da natureza em relação permanente com o Todo, isto é, com o Estado de Ser. Lembro uma curta citação de Menéndez Pelayo publicada nos seus “Estudios de Critica Literaria”, que diz:
«Muchas puertas llevan a la encantada ciudad de la Fantasía: no nos empeñemos, pues, en cerrar ninguna de ellas, ni en limitar el número de los placeres del espíritu.»
Tradicionalmente, contar um conto, o acto em si, reveste-se de uma importância relacional fora do comum, porquanto os sentidos da narração transmutam-se, através das vivências interiores, imaginárias, intuitivas dos ouvintes, em Sentidos para a Vida.
A disponibilidade na relação, o encontrar um sentido para a vida, são actos fundamentais para o homem moderno e citadino (re)descobrir.
Os contos tradicionais com a sua sabedoria milenar, poderão ajudar-nos a abrir as portas para uma relação humana qualitativamente diferente.
Em última análise o homem é um ser intrinsecamente religioso. E encare-se este conceito na perspectiva de que o homem possui em si a capacidade de compreender e de efectuar a re-ligação das partes com o Todo. Re-ligar, eis a chave essencial para a compreensão do organismo homem e do organismo social – ambos vivos e susceptíveis de se reproduzirem e de evoluírem no tempo e no espaço das suas relações e interrelações na e com a Natureza.
O homem vive para penetrar e conhecer os segredos telúricos, sagrados e universais encerrados no Templo da Natureza, transformando-O e transformando-se. O animal atinge tão só o limiar do Portal dos Sages. O primeiro tem acesso ao Espírito Universal, o segundo fica prisioneiro da forma, e, subjugado, não consegue a verticalidade nem a liberação da mão (gesto) e da face (palavra), que o deveriam tornar num deus.
Nos contos tradicionais o homem comum, além da capacidade, tem a possibilidade de conhecer e de, através de transmutações de carácter mágico e onírico, penetrar esses segredos telúricos e aquela Tradição-Sageza que o transformam num Ser Real...
De tudo isto se evidencia que a importância da relação humana reside principalmente no Ser (Ser Consciente) e nunca no estar. Implicando este último concepções de espaço e de tempo limitadores da Relação Total. As partes são formadas pelas dimensões espaço-tempo enquanto que o Todo pertence à dimensão do Ser (Consciência, Logos), aquela dimensão que reside além das palavras e dos efeitos. O Ser adivinha-se através da Voz do Silêncio...
Analisemos então a palavra e a linguagem e a sua importância na Relação e na Comunicação humanas, sendo todos estes conceitos e realidades, de facto fundamentais para a vivência e para a compreensão dos Contos, ontem como hoje.
«(...) Se nós escutássemos o silêncio uns dos outros, em vez de meramente escutar palavras faladas, haveria maior compreensão e espírito de boa-vontade nas relações humanas. Justamente como numa melodia o que importa é o intervalo entre duas notas, também na vida é o intervalo entre as palavras e acções que é da maior significação. É neste intervalo que se pode perceber a qualidade de um ser. Ouvir a melodia é, portanto, compreender a qualidade dos homens e das coisas. (...).» (3)
O homem conseguiu um ganho cultural e espiritual na aquisição da linguagem. No entanto há que compreendê-la enquanto uma extensão (um meio) física e psicológica do ser humano e não enquanto um fim (uma causa). Há o perigo real de se confundir a extensão com a própria origem, com a própria fonte dessa extensão. Há o perigo, sempre presente, de se confundir o sujeito com o objecto, o ser com a manifestação desse ser.
Como disse o escritor, poeta, pintor e dramaturgo português Almada Negreiros:
«Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.»
Por outro lado, o investigador moderno da Sabedoria Sagrada e dos Mistérios do Antigo Egipto, Schwaller de Lubickz numa das suas obras refere que «não é preciso imaginar nada: é preciso calar... e escutar... É preciso olhar no silêncio, sem querer ver e aceitar o Nada, porque ao que o homem denomina por “nada” isso é a Realidade».
