quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

AS BRINCAS DO ENTRUDO EM ÉVORA - I

O TEMPO DO CARNAVAL OU DO ENTRUDO
Tempo de festa, de jogo, onde a «transgressão», a «loucura», o «imoral» e a «paródia» deveriam ter sido, em eras remotas, os únicos valores aceites de um tempo de renovação, de exaustão do «velho» e do «gasto» para que o «novo» pudesse ressuscitar, germinar com a Primavera. Talvez daí o facto de se chamar, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) a esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a génese cíclica da transformação natural e da organização social.
Entre os homens, em tempo de Carnaval ou de Entrudo todos teriam, simultaneamente, de ser autores, actores e espectadores das «brincadeiras» e das «mascaradas» das trupes errantes. A censura do povo não existia ou estava convenientemente recalcada durante estes dias de festa. A participação era total e sincera, o riso era o advogado de acusação no julgamento da Autoridade, da Moral e da Lei oficiais e vigentes, reguladoras da vida social e cultural nos restantes períodos do Calendário anual.
O Carnaval para ser verdadeiramente Carnaval teria de ser assumido por cada indivíduo, enquanto festa colectiva e enquanto festa possuidora de uma consciência de ruptura com o convenientemente «arrumado», «estereotipado», «normalizado», «catalogado», «convencionado», onde a espontaneidade e a alegria gratuitas reinassem e fizessem dos grupos humanos «unidades desorganizadas» onde a única regra aceite seria a da proibição de tirar a máscara ao parceiro e revelar a sua identidade; e ainda, paradoxalmente, não aceitar quaisquer regras anteriormente estabelecidas, aceitando o imprevisto e o desconhecido como a única realidade a ser vivida.

As Brincas de Évora
As Brincas são das manifestações tradicionais mais representativas do Carnaval de Évora. Consistem numa manifestação cultural tradicional, ainda hoje viva, sendo únicas pela forma e pelo conteúdo, pela originalidade e pela criatividade. São um subgénero da dramatização popular, musicadas e coreografadas, tendo por base um fundamento constituído por um “corpus” de décimas, tão características do Alentejo, e um dos pilares das oralidades da cultura popular alentejana.

A preservação desta manifestação tradicional, por parte dos responsáveis das instituições culturais autárquicas, tem consistido numa atenção redobrada aos dinamizadores das Brincas, dando-lhes o apoio necessário para a construção da coreografia da função. Nos últimos anos têm saído Brincas nos Bairros dos Canaviais e Almeirim e ainda na freguesias de Nossa Senhora de Machede e Graça do Divôr.

Por outro lado, há que reconhecer, tivemos a felicidade de ainda termos conhecido e contactado a pessoa que desde os anos 30 do século passado escreveu os fundamentos em décimas que são a “alma”, das Brincas: estamos a falar do Senhor Raimundo José Lopes, residente, durante largos anos, no Bairro de Almeirim, até à sua morte no ano de 2003. Voltaremos mais à frente a falar desta extraordinária personagem.
Não obstante, a melhor preservação destas tradições orais é o seu estudo e a sua compreensão, áreas de trabalho que nos encontramos há alguns anos a fomentar e a realizar, e que pensamos continuar, em prol da dignificação da cultura popular.

Poderemos desde já referir que encaramos as Brincas carnavalescas da região de Évora como reminiscências de antigos costumes comunitários, que uma cultura natural do povo rural das quintas dos arredores da cidade e dos grandes montes agrícolas circundantes manteve e preservou ao longo dos tempos.
Atrevendo-nos a teorizar um pouco, poderemos considerar a cultura natural como aquela manifestação sociocultural que permite, entre as pessoas e os grupos, o entendimento e a escuta de uns em relação aos outros, caracterizada pela espontaneidade e independência, além e aquém dos conhecimentos intelectuais e eruditos, dos conhecimentos técnicos e teóricos, etc.
A cultura natural terá mais que ver com as vivências e as experiências acumuladas por cada um; com as capacidades que cada indivíduo possui, em si próprio, para responder positivamente aos desafios da vida; com as necessidades de todos para a construção, juntamente com os seus semelhantes, de um mundo melhor, mais verdadeiro, mais belo e mais sensível...
Será esta cultura natural que se encontra, em última análise, na raiz da compreensão da própria natureza humana, em termos gerais, e no emergir consciente de uma identidade cultural determinada, com características idiossincráticas próprias – quintaneiros, rurais, alentejanos, eborenses, etc…

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