domingo, 26 de dezembro de 2010

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Mestre, o Amigo António Telmo


António Telmo usando da Palavra...

ADEUS ANTÓNIO TELMO! ATÉ BREVE!...

Partiu sábado passado, dia 21 de Agosto do ano de 2010, um Mestre um Irmão, um Ser verdadeiramente luminoso e inspirador. Soube-o somente há pouco. Até breve porque breve é este instante efémero de vida terrena e material. Até sempre porque nunca verdadeiramente nos separaremos do Mestre… Dói fundo a ausência física mas permanece a Presença vigorosa, ladina e inspiradora de António Telmo.
Deixo aqui um texto que há uns anos li na apresentação do livro “Contos” publicado pela Editora Aríon, do também recentemente desaparecido do nosso convívio físico, José Manuel Capelo. Foi o texto posteriomente publicado em livro de homenagem dos 80 anos de António Telmo, o que muito honrou.

ANTÓNIO TELMO CARVALHO VITORINO nasceu em Almeida, Distrito da Guarda nos idos anos de 1927, a 2 de Maio, chegou com as Maias, poder-se-á dizer.
Andarilho por meio mundo privou com grandes da Cultura, da Filosofia, do Pensamento Português. Desde Agostinho da Silva a Eudoro de Sousa, de Álvaro Ribeiro a José Marinho, entre muitos outros que com ele privaram e com eles António Telmo ajudou a re-construir a Pátria da Língua Portuguesa, parafraseando o poeta Fernando Pessoa.
Refere José Marinho na sua obra "Verdade Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo"(1):

Nos pensadores que contamos entre os responsáveis no próximo futuro pelo destino da filosofia entre nós, quatro se nos impõem: Alberto Ferreira, António Telmo, Eduardo Lourenço e Orlando Vitorino. Em todos eles despertou o sentido d'«o que mais importa», pois nos aparecem intimamente atentos com diversa explicitação ao imperativo dizer de Plotino.

É realmente este sentido d'«o que mais importa» que vemos continuamente a ser alvo das preocupações literárias – e a Literatura é aqui usada enquanto veículo de transmissão de mensagens – de António Telmo. E é interessante o facto dele próprio se considerar um esoterista. E encaremos este termo sem cairmos em pré-conceitos, e se lhe dermos a dimensão de Schwaller de Lubicz penso que entenderemos um pouco melhor a obra de António Telmo.
Sobre o significado de Esoterismo refere então Schwaller de Lubicz:

O Esoterismo não possui nada em comum com uma vontade de segredo, isto é, de um segredo convencional.
(...).
(...). A criptografia e o enigma, na composição de um texto sagrado, não têm senão por objectivo, o de acordar a atenção do leitor, acentuar um ou outro aspecto do texto, enfim, guiar na direcção do carácter esotérico. (...).
O esoterismo não pode ser escrito, nem dito, nem, por consequência, ser traído. É preciso estar preparado para o compreender, o ver, o entender – como o escolherdes. Esta preparação não é um Saber, mas um Poder, e não poderá senão adquirir-se pelo esforço da própria pessoa, por um combate contra os seus obstáculos e uma vitória sobre a sua natureza animal-humana.
Existe uma Ciência Sagrada, e após milénios, inumeráveis curiosos em vão tentaram procurar penetrar-lhe os "segredos". Era como se, com uma picareta, eles quisessem cavar um buraco no mar. A ferramenta deverá ser da mesma natureza da coisa em que se quer trabalhar. Só se encontra o Espírito através do Espírito, e o Esoterismo é o aspecto espiritual do Mundo, inacessível à inteligência cerebral.
(...).
O Iniciado verdadeiro poderá guiar um aluno dotado para lhe fazer percorrer o caminho da Consciência mais rapidamente, e o aluno, chegado às etapas da Iluminação pela sua própria Luz interior, lerá directamente o esoterismo de tal ensinamento. Ninguém o poderá fazer por ele.(2)

É uma obra complexa a sua – A Arte Poética (1964), História Secreta de Portugal (1977), Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981), Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Filosofia e Kabbalah (1989), O Bateleur (1992), Horóscopo de Portugal e agora estes Contos – para só referenciar os livros publicados e passando por cima dos muitos artigos espalhados por importantes Revistas principalmente ligadas com a Cultura e a Língua Portuguesa, tais como as Revistas "57", "Leonardo", "Cultura Portuguesa", para só citar algumas.
Diz-nos Pinharanda Gomes no seu "Dicionário de Filosofia Portuguesa"(3)que:

O centenário do nascimento de Sampaio Bruno (1957) ficaria assinalado pelo aparecimento do jornal 57 que dimensionava a problemática da filosofia portuguesa em termos de movimento de intervenção social e cultural. O 57 reivindica uma genealogia espiritual (Aristóteles, a Bíblia, Dante, Conimbricenses, Hegel, Bruno, Leonardo Coimbra...) e congrega jovens pensadores todos eles, cada um a seu modo, destinados a uma presença consistente. Mencionando apenas os discípulos [de Álvaro Ribeiro ou José Marinho] da primeira geração, entre eles (...) António Telmo (filologia e simbologia) (...). O 57 tem um vector polemizante: quer suscitar o debate das ideias, e este debate provocará algum radicalismo, mas sem ele o movimento teria ficado fechado em si mesmo. (...).

É interessante referir que este jornal se insere num movimento de cultura portuguesa, cujos mentores e impulsionadores foram Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho e Orlando Vitorino. Vejamos um pequeno excerto do «Manifesto de 57» publicado no seu primeiro número:

Nós somos solidários desses milhares de jovens indiferentes à cultura, que enchem os estádios, os cinemas e os cafés. Nós somos solidários dos que viraram as costas a esses brilhantes aparatos racionais e abstractos, os sistemas metafísicos; que viraram as costas às grandes promessas utópicas, brilhantes na sua argumentação falaciosa e desligadas das condições humanas e naturais quando não trans-naturais da realidade; que viraram as costas ao fogo de artifício lírico; que viraram as costas a todos os dogmatismos, contrários à simples prova de reflexão individual e buscando coarctá-la na sua liberdade interior; que viraram as costas a todas as formas da mentira, mesmo quando esta se reveste das aliciantes da beleza ou do bem comum.

Não nos podemos esquecer de que quando este «Manifesto» é escrito estamos em pleno Estado Novo e concerteza não seria fácil a qualquer movimento de libertação - cultural, filosófico, ou outro – transmitir e fazer valer a sua mensagem de "ruptura"...

Afinal toda a busca do Homem em geral e neste caso concreto, em particular, a busca de António Telmo, penso ser a da VERDADE. Agora: como procurar essa Verdade? como a descobrir e a desocultar? e como saber se a Verdade que encontrámos é a VERDADE que pensamos adivinhar no Arquétipo? Lembro-me continuamente aquela deliciosa história narrada por Almada Negreiros sobre a Verdade, escrito em 1921:

Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade !!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...(4)

A uma pergunta feita pela jornalista Antónia de Sousa(5): Qual a génese das ideias? Como nascem as ideias? Responde António Telmo muito simplesmente: «As ideias são comunicadas pelos anjos! Só que há quem as pense e quem as não pense. O pensamento é que é nosso.»

Já Agostinho da Silva se "queixava" que uns lhe chamavam heterodoxo, outros lhe chamavam ortodoxo, contudo o que ele realmente reivindicava era o estatuto de ser paradoxo, de viver no paradoxo...
Atentemos mais uma vez ao pensamento de António Telmo, desta feita através de uma entrevista à jornalista Antónia de Sousa:

(...).
António Telmo faz uma afirmação surpreendente: «Eu acho que os meus livros sabem mais do que eu. Muitas vezes, ao ler alguma coisa que escrevi, fico surpreendido perante o anúncio de um conhecimento e de uma sabedoria que eu não possuo e que tenho que aprofundar como qualquer outro leitor.»
Telmo não nos diz como é isso possível. Mas afirma-nos: «O Universo não é racionalista, nós é que o devemos ser. Aquilo porque me esforço sempre nos meus escritos é por pensar o irracional. Tornar racional o irracional. Na minha opinião, isto é o que me caracteriza e me distingue e julgo também que é o que suscita o interesse das pessoas. É uma vivência pessoal, mas é também o esforço de não perder a razão perante aquele mundo misterioso. Estou convencido de que toda a gente tem a experiência deste irracional, mas resolvem os conflitos de vários modos, Ou negando esse irracional, ficando preso aos limites de uma razão estreita, ou aceitando esse irracional e perdendo a razão.» Há porém, outra alternativa que é, segundo diz, a de «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real». E acrescenta: «No fundo, é por onde eu ando.»
(...).(6)

Penso ser isso que António Telmo realiza através da sua obra: trabalhar o paradoxo, trabalhar nos limiares da língua, do pensamento, das ideias, fornecendo-nos de certo modo a chave para entrarmos noutra dimensão que não a dimensão meramente analítica, normalizada, feita a esquadro. Desafia-nos a dar um passo em frente, a pegar no compasso e desta vez sair da rectilinearidade para nos embrenharmos numa circularidade de uma compreensão e de um pensamento mais abarcante, mais totalizante – «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real... no fundo é por onde eu ando.»(7)

Finalmente, gostaria de mais uma vez agradecer a António Telmo o facto de ter feito o favor de reencarnar nesta época, dando-nos o privilégio de com ele convivermos, conversarmos e partilharmos estas coisas tão extraordinárias que são as palavras e os pensamentos, complicadas in extremis por esta tramada idiossincrasia portuguesa.

Rui Arimateia



NOTAS:
1) Lello & Irmão Editores, Porto, 1976. Referência no Capítulo III –"Conceito de razão e formas da filosofia", na página 218.
2) R.A. Schwaller de Lubicz – PROPOS SUR ÉSOTÉRISME ET SYMBOLE, Col. 'Mystiques & Religions, Dervy-Livres, Paris, 1989 (págs. 9,11 e 12).
3) Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, página 109, artigo sobre a 'Filosofia Portuguesa'.
4) José de Almada Negreiros – POESIA, Col. 'Obras Completas', n.º4, Editorial Estampa, Lisboa, 1971 (pág. 179).
5) "DN magazine", 25 de Agosto de 1991, pág. 27.
6) Entrevista a Antónia de Sousa in "DN magazine", n.º 256, de 25 de Agosto de 1991 (pág.27).
7) Idem

domingo, 2 de maio de 2010

Cântico ao Horto das Oliveiras


Horto das Oliveiras em Jerusalém

SOBRE A RELIGIOSIDADE NO ALENTEJO

O livro de J. A. David de Morais RELIGIOSIDADE POPULAR NO ALENTEJO, das Edições Colibri, foi apresentado no Forum Cultural Municipal de Alandroal no passado dia 1 de Maio com a presença do Senhor Presidente da Câmara Municipal, Dr. João Grilo; da Senhora Vice-Presidente da Câmara, Dr.ª Fátima Ferreira; do Autor do livro, o Prof. Doutor João David de Morais; e do Editor, o Dr. Fernando Mão de Ferro.

O mesmo livro foi apresentado igualmente na Biblioteca Pública de Évora, no dia 26 de Maio de 2010, com a presença do autor, do Director da Biblioteca, Dr. José António Calixto e do Editor, Dr. Fernando Mão-de-Ferro. O texto foi acrescentado e melhorado em relação à primeira sessão.

