quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Mestre, o Amigo António Telmo


António Telmo usando da Palavra...

ADEUS ANTÓNIO TELMO! ATÉ BREVE!...

Partiu sábado passado, dia 21 de Agosto do ano de 2010, um Mestre um Irmão, um Ser verdadeiramente luminoso e inspirador. Soube-o somente há pouco. Até breve porque breve é este instante efémero de vida terrena e material. Até sempre porque nunca verdadeiramente nos separaremos do Mestre… Dói fundo a ausência física mas permanece a Presença vigorosa, ladina e inspiradora de António Telmo.
Deixo aqui um texto que há uns anos li na apresentação do livro “Contos” publicado pela Editora Aríon, do também recentemente desaparecido do nosso convívio físico, José Manuel Capelo. Foi o texto posteriomente publicado em livro de homenagem dos 80 anos de António Telmo, o que muito honrou.

ANTÓNIO TELMO CARVALHO VITORINO nasceu em Almeida, Distrito da Guarda nos idos anos de 1927, a 2 de Maio, chegou com as Maias, poder-se-á dizer.
Andarilho por meio mundo privou com grandes da Cultura, da Filosofia, do Pensamento Português. Desde Agostinho da Silva a Eudoro de Sousa, de Álvaro Ribeiro a José Marinho, entre muitos outros que com ele privaram e com eles António Telmo ajudou a re-construir a Pátria da Língua Portuguesa, parafraseando o poeta Fernando Pessoa.
Refere José Marinho na sua obra "Verdade Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo"(1):

Nos pensadores que contamos entre os responsáveis no próximo futuro pelo destino da filosofia entre nós, quatro se nos impõem: Alberto Ferreira, António Telmo, Eduardo Lourenço e Orlando Vitorino. Em todos eles despertou o sentido d'«o que mais importa», pois nos aparecem intimamente atentos com diversa explicitação ao imperativo dizer de Plotino.

É realmente este sentido d'«o que mais importa» que vemos continuamente a ser alvo das preocupações literárias – e a Literatura é aqui usada enquanto veículo de transmissão de mensagens – de António Telmo. E é interessante o facto dele próprio se considerar um esoterista. E encaremos este termo sem cairmos em pré-conceitos, e se lhe dermos a dimensão de Schwaller de Lubicz penso que entenderemos um pouco melhor a obra de António Telmo.
Sobre o significado de Esoterismo refere então Schwaller de Lubicz:

O Esoterismo não possui nada em comum com uma vontade de segredo, isto é, de um segredo convencional.
(...).
(...). A criptografia e o enigma, na composição de um texto sagrado, não têm senão por objectivo, o de acordar a atenção do leitor, acentuar um ou outro aspecto do texto, enfim, guiar na direcção do carácter esotérico. (...).
O esoterismo não pode ser escrito, nem dito, nem, por consequência, ser traído. É preciso estar preparado para o compreender, o ver, o entender – como o escolherdes. Esta preparação não é um Saber, mas um Poder, e não poderá senão adquirir-se pelo esforço da própria pessoa, por um combate contra os seus obstáculos e uma vitória sobre a sua natureza animal-humana.
Existe uma Ciência Sagrada, e após milénios, inumeráveis curiosos em vão tentaram procurar penetrar-lhe os "segredos". Era como se, com uma picareta, eles quisessem cavar um buraco no mar. A ferramenta deverá ser da mesma natureza da coisa em que se quer trabalhar. Só se encontra o Espírito através do Espírito, e o Esoterismo é o aspecto espiritual do Mundo, inacessível à inteligência cerebral.
(...).
O Iniciado verdadeiro poderá guiar um aluno dotado para lhe fazer percorrer o caminho da Consciência mais rapidamente, e o aluno, chegado às etapas da Iluminação pela sua própria Luz interior, lerá directamente o esoterismo de tal ensinamento. Ninguém o poderá fazer por ele.(2)

É uma obra complexa a sua – A Arte Poética (1964), História Secreta de Portugal (1977), Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981), Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Filosofia e Kabbalah (1989), O Bateleur (1992), Horóscopo de Portugal e agora estes Contos – para só referenciar os livros publicados e passando por cima dos muitos artigos espalhados por importantes Revistas principalmente ligadas com a Cultura e a Língua Portuguesa, tais como as Revistas "57", "Leonardo", "Cultura Portuguesa", para só citar algumas.
Diz-nos Pinharanda Gomes no seu "Dicionário de Filosofia Portuguesa"(3)que:

