quinta-feira, 11 de junho de 2015

SANTOS POPULARES


MEMÓRIA DE FESTEJOS POPULARES DE SANTO ANTÓNIO NA ÉVORA DE OITOCENTOS

«(…).
Nos festejos ao taumaturgo português o Largo de S. Francisco apresentava, nessas noites, lindíssimos tronos com imensa profusão de lumes e onde não faltavam barricas de alcatrão espalhando luz de efeitos seguros e surpreendentes, graciosos mastros aramados artisticamente, com seus arcos triunfais, festões de murta e flores, o habitual concurso de duas filarmónicas, tocando alternadamente. Outro divertido espectáculo era a alegria das raparigas solteiras comprando, entre galhofas, alcachofras e maçarocas de alfazema, grilos e rouxinóis em coloridas gaiolas, bem como os tradicionais vasos de manjericos, com preferência pelos da tia Manuela, vendedeira do mercado, por as suas curiosas quadras populares melhor estimularem os sonhos ingénuos das cachopas, como esta:

                        Anjo meu, se por acaso
                        Este vaso às mãos te for,
                        Dá-lhe o teu seio por vaso
                        Rega-o com beijos de amor!
            (…).»


Silva Godinho, 1982-83, “Temas Oitocentistas Eborenses” (II Série) in A Cidade de Évora, n.º 65-66, Boletim de Cultura da Câmara Municipal, n.º 65-66, Évora, p.175.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Carro Alentejano


Uma viagem entre Lisboa e Evora antes de haver o caminho de ferro

Sciencias & lettras


Eis como a descreve a penna elegante do distincto escriptor o  sr. Ramalho Ortigão, n’uma das suas correspondências para a Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro.

«Antes da abertura do caminho de ferro do sul, a viagem a Lisboa fazia-se em tres dias. No primeiro ia se a Montemor, no segundo a Pegões, e no terceiro, como Vendas Novas ficava perto de mais, pernoitava-se em Aldeia Gallega, esperando a falúa da carreira ou o vaporsinho da manhã seguinte.
Os quatro irmãos Cabreiras, – o Luiz, o Gabriel, o Antonio e o Romão – que tinham vindo de Hespanha em pequenos com a mãe viúva, faziam as recovagens e transporte de viajantes em carros alemtejanos entre Evora e Aldeia Gallega.
Na solida carreta, toldada de lona encerada e pintada de verde, acamavam-se primeiramente os sacos da mercadorias e os odres. Em cima da carga colocavam-se os colchões, e sobre os colchões acomodavam-se os passageiros, com os alforges, o farnel e a borracha com o vinho da jornada.
O Graviel, de barba feita para o caminho e camisa lavada, prendendo o colarinho desgravatado com dous grossos botões reboludos, o calção de briche novo, com fivelas e abotoadura de prata, a cinta de lã escarlate, o chapéo com o  diâmetro de uma mó, armado de dous pampous, a grande carteira de carneira verde – com a nota das encommendas dentro – na algibeira interior do jaleco, sentava-se com garbo sobre a lança, entre as mulas de troncos, dizia um monosyllabo ao gado, e tudo trotava alegremente por ahi fora ao estrepito argentino dos guizos, entre os rolos da poeira ennovelados no ar, ou sob a chuva, riscando o espaço n’uma pauta alvadia e transversal entre as longas orelhas abanadas da parelha de guias.
Ora, há muita gente em Evora que ainda hoje tem saudades das recovagens dos Cabreiras. Ataca-lhes os nervos o bem conhecido silvo da locomotiva, que tanto  incremento tem dado no paiz, não só ao commercio, mas á eloquencia parlamentar, e que ainda ha pouco eu ouvi citar, na camara dos deputados, como sendo uma das mais gloriosas conquistas do partido regenerador, querendo-se dar a entender ao reconhecimento publico, que quando os comboyos andam, é o sr. Fontes Pereira de Mello quem assobia.
Os simples viajantes acham menos divertido os vagons de primeira classe, do que os carros do Cabreira, e preferem abertamente ao entroncamento da Casa-Branca o antigo encontrão do odre nos solavancos da estrada velha.
Chega a haver antigos negociantes que, por baixo dos seus capotes ao fundo das lojas da rua Ancha, para o próprio transporte das mercadorias, suspiram ainda pela tracção do gado muar, como por uma terra de saudosa recordação da mocidade, jurando que o extincto macho carroceiro, quando nas unhas de quem lhe soubesse falar á mão, era muito mais ligeiro do que o vapor, em que tanto gosta de apitar a rethorica, consideravelmente menos fervida no transporte comercial dos odres do que na taverneação politica dos votos.
O caminho de ferro – dizem ainda – ligando-as estreitamente com Lisboa, absorvem para a capital a antiga importancia d’Evora como centro de provincia, e dissolveu uma grande parte da intensidade da sua vida autonoma.
O novo theatro sumptuoso e vastíssimo, se chegar a concluir-se, não terá quem o frequente, porque todos os rapazes e todas as senhoras novas das ricas familias eborenses preferirão ir a Lisboa ouvir a opera de S. Carlos, a comedia de D. Maria, ou a opereta da Trindade, a gastar o seu dinheiro com os amadores da terra.
E o que succederá com o theatro sucede com muitas outras fontes de trabalho, de commercio e de industria local, que o caminho de ferro vai sucessivamente empobrecendo e extinguindo.
Que demonio há de fazer a modista, o alfaiate elegante, o mercador de chapéos de seda e de pannos finos, o marceneiro, o joalheiro, o luveiro, o camiseiro, o relojoeiro, etc., numa terra distante apenas seis horas de Lisboa, e lendo em cada manhã o Diario de Noticias do mesmo dia com o programma dos espectaculos da noite, com o menu dos restaurantes, com as reclames dos alfaiates e das costureiras da baixa e com os annuncios do Gardé, da Emilia de Abreu, da Loja do Povo, da Aguia de Ouro e do Cento e três?!...
Além disso, o caminho de ferro encareceu em Evora o custo de todos os viveres, sugando-lhe como por uma enorme bomba aspirante para o estomago de Lisboa todos os generos alimenticios que n’ella abundavam: os frangos, os perús, os cabritos, os ovos, as perdizes, os repolhos e as laranjas.
De resto, com o no fundo das lamentações dos velhos retrogrados de Evora existe a melancólica afirmação de um facto perfeitamente positivo, eu receio bem, ao deixal-a com toda a minha sympathia de escriptor e de portuguez, que d’aqui a duas ou três gerações esta velha cidade, tão litteraria e tão artistica, cujo esplendor portanto tempo competiu com o de Lisboa, não venha a ser mais do que uma ruina monumental e um duplo deposito das mais gloriosas tradições para a nossa historia, e dos melhores géneros alimentícios para a nossa praça da Figueira.»
Ramalho Ortigão
in “Progresso do Alentejo”, III anno, n.º 269,
Évora, Quarta-feira, 28 de Abril de 1886.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