Foi uma honra enorme e uma ainda maior responsabilidade ter aceite o convite do Professor Doutor João David Morais, e permita-me acrescentar, amigo de longa data e atrevo-me a até a dizer, companheiro nestas lides de estudar e tentar compreender o Alentejo e os Alentejanos, inseridos nesta terra lúcida que penso ser ainda Portugal.

O convite para realizar a leitura do livro RELIGIOSIDADE POPULAR NO ALENTEJO – A FESTA DA SANTA CRUZ DA ALDEIA DA VENDA E A SUA DIALÉCTICA COM O SAGRADO e tentar uma sua aproximação e apresentação para um conjunto diversificado de espectadores não foi e não é tarefa fácil, contudo aceitei o desafio, tal como o Senhor Professor João David Morais há mais de três dezenas de anos aceitou o desafio de enveredar pela pesquisa desta problemática da Festa da Santa Cruz e finalmente, decidir-se pela publicação do seu trabalho e das suas reflexões.

Quanto ao Autor, apresento uma rápida fotografia: Médico, Professor Universitário, Investigador, produziu ao longo da sua carreira significativa bibliografia não só sobre temas ligados à sua área profissional, de que é reconhecido nacional e internacionalmente e convidado para seminários, mestrados e conferências…
Possui no seu curriculum a publicação de mais de uma centena de trabalhos científicos e de divulgação – ligados principalmente às áreas da Ecologia Humana e da Antropologia Aplicada, mas passando também pela História, pela Sociologia, Psicologia e Psicanálise. Estes trabalhos científicos referidos são dedicados sobretudo às gentes que habitam o Alentejo. Cito, a título de exemplo e porque são obras que ainda não se encontram esgotadas nas livrarias: “A Transumância de Gados Serranos e o Alentejo”, editado pela Câmara Municipal de Évora, em 1998; “Senhores e Servas – Um estudo de Antropologia Social no Alentejo da primeira metade do século XX”, pelas Edições Afrontamento, em 2003; “Ditos e Apodos Colectivos – Estudo de Antropologia Social no Distrito de Évora”, das Edições Colibri, em 2006.
Quanto ao livro que nos reúne hoje aqui, “Religiosidade Popular no Alentejo”, editado também pelas Edições Colibri, começo por dizer que não é um livro fácil, pelo facto do Prof. João David Morais não se ficar tão só pela descrição etnográfica da Festa da Santa Cruz da Aldeia da Venda. O rigor e o espírito científico aplicados na realização desta obra levaram o Autor a exigir de si próprio uma metodologia multidisciplinar para a compreensão da Festa em si e para nos dar a conhecer a complexidade deste evento religioso que nos legaram as gerações anteriores à nossa.
As grandes temáticas abordadas pelo Autor são, no fundo, o Alentejo e a Religião Popular.

No Alentejo a perspectiva sempre presente, quando abordamos etnologicamente ou antropologicamente estas problemáticas, é a da relação do homem alentejano com a terra. Mais concretamente do homem que habita e labuta arduamente este território e organiza esta Festa da Santa Cruz do Alentejo Profundo…como o Prof. João David Morais a certo ponto começa a designar a Aldeia da Venda e toda esta região do interior do Alentejo Central, encostada à raia espanhola.
No início do seu trabalho, apresenta informação preciosa sobre a relação dos alentejanos com o Sagrado, desde a Pré-História, passando pela Romanização, pela Idade Média até à contemporaneidade dos nossos dias.

Num estudo por mim efectuado em 1992 “A Festa de São Marcos e a Religiosidade Popular”, e publicado na revista “Ibn Marúan”, N.º 2, de Marvão, a certa altura refiro que: “Nos primórdios do Cristianismo a maioria das comunidades subsistia através da Agricultura, consequentemente foi encontrado um Deus que se interessasse pela fertilidade da terra e dos animais, servindo, em última análise, o próprio homem…
O Papa Gregório I, no século VII, reconhecendo esta maneira de sentir das populações rurais e aldeãs, instruiu o clero no sentido de, se se encontrasse entre aquelas populações simples, crenças pagãs profundamente enraizadas as quais não pudessem ser eliminadas facilmente, as transformassem em práticas cristãs:
“…e como eles têm um costume que consiste em sacrificar muitos bois ao Diabo, substituam-no por qualquer outra solenidade, como um dia de Consagração ou dos Festivais dos santos mártires… Nessas ocasiões podem construir abrigos de ramos para si próprios à volta das igrejas que dantes foram templos, e celebrar a solenidade com festividades devotas. Não devem sacrificar mais animais ao Diabo, mas podem matá-los para comer em louvor de Deus, e agradecer ao que concede todas as dádivas a abundância de quem gozam.”
Esta Festa poderá perfeitamente ser actualmente a reminiscência de outras Festa ancestrais e situadas temporalmente para além da memória dos homens e das mulheres dos nossos dias.
Contudo, ao Autor não interessa tanto o estudo da relação do homem com Deus, mas sim do homem com o Sagrado, com o Mistério, sendo referido na Introdução, e passo a citar:

«Ora, o Sagrado (o Mistério, o Transcendente, o Além, o Absoluto, o Ultra-Terreno, o Sobre-Humano, etc.) é algo constitutivo do psiquismo humano, daí a sua perenidade – pelo menos enquanto a espécie humana subsistir. (…). O Homo sapiens gerou-se no líquido primacial do Sagrado e, não o tendo o Cosmos dotado de um “manual de instruções teológicas”, cada povo elaborou as suas representações próprias de Deus (ou de deuses).»

Os Mistérios desta Festa da Santa Cruz da Aldeia da Venda estão relacionados com o Mistério dos Martírios do Senhor, é uma festa de celebração imbuída simultaneamente com o espírito da Quaresma e da Primavera… E é uma festa que conseguiu sobreviver com uma frescura e com uma mensagem impolutas, por enquanto, das folclorizações globalizantes que outras regiões e outras festas do género sofreram ao longo dos últimos anos. O facto de nos encontrarmos no interior do Alentejo poderá ter ajudado a esta impermeabilização de influências exteriores desestruturadoras da mensagem inicial.

Assim, a própria Festa da Santa Cruz insere-se na construção e na valorização, ao longo de tempos imemoriais, de uma Identidade Cultural mais alargada que é a do Alentejo e a do homem alentejano.

Esta temática da Identidade Cultural, pela sua própria natureza, é complexa, e por isso mesmo extraordinariamente rica em hipóteses de abordagem e de intervenção.
No nosso caso, a Identidade Cultural prende-se fundamentalmente com o “ser alentejano”, pois que é caracterizada essencialmente pela língua, pelas tradições, pelos costumes, por toda uma idiossincrasia que só damos pela sua existência quando nos afastamos fisicamente da terra de origem…
Se o Património Cultural se pode caracterizar fisicamente, a Identidade Cultural pertence mais ao domínio do imaterial, do psicológico e do espiritual, que nasce da relação profunda e inefável entre o Homem e a Terra. É importante reflectir em conceitos tais como: Pátria/Mátria, Religião (na perspectiva etimológica de re-ligare) e Mitologia (os mitos de origem, o eterno presente, a Saudade, a Mãe, a Terra, a Tellus-Mater).
De facto, a Identidade Cultural não possui existência física palpável. Poderão identificar-se pontes culturais e vivenciais comuns, de comportamento de “estar” e de “ser”, entre indivíduos que vivem a mesma terra, os mesmos ritmos e por vezes os mesmos ritos. É importante considerarmos os Ritos/Ritmos humanos na construção harmoniosa de um viver em comum.
Alguns daqueles “pontos em comum” que tradicionalmente nos auxiliam a ver o alentejano enquanto alentejano – a cal, os grandes espaços, o silêncio, o cante colectivo, a contemplação e a solidão do homem perante a Natureza; os gestos e as linguagens seculares das Artes e dos Ofícios… e neste caso concreto, os gestos e as linguagens, imbuídos de mistério, da Religião Popular e das Festas Cíclicas Religiosas que teimam ainda em continuar a enriquecer cultural e espiritualmente o Alentejo.
Contudo, temos consciência de que o Alentejo já não é só isso!... O que caracteriza o Alentejo e o “ser alentejano” transformou-se hoje num conceito muito mais alargado, muito mais rico, devido fundamentalmente à sociedade aberta em que vivemos, que estamos ainda a aprender a construir, nomeadamente após o 25 de Abril de 1974.

Constatemos, por outro lado as “situações-problema” que negativamente poderão contribuir para a destruição da Identidade Cultural de uma dada População: excessiva mecanização/ automatização do trabalho, nomeadamente nos trabalhos da terra, o excesso de televisão/comunicação, o consumismo exagerado, toda uma deseducação da sensibilidade através de uma reprodução de saberes e de gostos e de gestos monolíticos e que provocam em última análise uma estranha e perigosa obesidade mental…
Tudo isto vai acabar por formatar negativamente as mentalidades dos homens e das mulheres que, de modo passivo e inconsciente se vão a pouco e pouco entregando sem resistência…e vão esquecendo os gestos e a poesia e o cante que ainda estão presentes e são o suporte anímico da sua comunidade identitária de vizinhos.
Assim, os ritos e os mitos, transmitidos através dos gestos e das palavras, das mensagens vivenciais que a tradição, a identidade, o sentimento colectivo, o legado da família, etc., estão em risco de já não lhe compreendermos o seu sentido mais profundo… tal como os versos do Cântico à Ordem das Oliveiras vai sendo cada vez mais encurtado e cada vez menos compreendido pelas cantadoras, correndo o risco de se perder, a partir de certa altura, o seu significado mais íntimo, mais essencial e tornando-se necessariamente a dramatização menos sentida e mais superficial.

Não queria deixar de referir os diferentes enfoques pelos quais o Prof. João David de Morais nos convida na abordagem a esta problemática.
Desde o enfoque etnográfico, com as recolhas efectuadas na Aldeia da Venda e no Concelho de Alandroal e não só, sobre esta Festa ou festas semelhantes.
O enfoque antropológico que lhe vai permitir uma interpretação e uma sistematização dos materiais, das fichas elaboradas durante mais de trinta anos.
Complementarmente, vai auxiliar-se de outros instrumentos, outras disciplinas científicas que lhe permitem aprofundar ainda mais as manifestações culturais e religiosas estudadas, que foram a Psicologia e a Psicanálise, através de autores como Mélanie Klein, Sigmund Freud e Georges Devereux.
Finalmente gostaria de referir a obra científica de um outro autor, transversal a todo o estudo agora apresentado, que é Mircea Eliade, o grande erudito da História das Religiões.

Todo este conjunto de autores, vão apetrechar por sua vez David Morais, por um lado a compreender a problemática estudada, por outro a ficar habilitado a recusar o assim denominado pseudocientifismo de alguns autores modernos, principalmente no que concerne ao estudo da figura de Santa Maria Madalena, nomeadamente quando a figura e a sua problemática é popularizada nos recentes livros de Dan Brown, nomeadamente no best-seller de “O Código da Vinci”, que aborda vários aspectos de eventual relacionamento entre Jesus e Maria Madalena e a existência de um tenebroso “Priorado do Sião”… livro este repleto de falsos documentos e de inverdades históricas…
De realçar a Bibliografia citada no final do livro e consultada pelo Autor, que poderá auxiliar para quem deseje aprofundar as temáticas, num conjunto de cerca de quatrocentos títulos.

