sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - II

AS ORIGENS
É difícil definir-se historicamente a origem deste tipo de manifestação cultural tradicional. Alguns autores apontam o século XVIII, outros fazem remontar a sua origem à época e aos autos de Gil Vicente, no século XVI, outros ainda há que não arriscam quaisquer datas para a sua origem, devido ao simbolismo subjacente na sua coreografia e à sua estruturação espacial, fazendo-as remontar a tradições mítico-religiosas ancestrais, nomeadamente inseridas em contextos de culturas e vivências de forte conotação agrária.
O problema está em saber destrinçar a forma do conteúdo. Pois que, se formalmente estas brincas por nós hoje conhecidas, podem ser eventualmente recentes no tempo, os seus conteúdos poderão sem dúvida alguma ser encontrados entre as grandes representações míticas universais.

As Brincas, hoje

A sua proveniência continua a ser os bairros periféricos e as freguesias rurais de Évora. São, pois, caracterizadas por uma marcada ruralidade original.
As freguesias de N.ª S.ª de Machede, N.ª S.ª da Tourega, Graça do Divôr e Canaviais; os actuais bairros como o Degebe, a Garraia, Almeirim, S.to António, Peramanca, são alguns exemplos de que as Brincas chegaram aos dias de hoje. No ano de 1994, estavam ainda todas em actividade.
Luís de Matos, em trabalho publicado no I Congresso sobre o Alentejo (Semeando Novos Rumos, III Volume, Évora, Outubro de 1985, pp.1261-62), refere, baseado em investigações de campo, que há umas dezenas de anos os locais de representação das Brincas eram as quintas, nomeadamente: dos Apóstolos, do Ourives, do Chéu-Chéu, dos Meninos Órfãos, da Rafaela, das Pimentas, das Torcidas, o lugar da Machoca, etc.. Com o desaparecimento da importância das quintas e de toda a sua lógica vivencial, os locais de representação foram mais recentemente localizados nalguns bairros. Nos anos 80, e ainda segundo o mesmo estudo de Luís de Matos, esses bairros eram: Canaviais, Frei Aleixo, Almeirim, S.ta Maria, S.to António, Senhor dos Aflitos, S.to Antonico, Degebe (Machado), Louredo (Venda do Pascoal e do Alface), Barraca de Pau.
O seu público privilegiado são os habitantes das próprias zonas de origem, simultaneamente de pertença e de referência, ou de outras zonas com características semelhantes.
O local de representação é a rua, ao ar livre, ou em casão agrícola cedido para o efeito.
Tradicionalmente, as Brincas eram constituídas somente por homens, travestindo-se, se necessário, para o desenrolar do fundamento, numa média de quinze a vinte: um mestre, dois ou três palhaços (os faz-tudos), meia dúzia de músicos, onde a bateria (bombo e caixa) e a concertina têm um papel fundamental, um porta-estandarte e os restantes figurantes para a execução/representação do fundamento.
Convém clarificar que se denomina brinca o grupo de homens ou rapazes que se organizam anualmente (ciclicamente) para a construção e execução de uma dramatização popular durante a época festiva do Carnaval. No entanto, poderá igualmente entender-se por brinca toda a acção dramatizada (o fundamento), musicada (a contradança, a valsa, a canção, etc.) e coreografada (as diferentes formações que têm lugar ao longo de toda a acção: as rodas, etc.). que esse grupo assume nas várias representações que realiza.
No que diz respeito ao fundamento, em termos formais é constituído por décimas de versos rimados. É a alma da brinca.
Um autor de fundamentos - importante pela quantidade e qualidade de fundamentos escritos - o Sr. Raimundo José Lopes, é sobejamente conhecido nos meios do Carnaval tradicional da região de Évora, chegando um só fundamento dos seus a reunir mais de dois mil versos, estes, por sua vez, organizados em décimas.
O fundamento, na perspectiva do citado autor popular, apresenta um enredo, com princípio, meio e fim, podendo este focar diferentes realidades sócio-culturais e históricas. Diversificada poderá ser a temática desse enredo: episódios da Bíblia, da História de Portugal, da realidade social alentejana, da guerra, contos populares tradicionais, do comum quotidiano, entre outros.

«Os antigos é que prestavam atenção às brincas e as compreendiam. Os da cidade não as percebem e chamam-nos pategos.»

Com este depoimento de um mestre de brinca, põe-se-nos a questão: poderá o homem citadino apreender o sentido mais profundo destas manifestações culturais da tradição oral?
De facto, trata-se de uma forma muito rica e complexa de cultura popular, com as manifestações artísticas dos seus componentes: poetas, músicos, encenadores, coreógrafos, artistas plásticos de cariz popular, criando ou recriando eles próprios os versos do fundamento e as músicas executadas.

As mensagens da brinca abalam de facto as estruturas sociais mais sólidas: a família, a autoridade, a igreja, o poder instituído, a moralidade e os bons costumes.
Se o fundamento, na brinca, representa a narração de uma situação normal (normalizada) que caracteriza toda uma ordem quotidiana, a principal figura da brinca - o Palhaço/o Faz-Tudo - personifica a desordem, o caos, o diabo, a loucura, em suma, a ausência de ordem, de lei, de respeito, realizando ele, no decorrer de toda a dramatização, a inversão total dos valores veiculados pelos seus restantes companheiros, que fazem os possíveis e os impossíveis para o ignorar - ele, para eles, não existe...
Deste modo, será legítimo afirmar que o Faz-tudo põe em causa tudo, inclusive a própria brinca e o seu fundamento.
É exactamente por este emaranhado de situações, mais ou menos complexas, que só faz verdadeiro sentido nós encararmos a brinca no contexto mais amplo do próprio Carnaval, inserido este no calendário das principais Festas Cíclicas (Agrárias) Anuais. Não o Carnaval domesticado, legitimado, vendido, bem educado, isto é, o Carnaval citadino e urbano, mas sim aquele tempo de festa, de jogo, onde a transgressão, a loucura, o imoral deveriam ter sido, em eras passadas, os únicos valores, ou melhor, anti-valores aceites num tempo e num espaço de renovação, de exaustão do velho e do gasto, para que o novo (ou renovado) pudesse emergir, ressuscitar, germinar com o aparecimento da Primavera. Daí o denominar-se, tradicionalmente, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a génese da organização natural e humana.
Em tempo de Carnaval todos teriam, simultaneamente, de se constituir enquanto autores, actores e espectadores das brincadeiras das trupes - no nosso caso concreto das brincas - e demais grupos errantes. A censura oficial e policial existente era menosprezada. A participação era total e sincera, o riso era o advogado de acusação no julgamento da autoridade, da moral e da lei oficiais, reguladoras da vida social nos restantes períodos do calendário.

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