Realmente uma das provas mais difíceis da Iniciação Tradicional é a do Silêncio. Em o que o neófito tem de se enfrentar a si próprio, em que tem que calar a mente tagarela e justificadora, as emoções constrangedoras e apaixonadas, as sensações ilusórias e deformadoras da Realidade, para que o Príncipe possa (re)descobrir a Princesa Adormecida no seu leito do Palácio Encantado e despertá-la para a Vida através de um beijo de Amor. Para que isto aconteça, a disponibilidade do Ser deverá ser total!
Diz-nos Mircea Eliade (4) que:
«No mundo Ocidental, a iniciação no sentido tradicional e estrito do termo há muito que desapareceu. Mas os símbolos e os cenários iniciatórios sobrevivem a nível inconsciente, especialmente nos sonhos e universos imaginários.(...).
(...) Num mundo dessacralizado como o nosso, o “sagrado” encontra-se presente e activo principalmente nos universos imaginários. Mas as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total, não menos importantes que as suas experiências diurnas. Isto quer dizer que a nostalgia das provas e cenários iniciatórios, nostalgia decifrada em tantas obras literárias e plásticas, revela o anseio do homem moderno por uma renovação total e definitiva, uma renovatio capaz de mudar radicalmente a sua existência. (...).»
São as tradições, tais como as dos contos e lendas aldeãs, que, tanto pela sua riqueza antropológica e mítica, como pela sua complexidade vivencial, conferem toda uma idiossincrasia a um Povo e o ajudam a definir e a re-criar continuamente uma Identidade Cultural própria. Pela desmontagem dos ritos e dos mitos subjacentes a estes costumes adivinhamos o cruzamento de culturas, de crenças e de tradições de diferentes origens. Contudo, o olhar do investigador não deverá nunca ser limitado pelo dogma e/ou pela ideologia eventualmente dominantes, que cristalizam e condicionam pela sua acção, valores universais tais como a Verdade e a Liberdade entre os homens. É necessário cada vez mais olhar sem julgar, é necessário possuir a humildade que nos permitirá aprender com o próprio Povo, pois sem ele, não seríamos ninguém...
Como conclusão não gostaria deixar de frisar a importância de vivermos o dia-a-dia plenamente conscientes das mensagens de beleza, de riqueza e de harmonia que até nós chegam, nomeadamente por via da Sabedoria Popular Tradicional. Gostaria sinceramente que este pequeno contributo trouxesse alguma luz para melhor conseguirmos a compreensão de nós próprios, para melhor conseguirmos viver em harmonia e paz a Relação Humana, raiz do Desenvolvimento e da Cultura e clarificadora do Espírito. E, tal como nos transmitiu Rainer Maria Rilke, neste seu poema, mensagem de beleza e de esperança:
A Vida, não tentes compreendê-la,
e então ela será como uma festa.
E que cada dia te aconteça
como a uma criança que, ao caminhar,
de cada sopro do vento
vai recebendo presentes de flores.
Apanhá-las e guardá-las,
nem nisso pensa a criança.
Tira-as devagar do cabelo
onde se sentiam tão bem,
e estende as mãos aos jovens anos
para receber novas flores.
Rui Arimateia
NOTAS:
(1) Comunicação apresentada in I SEMINÁRIO INTERNACIONAL: CUENTOS Y LEYENDAS DE ESPAÑA Y PORTUGAL, Faculdad de Educación de Badajoz, 21 de Novembro de 1996
(2) D. MARIO ROSO DE LUNA, in “Prólogo” de Por el reino encantado de Maya, Madrid, 1921 (pp.8-9).
(3) MEHTA, Rohit – Procura o Caminho, São Paulo, Brasil, 1962 (pp.70-71).
(4) ELIADE, Mircea – Origens, Lisboa, 1989 (p.152).
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