Festa, simbologia, iniciação, catarse, rito de passagem, mito, rito, mistérios, religião, drama, mulher, cântico, Cristo, Maria Madalena, Madanela, Mordoma, Mestra, Cruz e Santa Cruz, Sudário, prata, ouro, lágrimas e risos, Sol e Lua… são algumas palavras-chave para nos ajudarem a compreender e a desmontar toda a complexa trama deste Cântico à Ordem das Oliveiras! Festa esta que tem o poder de re-sacralizar o espaço onde é ciclicamente organizada e dramatizada.
Poderemos abordá-la, e o Prof. David Morais o sugere, por duas vias.
A primeira tentando olhar de frente e compreender qual o papel do “psiquismo humano” na construção deste fenómeno religioso. Estamos no fundo a propor um método de autoconhecimento do próprio homem enquanto inventor do rito. Perceber qual o papel do indivíduo na construção e na manutenção do mundo que o rodeia.
Como diziam os antigos “Eu sou o que sou”…
A outra via é a tentativa de compreensão do próprio indivíduo perante o Cosmos, aqui representado pelo Sagrado, pelo Mistério. Só poderá ser adivinhado, sentido e nunca encarado directamente.
Mistério e Verdade - a mesma problemática!?

Nos nossos tempos modernos, da escrita e do registo, existe abundante literatura sobre a Iniciação e as iniciações... muita investigação e muito “faz de conta” sobre o assunto, dos mais sérios, desde que o homem iniciou a transmissão de experiências e de vivências da Religião [re-ligação] e as sussurrava de boca a ouvido, para que as mesmas, ou não se perdessem ou não caíssem em mentes e corações menos puros porque ávidos de poder e de ter e indiferentes ao sofrimento e ao bem estar de outrem.


A Iniciação é a porta de entrada, é o limiar para um novo mundo e uma nova experiência de vida, contudo desconhecida…
Recordemos Victor Hugo quando afirma que:
«É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».

Desde tempos imemoriais que os Antigos Mistérios, detentores da Sageza das Idades, têm tido como fim último da sua Demanda, a cabal compreensão da Verdade. Contudo, esta parece ser inatingível, para o homem comum, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, vem transformando e espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que o ajudam a dominar a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios.
Sempre o homem comum olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer mistério vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, em algum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: «Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...», resta-nos a possibilidade de (re)encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... ou, se quiserem, mais misticamente dito, oculto no nosso Coração...

Por outro lado, o investigador moderno da Sabedoria Sagrada e dos Mistérios do Antigo Egipto, Schwaller de Lubickz numa das suas obras refere que «não é preciso imaginar nada: é preciso calar... e escutar... É preciso olhar no silêncio, sem querer ver e aceitar o Nada, porque ao que o homem denomina por “nada” isso é a Realidade».
Voltando à problemática da Festa da Santa Cruz na Aldeia da Venda:
No fundo, só conseguimos olhar o fenómeno e nunca chegar à Causa que o produziu. Tal como Maria Madalena chegou até Jesus, mas terá chegado até Cristo?
Porque a personagem Cristo foi criada a partir da dramatização Crucificação / Ressurreição. O homem Jesus transmutou-se no Cristo Cósmico, intangível para os restantes humanos pois que quando Madalena O reconhece Ele lhe estende a mão e diz “Noli me tangere!”…”Não me toques!”…
Jesus é o homem físico, Cristo o paradigma espiritual e salvífico…
A relação entre uma perspectiva micro, a do homem e a sua pequenez, e uma outra perspectiva macro, a do Cosmos e da imensidão, está continuamente em jogo, num dinamismo umas vezes tão evidente mas outras completamente oculta.
Referem alguns autores, e refiro de memória, que a origem etimológica da palavra “sagrado”, de origem semita, SCR, quererá dizer “reprodução”… No fundo a procura do sagrado por parte do ser humano ao longo de milénios de existência e de evolução é a tentativa de sobrevivência física (pelo menos) num mundo que à partida lhe é adverso e que tem tentado dominar.
Reflectindo, a ritualização de um mito, de uma parábola, de um episódio genésico dos nossos antepassados, significará por um lado a sacralização cíclica de um espaço e de um tempo para, de seguida se criar as condições de continuidade física e espiritual da própria comunidade, regularizando as relações entre os seus membros e provocando uma coesão do próprio grupo.
As dicotomias Sol / Lua, homem / mulher, terra / céu… são relações que apontam para este jogo de contrários mas que, fazendo jus à máxima de Hermes Trismegistos, no seu texto “A Tábua de Esmeralda”, percebemos a mensagem que tem sido transmitida pelos Sages, pelos Mestres e Mestras ao longo de eras:

«É verdadeiro, completo e certo. O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa.
Ao mesmo tempo, as coisas foram e vieram do Um, desse modo as coisas nasceram dessa coisa única por adopção.
O Sol é o pai, a Lua a mãe, o vento o embalou em seu ventre, a Terra é sua ama; o Telesma do Mundo está aqui. (…).»
Nos passados dias 7 e 8 de Maio de 2010 os habitantes da Aldeia da Venda representaram mais uma vez o drama da Madanela e da Santa Cruz no Horto das Oliveiras…Faço votos para que não deixem cair o testemunho desta tradição e que continuem a praticá-la e a vivê-la para regozijo dos muitos forasteiros que lá se deslocaram nesse dia a fim de beberem aquela tradição, fazendo com que as suas vidas quotidianas ficassem mais ricas e com mais sentido após terem assistido e participado num rito acontecido num espaço sagrado.
O centro do mundo naquele dia terá sido de facto o largo da Aldeia da Venda.

Rui Arimateia
Biblioteca Pública de Évora
26 de Maio de 2010

domingo, 25 de abril de 2010

Évora e as Comemorações do 25 de Abril de 2010


É TEMPO DE REFORÇAR OS VALORES DO 25 DE ABRIL

Ontem viveram-se na Praça do Giraldo, como tem vindo a ser um hábito saudável desde há muitos anos, as Comemorações do 25 de Abril.
Já lá vão 36 anos!... Curioso o número teosófico daqui resultante... o zero! A mensagem que nos chegou da Associação 25 de Abril para isso nos alerta - o de voltar a fazer um 25 de Abril, é preciso um novo 25 de Abril! Sem chaimites e sem espingardas mas, num esforço conjunto de reforço e simultaneamente de mudança de valores que de facto não têm sido suficientemente vividos e defendidos por aqueles que possuem os instrumenos legais e institucionais para o fazer! É tempo de todos os que acreditam na autenticidade de valores como justiça, como solidariedade, como democracia, gritarem alto, tal como aconteceu no tempo dos alvores da República: Liberdade! Igualdade! Fraternidade!

ASSOCIAÇÃO 25 DE ABRIL

MENSAGEM

Cada ano que passa, renova-se o ritual de lembrar o Portugal de antes de Abril, a luta contra a ditadura, a libertação e os dias de esperança e de construção de um país novo.
Fazemo-lo, orgulhosos da luta desenvolvida contra os opressores, da acção libertadora que essa luta proporcionou e das jornadas cívicas, onde todos participaram activamente.
Fazemo-lo também no ano em que se evocam os cem anos da implantação da República. Lembrando que o 25 de Abril fez renascer os valores republicanos, que havia 48 anos estavam amordaçados.
E, num tempo em que parecem vacilar os valores republicanos do serviço público desinteressado, do culto do bem comum e da escrupulosa gestão dos valores patrimoniais comuns, no momento em que muitos inimigos da República, da Liberdade, da Justiça Social e do 25 de Abril se aproveitam das fraquezas dos maus republicanos para as darem como inerentes e contaminadoras do próprio ideal democrático, há que afirmar orgulhosamente os princípios por que se bateram os combatentes da Rotunda, dizendo que o 25 de Abril de 1974 prolongou e aprofundou o 5 de Outubro de 1910, a bem de Portugal e dos Portugueses.
Mas passados 36 anos, olhando a situação a que se chegou, impõe-se perguntar “Se foi para isto que se fez o 25 de Abril?”
É uma questão que se coloca muitas vezes, juntamente com a de “Valeu a pena?”, acrescida da afirmação “É preciso fazer outro 25 de Abril!”
Perante o ponto a que se chegou, confessamos ser difícil responder a essas questões.
Os sentimentos são contraditórios, parecem impossíveis de conviver entre si.

Isto porque por um lado, foi para isto que se fez o 25 de Abril!
Sim, porque foi para terminar com a ditadura que se fez o 25 de Abril! E, em consequência, a democracia aí está, possibilitando a todos e a cada um que, usando a liberdade conquistada, participe na escolha dos seus diversos dirigentes.
Sim, porque foi para terminar com a guerra que se fez o 25 de Abril! E a guerra terminou, ajudando ao nascimento de novos países, que, com muitas dificuldades é certo, vêm caminhando, fazendo o seu próprio caminho de países independentes, construindo a sua própria história.
Sim, porque foi para terminar o isolamento internacional em que Portugal vivia que se fez o 25 de Abril. E aí estamos nós, inseridos na União Europeia, com relações amigáveis com todos os países do mundo!
De facto tudo isto é verdade, mesmo que tenhamos de concordar que a Democracia tem enormes defeitos, não sendo perfeita só porque ainda não se conhece sistema menos mau. Sendo que o maior deles é permitir que se continue a assumir estar-se em democracia, quando apenas subsistem alguns dos seus aspectos formais.
Como temos de concordar que a Liberdade sofre demasiadas condicionantes, fruto do poder dos mais poderosos, que encontram sempre fórmula de pressionar os mais desfavorecidos.
Como teremos de reconhecer que, apesar de não estarmos envolvidos directamente em qualquer guerra, nos deixámos levar à participação em guerras alheias, fortemente injustas e condenáveis, dando cobertura a acções de agressão a povos com os quais devíamos ser solidários.
Mas, apesar de todas estas insuficiências da nossa democracia, continuamos a considerar que valeu a pena!
A Liberdade, a Democracia e a Paz são valores sem preço, pelos quais vale a pena lutar e tudo arriscar!

Por outro lado, o 25 de Abril também foi feito para alcançar a Justiça Social, nas suas várias vertentes!
O 25 de Abril também foi feito para terminar com as enormes desigualdades de que a sociedade portuguesa padecia, também foi feito para fazer com que as classes mais desfavorecidas passassem a ser menos desfavorecidas.
E também foi feito para se construir uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais democrática.
E, perante a situação que atingimos, perante a situação que vivemos, há que dizer clara e inequivocamente que “não foi para isto que se fez o 25 de Abril!”
Não foi para cavar um fosso cada vez maior entre os mais ricos e os mais pobres, com situações aberrantes, onde o leque salarial atinge valores de várias centenas, que se fez o 25 de Abril!
Não foi para aumentar a distorção da distribuição do rendimento do trabalho, onde o capital vem abocanhando cada vez mais uma parte de leão, que se fez o 25 de Abril!
Não foi para criar gritantes e escandalosas anomalias na distribuição da parte que cabe aos trabalhadores, que se fez o 25 de Abril!
Como é possível que, enquanto o trabalhador médio português ganha pouco mais de metade do que se ganha na Zona Euro, o gestor português suplante os valores ganhos pelos homónimos americanos, franceses, finlandeses, suecos e outros.
Não foi para isto que se fez o 25 de Abril!
Como também não foi para criar uma sociedade corrupta, de total impunidade e compadrio, que se fez o 25 de Abril!
Não foi para ver os máximos dirigentes do país desacreditados e sem autoridade moral, para pedirem sacrifícios à generalidade da população, que se fez o 25 de Abril!