terça-feira, 21 de abril de 2015

O conto do Castelão e do Carvoeiro

ou o homem transformado em mulher

Era uma vez, há muitos, muitos anos e numa terra muito, muito distante,  havia o costume de um Senhor Castelão, abrir o seu castelo, um dia por ano, a todos os camponeses, habitantes no seu domínio, que o quisessem visitar. Durante esse dia comeriam e beberiam os mais deliciosos manjares e bebidas, ouviriam as mais delicadas e harmoniosas músicas, usufruiriam das riquezas do castelo a seu bel-prazer.
Contudo, o rei punha uma condição: durante a estadia no castelo cada um dos seus súbditos deveria estar preparado para partilhar e contar uma história.
Ora um carvoeiro que há anos gostaria de fruir esse dia de festa e de fartura no castelo, nunca o tinha feito porque não tinha história alguma para contar. Nesse ano porém, encheu-se de coragem e foi, pensando que o Senhor, com tanta gente no castelo nesse dia, com certeza não lhe iria perguntar sobre a sua história.
Se bem o pensou, melhor o fez, misturou-se com os seus vizinhos e entrou no castelo. Ficou deslumbrado com tanta luz, tanta beleza e tão grande fartura de comidas e bebidas. Muitas músicas, danças e alegrias se sentiam naquele dia no castelo.
Às tantas chegou o Senhor do Castelo com a sua comitiva para solicitar a um ou a outro convidado que lhe contasse uma história. Ao chegar ao salão onde estava o carvoeiro, dirigiu-se-lhe directamente e pediu-lhe que contasse uma história.
O pobre do carvoeiro, aflito e muito envergonhado, baixou os olhos e disse baixinho que não sabia qualquer história, mas que abandonaria já o castelo.
Mas o Castelão, postando uma cara de zangado, disse que não o autorizaria a sair antes dele pagar a afronta feita. Assim, teria que ir para o lago que ficava junto ao castelo, onde estava um barco sua propriedade e haveria de remendar um buraco no fundo do mesmo até ao final do dia.
E o carvoeiro lá foi, acabrunhado e envergonhado por ter sido descoberto e por perder tão bonita festa.
Chegou à margem do enorme lago, lá descobriu o barco e viu que realmente deixava  mesmo entrar um pouco de água. E pôs-se a trabalhar. Tão entusiasmado estava que não reparou o aparecimento repentino de uma tempestade que fez agitar as águas, desencalhar o barco e o transportou no seu anterior para o centro do lago onde ficou à mercê da tormenta e em risco de perder a própria vida nas suas águas agitadas e profundas.
Durante um tempo que lhe pareceu uma eternidade andou ao sabor das vagas e dos ventos até o céu aclarar e o barco ir encalhar numa praia lindíssima, de areias finíssimas e douradas e com uma luminosidade feérica. A paisagem à sua volta era magnífica e indiscritível, tal a sua beleza… Extenuado saiu do barco e caiu no chão. Ao levantar a cabeça reparou que qualquer coisa tinha mudado: olhou para as mãos e não viu as habituais mãos calejadas e escuras de um carvoeiro, sentiu-se mais leve e despreocupado! Ao debruçar-se junto de um pequeno espelho de água tranquila, olhou a sua figura reflectida e viu que se tinha transformado numa formosíssima donzela!
Ainda atordoado com a inesperada e tão radical mudança pôs-se a andar pela praia. Entretanto chega um garboso cavaleiro junto dela que lhe diz ser dono daquelas terras e a convida para o seu palácio que está muito próximo.
Tão linda é a donzela que o cavaleiro se apaixonou por ela e a pediu em casamento, tendo ela aceitado.
Viveram felizes naquela terra de sonho durante anos, sem nada lhes faltar. A donzela entretanto foi mãe de duas lindas crianças que criou com todo o amor e afeição.
Ora, um dia, num fim de tarde ameno, tendo a donzela ido passear à praia, viu um barco meio abandonado e lembrou-se vagamente da sua chegada àquela terra. Resolveu subir para o barco. Nisto e repentinamente desenvolveu-se uma grande tempestade que levou o barco da praia para o meio do lago onde a donzela mal se conseguia segurar devido à forte ondulação, ao terrível vento e à chuva que caía intensamente e sem parar. Ao fim de algum tempo o barco bateu em terra firme, com o seu passageiro mais morto que vivo devido ao cansaço e pelo enorme esforço de se segurar com medo de não cair à água. Tinha então o barco chegado à margem do lago, junto a um castelo que se encontrava todo iluminado e de onde se ouviam músicas encantadoras.
Quem saiu do barco foi o carvoeiro que, admiradíssimo, seguiu em direcção ao castelo e entrou. Logo o Castelão o viu e se lhe dirigiu, perguntando:
– Então Carvoeiro?! Talvez agora já tenhas alguma história para contar!?...