Como foi possível termos chegado a isto?
Como é possível ter-se enfrentado a crise, de forma a que os únicos que ganharam com isso tenham sido os próprios responsáveis por ela? O facto é que, passado o susto, salvos pelo dinheiro dos contribuintes, refinaram os seus métodos, aumentaram os seus privilégios e aí estão, prontos a continuar a exploração de todos, em benefício pessoal! Nada aprenderam com o susto, mantêm uma inconcebível falta de regras éticas e continuam a levar-nos para o abismo.
E, enquanto os gestores continuam a receber vencimentos milionários, os banqueiros a ver aumentados os rendimentos do passado, o desemprego continua a aumentar, os trabalhadores precários são cada vez mais, os pobres aumentam em número absoluto e relativo e as desigualdades sociais são cada vez maiores. A maioria da população vê o seu cinto cada vez mais apertado e não vislumbra uma réstia de luz, ao fundo do túnel!
Como foi possível permitir o enfraquecimento e a ineficiência do Estado, prisioneiro dos pequenos e grandes grupos de interesses que campeiam no país? Grupos que conseguiram transformar partidos políticos em agentes desses mesmos interesses particulares? Assim se chegando a uma situação de degradação inaceitável do Estado, por via da sua subordinação a interesses avulsos e ilegítimos.

Temos de ser capazes de romper essa tenebrosa teia de interesses. A vida colectiva dos Portugueses não pode continuar à mercê de um permanente e sistemático entorpecimento do funcionamento da Justiça!
Temos de ser capazes de acabar com o nexo directo entre o não funcionamento dos serviços judiciários, a corrupção e a fraude! Só assim acabaremos com o clima de mal-estar que se instalou na nossa sociedade – o maldizer, o derrotismo, o pessimismo!
Temos de ser capazes de acabar com a impunidade dos responsáveis, por mais arbitrariedades e erros que cometam!

Sim, não foi para isto que se fez o 25 de Abril!
Por isso, como responsáveis maiores do acto libertador de 1974, aqui deixamos o nosso grito de revolta: Não estamos arrependidos, continuamos a considerar que, apesar de tudo, valeu a pena, mas chegou a altura de, também nós, gritarmos que é necessário um outro 25 de Abril!
Mas um 25 de Abril com outras armas!
Não com as G3 e as Chaimites, pois não vivemos em ditadura, mas com as armas que a Democracia nos faculta!
A nossa acção cívica tem de conseguir parar a degradação da nossa sociedade, tem de conseguir devolver-nos a esperança de um novo país, com justiça e solidariedade. Um país mais livre, democrático, justo e fraterno.
E isso só será possível se, todos e cada um, nos imbuirmos do espírito de Abril, se impusermos os seus valores a quem nos dirige. Usando os instrumentos que a Democracia nos fornece, não tendo medo de assumir uma atitude cívica, em defesa e na luta pelos nossos valores, pelos nossos ideais.
Vamos voltar a dizer não! Vamos vencer o medo, não esperando que outros resolvam os problemas! É preciso voltar a avisar toda a gente!
É difícil? Certamente, mas Abril não foi nada fácil. Acreditem que, apesar de ter parecido fácil, porque tudo correu bem, não foi nada fácil.
A responsabilidade na construção de um Portugal verdadeiramente democrático é de todos nós, sem excepção.
Acreditemos todos que é novamente possível!

Viva o 25 de Abril
Viva Portugal

Abril de 2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Cavaleiros Templários - A partilha


PORTUGAL TEMPLÁRIO

[Ao José Capêlo]

Em primeiro lugar gostaria de expressar o agradecimento sincero ao José Manuel Capêlo pelo facto de me ter lançado este desafio de apresentar o livro de sua autoria «Portugal Templário», projecto que há já vários anos anda a perseguir. Desafio maior concerteza foi para ele o dar à estampa este livro que, pela complexidade da matéria, adivinhamos uma persistência, um trabalho e uma força de vontade, que poderemos dizer, de verdadeiro Templário. Foi um projecto que sabíamos ele encontrar-se a realizar mas que não o pressentíamos tão cedo e tão completo.
Falar hoje da Ordem do Templo em Portugal é uma aventura arriscada devido à abundância de fontes, de livros e artigos existentes. Contudo José Manuel Capêlo soube ser original, soube ser exaustivo e exigente na matéria trabalhada. Este livro servirá de referência obrigatória a quem quiser trabalhar e investigar historicamente um pouco mais a Ordem do Templo e o seu desenvolvimento em Portugal.
Apresenta-nos uma cronologia baseada em fontes fidedignas, auxilia-nos a obter uma percepção global da História desta Ordem Militar tendo em conta o próprio desenvolvimento histórico do País e a sua relação com o resto da Europa e do Médio Oriente. É importante esta visão global, já existente no Século XII e levada ao extremo no decorrer dos Séculos XIII e XIV pelo crescimento e desenvolvimento da Ordem do Templo por toda a Cristandade, desde a Alemanha até à Península Ibérica e desde a Grã-Bretanha até aos confins da Terra Santa.
Hoje, devido à imensa literatura mais ou menos fantástica ao nosso dispor em qualquer escaparate das livrarias, falar da Ordem do Templo ou dos Templários, remete-nos para épocas e para realidades mais ou menos fictícias, onde brilha uma vivida auréola de mistério, de lenda e de enigma.
Gostaria de re-lembrar que muitos foram os autores, filósofos e historiadores em Portugal que se debruçaram sobre a realidade Templária. Desde Alexandre Herculano e Abade Correia da Serra a Sampaio Bruno, passando por António Quadros e Agostinho da Silva.
Também Fernando Pessoa foi beber à tradição Templária, utilizando esse saber na sua Poesia e na sua Prosa, como poderemos ler o pequeno trecho retirado “Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal”, que diz: “... E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.” E segue com o lindíssimo poema de “Eros e Psique”, autêntico conto de fadas, onde muitos crêem ver descrita de forma poética a iniciação à Sabedoria das Idades.
Mais modernamente temos ainda as incontornáveis obras de Manuel J. Gandra e de Paulo Alexandre Loução, sem falar deste título agora disponível que nos oferece José Capêlo.
Não irei focar directamente a obra em questão, pois outros muito mais habilitados do que eu nas andanças da investigação histórica concerteza o farão. Contudo gostaria de abordar a extraordinária actualidade de algumas passagens da “Regra Primitiva da Cavalaria Pobre do Templo”, publicada em 1998 pelo Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica, em Mafra, sendo a responsabilidade da tradução do investigador Manuel J. Gandra.
Para analisarmos e tentarmos compreender a prática de um Cavaleiro da Ordem do Templo nada melhor do que estudarmos a Regra pela qual a vida monástica se regia hierarquicamente. Por outro lado teremos de usar com ponderação e bom senso a ferramenta da analogia, assim como o método, atrevo-me eu a chamar, da imaginação criadora.
Quase setecentos anos nos separam da data da extinção da Ordem, assim, que outros utensílios poderemos ter ao nosso dispor para compreendermos e para conseguirmos fazer reviver o espírito templário? Em termos de mentalidade, se arriscarmos a fazer a comparação, somente vislumbraremos um imenso fosso entre nós e aqueles longínquos tempos medievais. Poderemos tentar, isso sim, descobrir um fio condutor que eventualmente tenha acompanhado a evolução dos tempos e das épocas. Pensemos que os Templários talvez tenham sido os primeiros a antever e a tentar a criação de uma Europa Unida... em termos políticos... em termos económicos...em termos culturais...
Gostaria agora de chamar a vossa atenção para duas ou três notas sobre a Regra Primitiva atrás referida.
A vida de um cavaleiro templário era regida por três votos a que consagravam a vida, perante o Mestre, Jesus Cristo: Obediência, Pobreza e Castidade. O Silêncio e a Oração era-lhes caro, durante a sua vida quotidiana, fosse no refeitório, fosse no Capítulo, fosse a cavalgar em direcção ao campo de batalha.
Interessante o que a Regra 26, inserida no Capítulo “Da vida em comunidade” diz:
“Na Sagrada Escritura lê-se: A cada um segundo as suas necessidades. Por isso mandamos que não haja privilegiados, apenas exame das necessidades. O que de menos tiver necessidade dê graças a Deus e não se entristeça pelo que derem ao outro. O que precisar de mais humilhe-se pela sua fraqueza e não se ensoberbeça pela misericórdia que têm para com ele. Desta forma todos os membros viverão em paz. Proibimos a todos a singularidade nas abstinências e mandamos guardem a vida em Comunidade.”
Faço notar a importância da partilha e da não competição de um em relação ao outro, mas sim orientando as suas práticas quotidianas em direcção à ajuda mútua.
Da Regra 27, no capítulo “Dos mantos brancos dos irmãos”, sobressai o facto da cor branca aparecer como símbolo de pureza: “Sede puros porque eu o Sou”, podemos ler em “Levítico”, XIX-2. Contudo, existe subentendido que não só a pureza exterior é importante mas igualmente e principalmente a pureza do carácter do cavaleiro..
Já na Regra 35, “Do comportamento dos irmãos”, refere o texto a dado ponto: “... Como diz Jesus Cristo pela boca de David e é verdade: “Em me ouvindo logo me obedece.”, “Salmos”, XVII-45, numa referência directa ao Voto de Obediência. E mais à frente refere o texto: “Não vim fazer o meu gosto, mas o de quem me mandou.”, referência a S. João, VI-38,39.
Na Regra 55, “Da forma de receber os irmãos”, lemos: “Quando um cavaleiro ou qualquer outro secular quiser deixar o mundo e as suas vaidades e escolher a vida em comunidade no Templo, não se defira logo a sua petição, mas, como diz São Paulo: “Examine-se o espírito, se é de Deus.” [S. João, I Epístola, V-8].
Finalmente uma última referência, à Regra 65, “Das faltas leves”, que diz: “O Mestre, que tem o báculo para sustentar os fracos e a vara para castigar com zelo santo os delitos, não se resolva a castigar senão com o parecer do Patriarca e havendo-se encomendado a Deus...”.
Ao escolher este conjunto de Regras, cujo total é de 76, estou a fazer uma escolha, uma opção, estou a enquadrar-me dentro de uma mentalidade místico-religiosa que tão grata foi aos Templários. Interessa-me neste momento muito menos o seu aspecto de conquista e de guerra exterior na defesa dos caminhos da Terra Santa e do Santo Sepulcro, mas sim o seu aspecto de conquista e de evolução espiritual interior, através da imitação de Cristo, fazendo jus à sua divisa: “Non nobis, Domine, sed nomini tuo da gloriam”.
Ser Templário naquela altura, e ainda hoje – e partindo da hipótese que hoje em dia haverá ainda uma Ordem Templária autêntica, isto é, justificada pela Sucessão Apostólica de iniciações que remontem pelo menos à altura em que o último Mestre Templário instruiu e iniciou continuadores – era e é viver para o serviço da Humanidade. O Templário – e a partir daqui con-fundo propositadamente os Templários dos Séculos XII-XIV com a possibilidade do homem de hoje poder encarnar aquela responsabilidade e aquele compromisso, não obstante as diferenças de mentalidades – é um peregrino que vive para tornar o mundo melhor, dedicando-se totalmente à reparação do errado, protegendo o fraco e suprimindo o mal onde quer que se depare com ele. Contudo é-nos avisado constantemente, de forma velada ou desvelada: “Somente os puros têm sucesso”... os impuros não são verdadeiros Cavaleiros. Competirá a cada um de nós, no seu interior, saber o que é puro e o que é impuro, partindo do princípio de que poderemos todos nós ser Cavaleiros. A actividade exterior terá de ser a expressão da pureza interior.
Por isso a Cruz aparece no Caminho.
A Cruz simbolizará a purificação da própria natureza do Cavaleiro. Aponta em direcção ao sacrifício total, da entrega do eu ao não-eu, do ser ao não ser. Pelo sacrifício e pela purificação, o campo tornou-se preparado para a sementeira, só então poderá acontecer o desabrochar, o florescer.
Vários conceitos considero serem importantes para a compreensão da Ordem do Templo e que importa reflectir. Serão eles eventualmente susceptíveis de serem postos em prática nos dias de hoje, tal como o foram há séculos atrás:
1. o conceito de Comunidade, de entre-ajuda, em redor de um objectivo comum: o da reconstrução do Templo de Salomão;
2. o conceito de Iniciação [aos Mistérios] tendo em conta a já referida Sucessão Apostólica, nomeadamente da Igreja de João;
3. o conceito da Demanda e da Peregrinação, em que a busca do Santo Graal e a construção de uma rede estabelecendo ligações perenes entre os múltiplos Espíritos do Lugar, isto é, na reconstrução, por todas as zonas de influência da Ordem, de réplicas do Templo de Salomão, por exemplo: Charola do Convento de Cristo em Tomar ou, mais perto de nós, a Ermida de Santa Catarina de Monsaraz.

A Ordem do Templo, guardiã dos Caminhos e Lugares Santos, foi um anel na imensa corrente conciliadora do passado e do futuro. A Palestina, primeiro espaço em que se movimentou, constituía o pólo místico, ou charneira ideal entre dois mundos: o Oriental e o Ocidental. A sua missão visava a constituição de um Templo digno da Divindade: o mundo interior, condição dos homens livres e virtuosos, que se simbolizava pela imagem do templo de Salomão.

Para compreendermos a filosofia Templária ligada aos aspectos da iniciação e da regeneração humana, tenhamos em conta que:
1. “Não se é iniciado pelos outros; iniciamo-nos nós mesmos”.
2. “O iniciado está só ou, mais exactamente, é único, pois nenhum homem evolui em lugar de outro.”

A partir deste momento da minha reflexão, parto do princípio hipotético, mas não menos real, de que cada um de nós é um potencial cavaleiro Templário, isto é, está dentro das nossas possibilidades enquanto seres humanos de assumirmos os desafios, a procura, as batalhas travadas e a travar, com o objectivo de melhorar, fazer evoluir espiritualmente a Humanidade como um Todo Indivisível.

A Busca, no fundo, está em nós, o Caminho passa realmente pela nossa auto-compreensão. Desde os tempos imemoriais da História do Homem, em que este conseguiu, por direito, ter acesso ao Castelo do Graal. Aqui, onde brilha a Lanterna da Intuição poder-se-á completar a Aventura da Demanda quando, ao beber-se do Cálix Sagrado, a transmutação espiritual acontecerá e o homem-em-demanda, finalmente, se transformará, se transmutará, em Homem-Crístico, o Senhor Universal da Compaixão. Então, o microcosmos e o Macrocosmos voltam a identificar-se conscientemente, então, como o afirmou o Poeta, o homem

“Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.”

Mas, quando se inicia a Busca? Poderemos nós decidir conscientemente do início da Demanda? Poderemos nós querer iniciar o Caminho? Haverá métodos de procura? Haverá Iniciação porque tão só queremos ser iniciados? Contudo, sempre coube ao Cavaleiro ousar conquistar e dominar o Mundo...
Questões importantíssimas colocam-se-nos, tanto mais importantes quanto nós sabermos e estarmos conscientes da ilusão que nos domina a todos os níveis – físico, psicológico, espiritual...
É necessário sentir e viver o apelo interior, mais profundo, e para além de quaisquer definições ou justificações que possamos apontar aquando do seu aparecimento. Afinal as nossas mais autênticas aspirações são a conquista da felicidade, a compreensão global da Verdade, o conseguirmos vivenciar o Deus-em-nós, dependendo muito da idiossincrasia de cada um e do seu projecto de Vida, a qualidade do apelo e do impulso sentido, buscado e vivido.
A Via ou Busca Espiritual é a total disponibilidade, é a faculdade mais profunda do Ser que se predispõe a efectuar a recepção de energias espirituais no próprio momento em que se implementa e se desenvolve o estado de dádiva absoluta, inclusive da própria vida... tal como H. P. Blavatsky na sua obra “A Voz do Silêncio”: “Renuncia à vida se queres viver.”

A Busca começa em nós. O Deus tão procurado, tão aspirado, reside em nós. Como é afirmado no Chandogya Upanishad[1] (III-14): “Este Atman que reside no coração, é menor que um grão de arroz, menor que um grão de cevada, menor que um grão de alpista; este Atman, que reside no coração, é ao mesmo tempo, maior que a Terra, maior que a atmosfera, maior que o céu, maior que todos os mundos reunidos.”
Gostaria ainda de citar Paracelso que disse numa das suas obras: “Trazemos em nós o centro da natureza.”

Cada um de nós é realmente um centro que efectua a ligação do Céu à Terra, mais ou menos conscientemente, com mais ou menos intensidade, mas em contínua evolução, em permanente busca, onde impera o sofrimento ou a felicidade, a paz ou a guerra, o amor ou o ódio, ou então achamo-nos subitamente num estado onde não é possível encontrar quaisquer referências para se compararem os complementares, para se olharem as contradições, para se apontarem os conceitos antagónicos. É através desse estado, que acontece a autêntica percepção da Totalidade, no sentido da autêntica consciencialização da Unidade, da Vida e da Morte. Quando acontece, não a identificação do eu com o Caminho (auto-valorizando-se egoisticamente aquele), mas sim quando transparece uma autêntica Libertação, Transmutação Espiritual, do indivíduo em relação à Lei de Causa e Efeito que rege o desejo de viver. Lei desencadeadora de forças, de espectativas, de tensões, num espaço e num tempo limitados e limitadores em que o Desconhecido, o Atemporal, o Ilimitado e a Demanda (desinteressada dos prazeres comuns do quotidiano) não fazem sentido...
A Busca, a Demanda, autênticas, são Solidão... mas são igualmente estados de União e Comunhão. Ao nível da relação humana e da relação do Homem com o Universo, nos estados de consciência atrás referidos, não existem um sujeito e um objecto separados e isolados um do outro, não existe a separatividade ilusória, mas onde a cada um é conferido (implícita e objectivamente) um Estatuto de Ser e de Ser dotado de Palavra simultaneamente Criadora e Libertadora...

A Lei das Complementaridades e a ilusória Lei das dualidades, mais não são do que a manifestação de uma Unidade Inefável.
Não esqueçamos o famoso selo templário: dois cavaleiros montados num mesmo cavalo... empunhando a Espada, símbolo de acção enobrecedora e transformadora, a sua acção é justificada pela Razão e pelo Coração.
Finalmente termino recordando os Salmos (XXIV-3,4):
“Quem subirá na montanha do Senhor?
Quem há-de permanecer no seu lugar santo?
O que tem as mãos inocentes e o coração puro, o que não dirige os seus desejos à mentira, nem jura com engano.”

R.A. – Évora, 29 de Maio de 2003

[1] Os Upanishads, livros de carácter sagrado que, na Índia, são comentários explicativos dos Vedas.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Templário, o Sonhador, o Poeta... uma Homenagem


José Manuel Capêlo - 1946 / 2010

A MORTE É A CURVA DA ESTRADA

Em memória do Poeta, Templário de coração, José Manuel Capêlo.
Um poema simples para um homem simples, do nosso Fernando Pessoa:

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

Até Sempre!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Lucifer... o transportador da Luz...


A PLENITUDE DO TEMPO

Num trono de ferro enferrujado,
Além da mais remota estrela do espaço,
Eu vi Satã sentado, sozinho,
Velho e corcovado era o seu rosto;
Porque o seu trabalho fora feito, e ele
Descansava na eternidade.

E até ele, do Sol
Vieram seu Pai e amigo,
Dizendo, – Agora que a obra está feita,
O antagonismo terminou –
E guiou Satã para o
Paraíso que Ele conhecia.

Gabriel, sem carranca;
Uriel, sem lança;
Rafael desceu cantando,
Dando Boas-vindas ao seu antigo par:
E sentaram ao lado dele
Aquele que havia sido crucificado.”

James Stephens, “The Fulness of Time” –
Collected Poems, MacMillan and Co, Ltd., London, 1931

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Alentejo... um Mundo ainda a descobrir...


Pitura de Estrela Faria

SÓ POSSO SER UNIVERSAL SE EU CANTAR A MINHA ALDEIA - ATAHUALPA YUPANQUI

Canción del Trovador Errante

Fui un trovador errante
sombra por caminos sin almas
Mis riquezas
fueron aquellos sitios
donde aprendian mis canciones
quienes me las mostraban
vagabundos alrededor de sus hogueras
iluminaciones de cirqueros y perros
donde me convertia en una chispa transitória
disuelta en las remotas
antífonas que saben las cigarras

Mi pátria era la intempérie
los acosados campos de clorofila elemental
y fauna en eclosión
pero también era ceniza
miércoles de lloviznas masticando
la hogaza súcia y nutritiva que comparte
el proscrito ordinário
risueño y colosal
entre las tíbias ocasionales
piernas de um cisne amaestrado

Fui un trovador errante y ahora
tras el paso del tiempo
soy quien enciende las hogueras
quien convoca luciérnagas
y sabe el nombre de la chispa que salta
de la crepitación hacia la noche
cometa de un universo diminuto
donde mi mano es la de Diós
quiero decir
la de un colosalmente viejo vagabundo
com la mirada puesta en los senderos
com la memoria abierta a la única
riqueza que le espera

Susurraré mi historia a un trovador errante
sombra en busca de almas
para que la reparta junto a los fuegos
ocasionales tíbios que depara el camino
a todos quienes sueñan com un cisne
salvaje.

Sílvio Rodrigues Dominguez
1996, Madrid

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma Brinca de há muitos anos...