OBSERVAÇÕES:

Conto tradicional escocês contado pela Prof.ª Isabel Cardigos no dia 8 de Abril de 2015 no CEAO / Universidade do Algarve: “Emily Lyle mo contou quando regressávamos de um congresso em Innsbruck (Áustria), enquanto o avião nos levava. Escocesa, dirigia uma revista (Celtic & Scottish Studies).”

Temos por outro lado, a informação do Dr. Luis Correia Carmelo, sobre o conto “o homem transformado em mulher”, diz ele:
“Eu ouvi esta história a Ben Haggarty, narrador inglês, que por sua vez a ouviu a Betsy Whyte, uma informante escocesa de uma família itinerante que foi muito famosa no movimento revivalista de narração no Reino Unido.
A história, tanto em estrutura, como em tema, remete-me sempre para outras, claro.
Passei por uma história semelhante (sem a transformação em mulher) na leitura de uma colecção de contos escoceses (uma reescrita, não uma recolha). No Mahabhârata figura uma narrativa parecida (também sem a metamorfose), mas que se assemelha muito à versão que conto, já que é a propósito de ir buscar água por ordem de alguém que a personagem se vê numa aventura fantástica, onde casa e tem filhos. Quando regressa, pouco tempo passou.
De outra forma, Jean Claude Carrière, na Tertúlia dos Mentirosos, inclui uma narrativa indiano de um rei que se transforma em mulher e vive a mesma experiência do personagem do nosso conto em questão. Infelizmente, como é hábito, o autor não nos deixa uma fonte precisa.”

Podemos também encontrar uma versão curtíssima em J. Krhisnamurti (1977), in “Liberte-se do Passado”, Ed. Cultrix, 5.ª Edição, São Paulo (pág. 65):
«Sou tentado a repetir a história de um grande discípulo que foi a Deus pedir que lhe ensinasse a verdade.
Disse o "pobre" Deus: "Meu amigo, hoje está fazendo muito calor; por favor, vai buscar-me um copo d'água". O discípulo sai e vai bater à porta da primeira casa que encontra e uma linda jovem lhe abre a porta. O discípulo dela se enamora, os dois se casam e têm vários filhos. Então, um dia começa a chover, a chover sem parar. Os rios se engrossam, as ruas se inundam, as casas são arrastadas pelas águas. O discípulo se agarra à mulher, põe sobre os ombros os filhos e. ao sentir-se arrastado pela torrente, brada: "Senhor, imploro-vos que me salveis". E o Senhor responde: "Que é do copo d'água que te pedi?" (...).»