Brinca antiga com identitificação desconhecida

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - IX

Curiosidades sobre as Brincas de Entrudo de Évora: As peles dos bombos e caixas

Há muitos anos atrás, muito antes dos relativamente generosos apoios das autarquias para a realização das "brincadeiras" de carnaval, os participantes destes grupos de folgazões tinham de puxar pela imaginação para resolverem as dificuldades muito concretas que existiam. Uma delas era a de fazerem com que as peles das caixas e dos bombos, muitas vezes emprestados, outras vezes velhos instrumentos que passavam de geração em geração, estivessem operacionais de uns anos para os outros. A dificuldade principal era a de arranjarem algum dinheiro a mais para recuperarem aqueles instrumentos. Como este recurso era escasso e como, por vezes, surgiam dificuldades aparentemente insuperáveis sem ele, tinham os rapazes que dar voltas e reviravoltas à cabeça no sentido de as ultrapassarem.
Imaginemo-nos nas vésperas do tão ansiado "ensaio da censura" (ou "baile da censura", que coincidia com o baile do sábado de Carnaval), em que os velhos das brincas de outros tempos tinham o privilégio de ver e criticar o que estava mal no fundamento, na dicção [no cante] das décimas, nos enfeites das roupas e nas interpretações dos figurantes e, principalmente dos palhaços.
Imaginemos, pois, que mesmo nesta altura a pele de uma das caixas ou de um bombo se rompia e punha em causa a saída que para breve estava prevista. Era o desastre total! Contudo, imediatamente se delineavam alternativas para se superar as dificuldades aparentemente irresolúveis. Ainda durante aquela noite os rapazes espalhavam-se pelas redondezas a fim de conseguirem um gato ou um cão, conforme precisassem de peles para a caixa ou para o bombo! Nestas noites que antecediam o Carnaval e durante os três dias de festas, era ver as velhas a guardarem muito bem guardados os seus bichos de estimação, ainda assim não fosse a sua pele servir de bombo ou de caixa para a rapaziada. E ainda por cima escarneciam da desgraçada no dia da saída da brinca, pois que, quando passavam em frente da casa da dona do infeliz animal, os brincalhões não se coibiam de fazer uma grande algazarra a chamar pelo bicho, miando ou ladrando conforme fosse o caso, para grande desespero da dona do até aí desaparecido animal: tinha sido encontrado o seu destino!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Brinca antiga em actuação


Brinca de N.ª Sr.ª de Machede

BRINCAS DE ENTRUDO NA REGIÃO DE ÉVORA - VIII

AS BRINCAS EM MACHEDE

Depois da formação e da entrada no Largo ou na Rua, o Mestre da Brinca dirige-se à pessoa mais representativa desse lugar – o dono da rua. Neste caso concreto, o Sr. Marcos referido era, em 1959, o Sub-Regedor da Freguesia de Nª Sª de Machede, ferreiro de profissão e morador na rua da Igreja. O Regedor era o Sr. José Baptista, lavrador. Autoridades a quem a Brinca deveria apresentar-se em primeiro lugar para ter lugar a apresentação da censura... para poder ser apresentada posteriormente à população em geral.
A informação e os excertos de fundamento – fórmula inicial do mesmo – foram da autoria de Bernardino Manuel Pereira Piteira, já falecido, e a quem deixo as minhas mais respeitosas homenagens.

I

Senhor Marcos faça favor
Venho aqui à sua rua
Para pedir autorização sua
Porque o dono é o senhor
Quero-lhe pedir com amor
A sua boa licença
Quero que os que estão em nossa presença
Minha obra possam ouvir
Faz favor de me decidir
Para apresentar a pouca inteligência.

II

(Depois do dono da rua dar autorização para o desenrolar da função):

Quero lhe agradecer
Com um aperto de mão
Por saber que é o patrão
E a licença me ceder
Já lhe vou esclarecer
A minha pouca inteligência
Esta minha ’devertência
Vai agora observar
Não sei se irá gostar
E se não gostar tenha paciência

III

(O Mestre da Brinca dirigindo-se ao Grupo referindo que têm licença do dono da rua para apresentar e pedindo-lhes que se portassem bem):

Rapazes do coração
Não sei se estão a reparar
No que estive a publicar
Vejam lá o que farão
Reparem tomem atenção
Em tudo que vamos fazer
É isto que lhe quero dizer
Não se deixem distrair
É para todo o povo os ouvir
Ouvir e ficar a saber

IV

(Começa o Mestre da Brinca por se dirigir ao público explicando a sua intenção e qual o argumento, enredo, que irão desenvolver):

Sim senhor vou começar
Porque tenho a licença dada
Agradeço em nome da rapaziada
Porque me veio a calhar
Terão que me desculpar
Se fiz alguma coisa mal
Eu não sou profissional
Nem vivo com essa mania
É só para lhe dar alegria
Nos dias de Carnaval

V

O meu dito fundamento
Quero a todos esclarecer
Para no fim lhe dizer
O fundo é o casamento
Isto é neste momento
Que nós podemos pensar
Para uma relação tirar
Como se cai neste engano
Vamos todos ver este ano
Se por acaso tivermos vagar

VI

Um rapaz que não namora
Passa a vida sem alegria
Até que chegou o dia
Uma rapariga arranjou
Tudo para ele se voltou
Entrou então na mocidade
Teve aquela felicidade
De viver sempre enganado
E já não pára calado
Agora que não tem idade

VII

Para lhe esclarecer
De um rapaz não namorar
Se calha uma a aceitar
O que vai acontecer
Há logo muitas a querer
Porque ele já namora
Isto é a mocidade de agora
Só pendem para a vaidade
Não olham para quem tem bondade
Vão ver já pouco demora.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O Mestre da Brinca de N.ª S.ª de Machede, Bernardino Piteira


Srs. Bernardino Piteira e Pompeu, ao Degebe

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - VII

AS BRINCAS EM NOSSA SENHORA DE MACHEDE

Tal como as Brincas das quintas de Évora, é praticamente impossível determinar as origens das Brincas na aldeia de Nossa Senhora de Machede (concelho de Évora).
Este foi um texto realizado em Fevereiro de 1996, com base no depoimento do Sr. Bernardino Manuel Pereira Piteira, antigo Mestre de Brinca na aldeia de Nossa Senhora de Machede, de onde era natural e onde residia na altura da representação carnavalesca.
Parece-nos haver influências entre a aldeia e as quintas e bairros rurais da cidade de Évora.
O meio social onde este costume proliferava era o dos trabalhadores rurais das grandes casas agrícolas existentes à volta da cidade.
O Sr. Bernardino Piteira foi Mestre de Brinca em Nossa Senhora de Machede nos tempos da sua juventude, nos anos de 1959 e 1960, tendo na época 23-24 anos de idade. Na altura era famoso o Ti António Cigarra (Caeiro) como ensaiador e Mestre de Brincas, homem já com os seus 60 anos, assim como os irmãos Tiago e Francisco Vieira “Marafalha”, que, anteriormente a 1957, também foram Mestres de Brincas oriundas de N.ª S.ª de Machede. Em 1961 o Mestre da Brinca, última que se lembra de ter sido organizada na aldeia e em que já não participou, foi o Sr. Marcolino.
Por volta do ano de 1950, então com 13 anos de idade, lembra-se o Sr. Bernardino Piteira de ter ido à aldeia a Brinca do monte da Pereira (sito junto à estrada de Viana do Alentejo), ou pelo menos constituída por rapazes que eram trabalhadores rurais na herdade a que este monte pertencia. A Brinca apresentada denominava-se As Quatro Estações do Ano, tendo sido o Mestre o Sr. Linhol.
No monte da Pereira congregavam-se normalmente os trabalhadores rurais dos montes em redor: Vale de Moura, Pinheiros, Campo da Mira, Coelheiros, Bota, Chaminé, S. Marcos, Maceda e até do Bairro de Almeirim. Juntavam-se esporadicamente nesse Monte para a realização de Bailes nos casões e nos palheiros e, durante o Entrudo para os ensaios de Brincas, como foi o caso desse ano de 1950.
É bom lembrar que certas casas agrícolas chegavam a albergar nas suas casas da malta mais de 100 trabalhadores, provenientes de toda a região circundante. Daí que o monte da Pereira, porque se encontra geograficamente situado numa zona central - e nesses tempos a deslocação dos trabalhadores rurais fazia-se a pé -, pudesse servir de ponto de encontro de toda essa gente.
É de referir a extrema importância da tradição oral na preservação destes costumes cantados, musicados e coreografados pelas gentes do povo. O Sr. Piteira, em 1958, foi contactado por um amigo seu - o Sr. José Caetano, que nesse ano se assumiu como Mestre de Brinca - com o objectivo expresso de passarem para o papel as Décimas do Fundamento: foi o suficiente para se entusiasmar e, no ano seguinte, assumir o mestrado das Brincas de Machede.
É importante também referir que, tradicionalmente, as Décimas eram todas decoradas pelos participantes da Brinca, uma vez que o analfabetismo era, infelizmente, regra geral entre os trabalhadores rurais no Alentejo.
Os grupos de 14 ou 15 elementos, e até mais, iniciavam a sua actividade efémera pelo Ano Novo. Daí até ao Carnaval ensaiavam dois dias por semana, às quartas e aos sábados, depois do trabalho. Como todos eram trabalhadores rurais nas casas agrícolas dos arredores, largavam o serviço após o sol-posto (depois do “pôr do ar de dia”), e só então vinham, a pé, para a aldeia, cear e comparecer no ensaio. Este era normalmente efectuado em segredo num local escuso e relativamente distante da aldeia, a fim de salvaguardar de olhares e ouvidos indiscretos todo o enredo do fundamento e toda a construção coreográfica da Brinca, com o objectivo de melhor surpreenderem os seus conterrâneos nos dias de Entrudo.
Em 1959, o tema do fundamento foi «O Namoro/Casamento». Nesse ano, além da representação do referido fundamento a Brinca apresentou igualmente uma Contradança das Fitas. Mais complexa do que a da Pinha, esta contradança possuía um Mastro central de onde saía um conjunto variável de longas fitas, em número par, cujas extremidades os executantes agarravam e que, devido aos movimentos coreográficos levados a efeito, permitia a construção de um entrançado colorido.
Uma espécie de Contradança das Fitas era tradicionalmente executada no Baile da Pinha, por alturas da Primavera, apresentando-se um conjunto de longas fitas coloridas ligadas a uma pinha que, por sua vez, se encontrava presa ao tecto do salão de baile. Com a continuidade da assim denominada dança da pinha todas as fitas se desprendiam da referida pinha, excepto uma que era a premiada.
Contudo, tradicionalmente, o que a Brinca de Nª Sª de Machede costumava, em anos anteriores, apresentar como complemento à saída do fundamento, e para enriquecer visualmente toda a função, era uma Contradança dos Arcos, que eram construídos com ramos de silvas e enfeitados com papéis coloridos e armações de flores de papel, tal como eram enfeitados os chapéus dos seus executantes.
O resultado da execução destas Contradanças do Entrudo era um conjunto de lindos efeitos estéticos.
Refira-se, como curiosidade, que se encontra descrita uma Dança das Fitas, dançada por alturas do Entrudo em Moncorvo, nos anos 30, num trabalho publicado pelos etnólogos Santos Júnior e António Mourinho (Coreografia Popular Transmontana, “Trabalhos de Antropologia e Etnologia”, Fasc.4, Vol.23, Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, Porto, 1980), além da descrição de uma Dança Satírica ou Festa dos Rapazes de Felgar (Moncorvo), igualmente formada por alturas do Carnaval. Aqui também, tanto na primeira como na segunda dança, como ainda nas Brincas e Contradanças tradicionais de Entrudo na região de Évora, os elementos participantes são todos homens, travestindo-se quando necessário. De qualquer modo, é interessante notar o facto de em Trás-os-Montes a Dança das Fitas ser tradicional da época Entrudo e ser executada só por homens, utilizando os executantes, além do Mastro, também arcos enfeitados com papéis e flores de papel coloridos.

Os dias fortes para a saída da Brinca eram o Domingo Gordo e a Terça-Feira de Carnaval. E eles lá iam, depois de vestidos os seus trajos a rigor: eles envergando jaqueta, calça e cinta pretas, e elas com trajes de cores garridas, à minhota. Os músicos eram chefiados pelo acordeonista - o Ti Serra - e exibiam os seguintes instrumentos: bombo, caixa, castanholas, pandeiretas e ferrinhos.
É ainda de salientar a importância do bombo no anúncio da saída das Brincas pelo Carnaval. Nas noites silenciosas das aldeias dos anos 50, as pessoas conseguiam escutar as pancadas nos enormes bombos utilizados pelos foliões a uma distância considerável, inclusive identificando o local onde estavam a ser executadas: no Degebe, em Vale Côvo, na Garraia, nos Canaviais... todos topónimos de quintas de características rurais à volta da cidade de Évora, onde a tradição das Brincas se manteve até aos nossos dias.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Actuação de Brinca

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - VI

Segue-se uma amostragem de décimas de um fundamento escrito por Mestre Raimundo, “As Encantadas”. É apresentada a “fórmula” que o Mestre utiliza tradicionalmente para iniciar o fundamento, neste caso do Grupo das Encantadas.

MESTRE

1.ª

Senhor venho-o cumprimentar
Com a minha delicadeza
E pedir-lhe a fineza
Se nos deixa aqui apresentar
Nada podemos falar
Sem a sua autorização
O Senhor é o patrão
Eu cumpro o meu dever
Faz favor de me dizer
Se me á licença ou não

2.ª

Fico-lhe grato senhor
Que atenda o meu pedido
Eu fico-lhe agradecido
Muito obrigado pelo favor
Já tenho a rua ao dispor
Pois irei o sinal dar
O povo está a esperar
A nossa apresentação
Dou-lhe um aperto de mão
E vamos já iniciar.

3.ª

A todos muito boa tarde
A todos muita saúde
Que Deus os ajude
Com sua bondade
Esta mocidade
Vem aqui alegremente
Cumprimentar toda a gente
De dentro do coração
Peço-lhe muita atenção
E não cheguem muito para a frente

4.º

Isto é um divertimento
Que nós mandámos fazer
Mas devem de gostar de vir
Este nosso entretimento
Não é um fundamento
Com toda a perfeição
É a revolta de uma nação
É a vida que foi vencida
Com um filho anda fugida
E muitos assuntos se verão.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O Mestre Raimundo


O Senhor Raimundo José Lopes no Bairro de Almeirm (Évora)

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - V

OS FUNDAMENTOS DO SENHOR RAIMUNDO JOSÉ LOPES

Natural de Évora, onde nasceu na Travessa do Cavaco a 3 de Março de 1918, trabalhou até aos 22 anos de idade com o pai em tarefas do campo, foi ainda aprendiz de sapateiro, trabalhou nas pedreiras a partir pedra com um marrão, etc.. Finalmente, aos 22 anos empregou-se como cantoneiro na J.A.E., onde permaneceu até atingir a idade da reforma.
Desde a sua meninice que gostou de fazer versos: quadras e décimas, principalmente. Foi com 12 ou 13 anos que compôs o primeiro fundamento, intitulado Branca de Neve e os Sete Anões, em quadras rimadas a 4 pontos.
Era à luz do candeeiro a petróleo que o Mestre Raimundo compunha os seus fundamentos, rabiscando nos seus papéis até altas horas da madrugada, pois enquanto os rapazes das quintas esperavam o fundamento para começarem os ensaios das suas brincas. E, há cinquenta anos atrás, eram muitas as quintas do termo de Évora que representavam os seus fundamentos durante os dias do Entrudo.
Eis os nomes de alguns dos fundamentos passados para o papel pelo Mestre Raimundo, uns imaginados totalmente por ele, outros inspirados em algum livro, conto popular, filme ou peça de teatro:

Branca de Neve e os Sete Anões
O Bocage
A Fugitiva
A Princesa Helena
O Camões
A Princesa Sanguinária
D. Pedro I - O Justiceiro
Os Alcoólicos
A Rosa do Adro
Pedro Cem
O Corsário
O Grupo Sagrado
O Grupo das Aves Reais
João de Calais
O Grupo da Escravidão
As Encantadas
Giraldo Sem Pavor
O Lavrador
A Namoradeira
O Grupo Real
João Soldado
D. Inês de Castro
O Príncipe com Orelhas de Burro
(...)

O Sr. Raimundo tem grande importância para a compreensão e para a história das Brincas e do Carnaval de Évora, por um lado pela abundância de material produzido – dezenas e dezenas de fundamentos –, por outro, porque a sua intervenção poética veio re-caracterizar a própria estrutura das Brincas e dos fundamentos, conferindo-lhes um enredo baseado em histórias ou na História, complexificando o conjunto formado também pelas contradanças e pelas canções e décimas de apresentação e de despedida.
A principal dificuldade do investigador destas matérias é o facto dos fundamentos, que existiram anteriormente à actividade de escrita e de registo do Sr. Raimundo, pertencerem a uma tradição eminentemente oral, não havendo, portanto, memórias escritas para que eventualmente servissem de comparação.
Contudo, é importante frisar a importância da tradição oral na produção dos enredos dos fundamentos. O Sr. Raimundo foi muito influenciado pelos contos populares tradicionais, sendo esta uma realidade instalada na sua maneira de ser e na vivência que faz deste mundo do maravilhoso nos poetas populares. Referia ele a certa altura, quando se encontrava a explicar um fundamento: «Antigamente, em remotas eras, os reis fadavam os filhos...».

No dia 31 de Dezembro de 2003, na noite em que tradicionalmente, durante o Baile de Ano Novo, os rapazes combinavam o compromisso de saírem com uma Brincadeira pelo Entrudo, deixou-nos o Mestre Raimundo.

Com a sua morte, virou-se mais uma importante página no livro da cultura eborense. Estas são páginas que possuem uma particularidade muito própria: não poderão ser passadas novamente! Uma vez passadas, ficarão irremediavelmente a pertencer a um tempo que já não é o nosso. Hoje as Brincas ainda existem, ainda saem à rua durante o Entrudo, mas por quanto tempo mais poderemos ainda ter o privilégio de as ver praticamente como elas actuavam há quarenta ou cinquenta anos?!

Fica desde já formulado um apelo aos actuais e antigos Mestres de Brincas para que façam reviver o espírito folião de Mestre Raimundo através da sua criação poética, pois ele perdurará e estará connosco enquanto as sua obras, os seus fundamentos, as suas décimas, não forem votadas ao esquecimento.

Com o desaparecimento do Mestre Raimundo, justifica-se plenamente aquele dito popular de que “Cada vez que um velho morre/ É uma biblioteca que se encerra”, pois que ele foi o criador e o depositário dos fundamentos, das décimas que serviram de enredo às Brincas de Carnaval de Évora, que, de um modo ininterrupto, vêm alegrando, vêm dando profundidade e consistência poética e humana ao nosso Entrudo desde o mais longínquo das nossas memórias escritas e
orais.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

As "Brincas" de Évora em 2009

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - IV

O ESPAÇO CÉNICO

O espaço cénico da brinca é, digamos assim, tratado em três tempos diferentes mas complementares: em primeiro lugar, temos o tempo em que se inicia com a formação no local de representação até ao início do fundamento; o segundo tempo consiste na dramatização do próprio fundamento; o terceiro é constituído com os restantes elementos (contradanças, formações, rodas, etc.) até ao fim da brinca propriamente dita.
No entanto esta divisão agora proposta é artificial, pois que no decorrer da brinca as divisões existentes, marcadas fortemente pela bateria, são mais factores dinamizadores da acção do que marcações para “mudança de acto”.
O fundamento propriamente dito, isto é, a dramatização, inicia-se depois de todos os elementos da brinca se colocarem em círculo, excepto os palhaços, que não possuem lugar fixo. Os personagens só saem do seu lugar do círculo aquando da sua deixa, dirigindo-se então em direcção ao seu ou aos seus interlocutores. Ao terminar o fundamento dispõem-se novamente em círculo.
As diferentes coreografias geometrizam o espaço com círculos, quadrados, sinos-saimão, estrelas, meias-luas, etc., desenhos estes conotados com certos elementos tradicionais de cariz eventualmente mágicos e propiciatórios. A geometrização é principalmente elaborada durante as contradanças, sua formação e desformação.
É importante insistirmos aqui no espaço circular de representação do fundamento. Estaremos perante reminiscências de ritos solares de épocas remotas? Segundo autores como Mircea Eliade, o espaço circular da representação é o espaço de festa por excelência, onde acontece, cada vez que é provocada, a recriação de um espaço sagrado, onde tem lugar a renovação cíclica da própria vida, nas suas vertentes natural e cultural.
O exemplo que vamos descrever de seguida, o da estruturação do espaço cénico de uma brinca, não poderá, como é óbvio, ser extensivo, na sua forma, a representação de outras brincas nos seus pormenores, mas sim nos seus aspectos mais gerais de estruturação dos conteúdos e de veiculação de uma mensagem simbólica subjacente à própria dramaturgia.

I

[Chegada ao local]
Formação
bateria
Pedido de autorização ao dono do lugar, pelo Mestre
Contradança
Roda com o Mestre ao centro
Apresentação e breve explicação do fundamento
bateria
Apresentação dos personagens
bateria

II

Desenvolvimento do Fundamento
Fim do Fundamento

III

Roda com o Mestre ao centro
Décima de agradecimento aos presentes
Peditório de auxílio para as despesas efectuadas
Brincadeira dos Palhaços
bateria
Valsa
bateria
Décima à Bandeira
Canção em coro (sinopse do Fundamento)
Agradecimento de despedida
Formação
Contradança de despedida
Despedida e agradecimento ao dono do lugar

Finaliza a função em casa do dono do lugar, tomando todos os participantes da Brinca uma bebida oferecida por este e convivendo todos durante uns momentos. Como o local de representação escolhido é quase sempre junto de uma venda ou taberna, normalmente é o proprietário deste estabelecimento que desempenha o papel prestigiante de dono do lugar.
É claro que, de brinca para brinca, existem muitas variantes, não sendo rígida a estruturação de todo o conjunto cénico.

Existindo, à partida, um fundamento, a Brinca organiza-se e fica pronta a sair à rua num mês e meio (em média).
Iniciam-se os contactos preliminares na noite do baile do Ano Novo, congregando-se o grupo à volta do Mestre. Termina a função, desfazendo-se a brinca, na Quarta-Feira de Cinzas, com o tradicional Enterro do Entrudo, para voltarem a reunir-se no ano seguinte, demonstrando deste modo o carácter cíclico bastante bem demarcado e calendarizado.
O dinheiro conseguido nos peditórios é principalmente usado para cobrir as despesas com os adereços e, se for caso disso, com o acordeonista. Se sobrar alguma importância é organizado um convívio entre todos os elementos.
Por norma ensaiam dois a três dias por semana, chegando a ensaiar todos os dias na semana imediatamente anterior ao Carnaval. Estes ensaios são normalmente - segundo a tradição - envolvidos no maior, digamos assim, secretismo, pois o despique entre as diferentes Brincas é enorme - não só no que diz respeito ao fundamento a apresentar, mas igualmente em relação aos fatos usados, bandeira e sua decoração, etc. O ensaio geral é tradicional que se realize no local de origem da brinca, durante o baile de Sábado de Carnaval, fazendo-se a sua primeira representação em público sob os olhares críticos mas construtivos dos velhos das brincas de outros tempos.
Resta dizer que, durante os meses de ensaios para levantarem a brinca, esta funciona como um importantíssimo factor de coesão social de grupo, uma forma de animação cultural comunitária por excelência.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Ritmo, movimento, concentração


O Mestre da "Brinca"

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - III

OS ELEMENTOS-FORÇA CONSTITUINTES

A. O Palhaço
«A alma da brinca, para quem a representa, é o fundamento; e para quem a presencia são os palhaços», segundo depoimento de Mestre de Brinca.

É o Faz-Tudo. Serve de ponto, serve igualmente para tapar os enganos dos companheiros. A sua fala é de improviso.
Tem uma função essencialmente desorganizadora e anomista na ordem dramática decorrente durante a representação. É um provocador de situações absurdas, irracionais, cómicas...
É, por outro lado, o elemento dinâmico que intervém ao longo de todo o tempo da representação. É o grande elo de ligação entre o círculo onde decorre aquela representação e o próprio povo que assiste e que, subitamente, se encontra envolvido no processo dramático, é obrigado a isso pelas brincadeiras dos palhaços, transferindo para o referido espaço cénico os seus sentimentos mais profundos e as suas reacções mais primárias, mais espontâneas.
Inserido e simultaneamente elemento exógeno de toda a dramaturgia, o palhaço intervém para quebrar as tensões e as próprias mensagens veiculadas pelos personagens ao longo da narração e, especialmente, nos momentos críticos de grande tragédia vivencial.

«Os palhaços fazem tudo ao contrário e quanto mais ao contrário mais graça têm.»

O palhaço é o elemento, digamos assim, que retira o eventual excesso de densidade dramática da acção, conferindo-lhe uma frescura e um à vontade frequentemente excessivo, por vezes obsceno para a moralidade e o sistema de regras em vigor, o senso comum, mas, é Carnaval...

B. O Mestre

Tradicionalmente, é visto como uma autoridade assumida e reconhecida enquanto tal pelos restantes companheiros. Em princípio, terá recebido o testemunho de um mestre mais antigo.
É, regra geral, o ensaiador. A sua função é mandar a música, orientar a brinca, explicar, apresentar e agradecer ao dono do lugar durante a estadia e representação do seu grupo nesse local. É o que responde ao despique - em décimas -, com outro mestre, se outra brinca se cruzar com a dele, se não chegarem a bom termo as necessárias negociações para esclarecer e definir de qual brinca actuará em primeiro lugar em dado local.
Possui gestos estereotipados que marcam o ritmo da música, através de movimentos mais os menos bruscos, mas ritmados e cadenciados, das mãos, segurando por vezes fitas coloridas.
Ao som de um apito, manda executar as várias marcações das contradanças e das outras movimentações coreográficas.

C. A Bandeira

A brinca reúne-se [por vezes] em redor de uma bandeira, mastro ou estandarte, por vezes ostentando a bandeira nacional e o nome da brinca, enfeitado artisticamente com armações diversas, papéis coloridos, fitas de seda, etc., dependendo a decoração, em última análise, do gosto e das possibilidades dos elementos constituintes do grupo.
A bandeira é um factor de factor de coesão do grupo e emblema da Brinca, eixo-força do círculo da dramatização do fundamento.
Poderemos considerá-la enquanto manifestação simbólica do axis mundi, ainda existente em termos residuais na nossa contemporaneidade; e representação de reminiscências paradigmáticas do centro do mundo, num espaço tradicionalmente sagrado onde se observa, se faz reviver o drama da criação/recriação na natureza e no mundo; da passagem cíclica do Caos para o Cosmos... do Inverno para a Primavera.
Este conceito sagrado está antropologicamente conotado com o sentido de primordial, puro, pertencente às origens fabulosas do paraíso perdido de todos os grandes sistemas de Mitos Cósmicos. Este conceito subentende, por sua vez, e necessariamente, um centro que, em todas as actualidades, em todas as épocas, faça a ligação simbólica, transportando os participantes do rito para aquele tempo sem história em que os homens eram deuses.

D. Ornamentos tradicionais

Os chapéus possuem uma armação de arame que suporta os ornamentos, que vão das rosas de papel colorido às fitas de seda de várias cores, e que se cruzam sobre o peito dos vários intervenientes da brinca.
É claro que os palhaços possuem as vestimentas desregradas costumeiras. Por vezes até com adereços obscenos, que utilizam durante as brincadeiras. Eventualmente poderá a brinca sair com um guarda-roupa completo, de acordo com cada um dos personagens do fundamento.

E. Instrumentos musicais

Os instrumentos tradicionalmente utilizados pelas brincas são o bombo, a caixa, o acordeão e a concertina, a pandeireta, a guitarra, a ronca, os ferrinhos e as castanholas, variando de grupo para grupo, consoante os meios humanos que cada mestre consegue mobilizar para a sua brinca.
Papel de grande importância tiveram as Associações com vocações artísticas e musicais, como era o caso da Escola dos Amadores de Música Eborense e da Sociedade Recreativa e Dramática Eborense, que há cinquenta anos atrás estavam sediadas, respectivamente, na Rua do Raimundo e no Pátio de S. Miguel. Estas Associações forneciam aos músicos populares participantes nas Brincas, mediante o pagamento de pequena taxa de aluguer, instrumentos musicais diversos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

"Brinca" perfilada para a fotografia...




"Brinca" dos Canaviais - Anos 80 em Valverde

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - II

AS ORIGENS
É difícil definir-se historicamente a origem deste tipo de manifestação cultural tradicional. Alguns autores apontam o século XVIII, outros fazem remontar a sua origem à época e aos autos de Gil Vicente, no século XVI, outros ainda há que não arriscam quaisquer datas para a sua origem, devido ao simbolismo subjacente na sua coreografia e à sua estruturação espacial, fazendo-as remontar a tradições mítico-religiosas ancestrais, nomeadamente inseridas em contextos de culturas e vivências de forte conotação agrária.
O problema está em saber destrinçar a forma do conteúdo. Pois que, se formalmente estas brincas por nós hoje conhecidas, podem ser eventualmente recentes no tempo, os seus conteúdos poderão sem dúvida alguma ser encontrados entre as grandes representações míticas universais.

As Brincas, hoje

A sua proveniência continua a ser os bairros periféricos e as freguesias rurais de Évora. São, pois, caracterizadas por uma marcada ruralidade original.
As freguesias de N.ª S.ª de Machede, N.ª S.ª da Tourega, Graça do Divôr e Canaviais; os actuais bairros como o Degebe, a Garraia, Almeirim, S.to António, Peramanca, são alguns exemplos de que as Brincas chegaram aos dias de hoje. No ano de 1994, estavam ainda todas em actividade.
Luís de Matos, em trabalho publicado no I Congresso sobre o Alentejo (Semeando Novos Rumos, III Volume, Évora, Outubro de 1985, pp.1261-62), refere, baseado em investigações de campo, que há umas dezenas de anos os locais de representação das Brincas eram as quintas, nomeadamente: dos Apóstolos, do Ourives, do Chéu-Chéu, dos Meninos Órfãos, da Rafaela, das Pimentas, das Torcidas, o lugar da Machoca, etc.. Com o desaparecimento da importância das quintas e de toda a sua lógica vivencial, os locais de representação foram mais recentemente localizados nalguns bairros. Nos anos 80, e ainda segundo o mesmo estudo de Luís de Matos, esses bairros eram: Canaviais, Frei Aleixo, Almeirim, S.ta Maria, S.to António, Senhor dos Aflitos, S.to Antonico, Degebe (Machado), Louredo (Venda do Pascoal e do Alface), Barraca de Pau.
O seu público privilegiado são os habitantes das próprias zonas de origem, simultaneamente de pertença e de referência, ou de outras zonas com características semelhantes.
O local de representação é a rua, ao ar livre, ou em casão agrícola cedido para o efeito.
Tradicionalmente, as Brincas eram constituídas somente por homens, travestindo-se, se necessário, para o desenrolar do fundamento, numa média de quinze a vinte: um mestre, dois ou três palhaços (os faz-tudos), meia dúzia de músicos, onde a bateria (bombo e caixa) e a concertina têm um papel fundamental, um porta-estandarte e os restantes figurantes para a execução/representação do fundamento.
Convém clarificar que se denomina brinca o grupo de homens ou rapazes que se organizam anualmente (ciclicamente) para a construção e execução de uma dramatização popular durante a época festiva do Carnaval. No entanto, poderá igualmente entender-se por brinca toda a acção dramatizada (o fundamento), musicada (a contradança, a valsa, a canção, etc.) e coreografada (as diferentes formações que têm lugar ao longo de toda a acção: as rodas, etc.). que esse grupo assume nas várias representações que realiza.
No que diz respeito ao fundamento, em termos formais é constituído por décimas de versos rimados. É a alma da brinca.
Um autor de fundamentos - importante pela quantidade e qualidade de fundamentos escritos - o Sr. Raimundo José Lopes, é sobejamente conhecido nos meios do Carnaval tradicional da região de Évora, chegando um só fundamento dos seus a reunir mais de dois mil versos, estes, por sua vez, organizados em décimas.
O fundamento, na perspectiva do citado autor popular, apresenta um enredo, com princípio, meio e fim, podendo este focar diferentes realidades sócio-culturais e históricas. Diversificada poderá ser a temática desse enredo: episódios da Bíblia, da História de Portugal, da realidade social alentejana, da guerra, contos populares tradicionais, do comum quotidiano, entre outros.

«Os antigos é que prestavam atenção às brincas e as compreendiam. Os da cidade não as percebem e chamam-nos pategos.»

Com este depoimento de um mestre de brinca, põe-se-nos a questão: poderá o homem citadino apreender o sentido mais profundo destas manifestações culturais da tradição oral?
De facto, trata-se de uma forma muito rica e complexa de cultura popular, com as manifestações artísticas dos seus componentes: poetas, músicos, encenadores, coreógrafos, artistas plásticos de cariz popular, criando ou recriando eles próprios os versos do fundamento e as músicas executadas.

As mensagens da brinca abalam de facto as estruturas sociais mais sólidas: a família, a autoridade, a igreja, o poder instituído, a moralidade e os bons costumes.
Se o fundamento, na brinca, representa a narração de uma situação normal (normalizada) que caracteriza toda uma ordem quotidiana, a principal figura da brinca - o Palhaço/o Faz-Tudo - personifica a desordem, o caos, o diabo, a loucura, em suma, a ausência de ordem, de lei, de respeito, realizando ele, no decorrer de toda a dramatização, a inversão total dos valores veiculados pelos seus restantes companheiros, que fazem os possíveis e os impossíveis para o ignorar - ele, para eles, não existe...
Deste modo, será legítimo afirmar que o Faz-tudo põe em causa tudo, inclusive a própria brinca e o seu fundamento.
É exactamente por este emaranhado de situações, mais ou menos complexas, que só faz verdadeiro sentido nós encararmos a brinca no contexto mais amplo do próprio Carnaval, inserido este no calendário das principais Festas Cíclicas (Agrárias) Anuais. Não o Carnaval domesticado, legitimado, vendido, bem educado, isto é, o Carnaval citadino e urbano, mas sim aquele tempo de festa, de jogo, onde a transgressão, a loucura, o imoral deveriam ter sido, em eras passadas, os únicos valores, ou melhor, anti-valores aceites num tempo e num espaço de renovação, de exaustão do velho e do gasto, para que o novo (ou renovado) pudesse emergir, ressuscitar, germinar com o aparecimento da Primavera. Daí o denominar-se, tradicionalmente, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a génese da organização natural e humana.
Em tempo de Carnaval todos teriam, simultaneamente, de se constituir enquanto autores, actores e espectadores das brincadeiras das trupes - no nosso caso concreto das brincas - e demais grupos errantes. A censura oficial e policial existente era menosprezada. A participação era total e sincera, o riso era o advogado de acusação no julgamento da autoridade, da moral e da lei oficiais, reguladoras da vida social nos restantes períodos do calendário.