O centenário do nascimento de Sampaio Bruno (1957) ficaria assinalado pelo aparecimento do jornal 57 que dimensionava a problemática da filosofia portuguesa em termos de movimento de intervenção social e cultural. O 57 reivindica uma genealogia espiritual (Aristóteles, a Bíblia, Dante, Conimbricenses, Hegel, Bruno, Leonardo Coimbra...) e congrega jovens pensadores todos eles, cada um a seu modo, destinados a uma presença consistente. Mencionando apenas os discípulos [de Álvaro Ribeiro ou José Marinho] da primeira geração, entre eles (...) António Telmo (filologia e simbologia) (...). O 57 tem um vector polemizante: quer suscitar o debate das ideias, e este debate provocará algum radicalismo, mas sem ele o movimento teria ficado fechado em si mesmo. (...).

É interessante referir que este jornal se insere num movimento de cultura portuguesa, cujos mentores e impulsionadores foram Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho e Orlando Vitorino. Vejamos um pequeno excerto do «Manifesto de 57» publicado no seu primeiro número:

Nós somos solidários desses milhares de jovens indiferentes à cultura, que enchem os estádios, os cinemas e os cafés. Nós somos solidários dos que viraram as costas a esses brilhantes aparatos racionais e abstractos, os sistemas metafísicos; que viraram as costas às grandes promessas utópicas, brilhantes na sua argumentação falaciosa e desligadas das condições humanas e naturais quando não trans-naturais da realidade; que viraram as costas ao fogo de artifício lírico; que viraram as costas a todos os dogmatismos, contrários à simples prova de reflexão individual e buscando coarctá-la na sua liberdade interior; que viraram as costas a todas as formas da mentira, mesmo quando esta se reveste das aliciantes da beleza ou do bem comum.

Não nos podemos esquecer de que quando este «Manifesto» é escrito estamos em pleno Estado Novo e concerteza não seria fácil a qualquer movimento de libertação - cultural, filosófico, ou outro – transmitir e fazer valer a sua mensagem de "ruptura"...

Afinal toda a busca do Homem em geral e neste caso concreto, em particular, a busca de António Telmo, penso ser a da VERDADE. Agora: como procurar essa Verdade? como a descobrir e a desocultar? e como saber se a Verdade que encontrámos é a VERDADE que pensamos adivinhar no Arquétipo? Lembro-me continuamente aquela deliciosa história narrada por Almada Negreiros sobre a Verdade, escrito em 1921:

Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade !!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...(4)

A uma pergunta feita pela jornalista Antónia de Sousa(5): Qual a génese das ideias? Como nascem as ideias? Responde António Telmo muito simplesmente: «As ideias são comunicadas pelos anjos! Só que há quem as pense e quem as não pense. O pensamento é que é nosso.»

Já Agostinho da Silva se "queixava" que uns lhe chamavam heterodoxo, outros lhe chamavam ortodoxo, contudo o que ele realmente reivindicava era o estatuto de ser paradoxo, de viver no paradoxo...
Atentemos mais uma vez ao pensamento de António Telmo, desta feita através de uma entrevista à jornalista Antónia de Sousa:

(...).
António Telmo faz uma afirmação surpreendente: «Eu acho que os meus livros sabem mais do que eu. Muitas vezes, ao ler alguma coisa que escrevi, fico surpreendido perante o anúncio de um conhecimento e de uma sabedoria que eu não possuo e que tenho que aprofundar como qualquer outro leitor.»
Telmo não nos diz como é isso possível. Mas afirma-nos: «O Universo não é racionalista, nós é que o devemos ser. Aquilo porque me esforço sempre nos meus escritos é por pensar o irracional. Tornar racional o irracional. Na minha opinião, isto é o que me caracteriza e me distingue e julgo também que é o que suscita o interesse das pessoas. É uma vivência pessoal, mas é também o esforço de não perder a razão perante aquele mundo misterioso. Estou convencido de que toda a gente tem a experiência deste irracional, mas resolvem os conflitos de vários modos, Ou negando esse irracional, ficando preso aos limites de uma razão estreita, ou aceitando esse irracional e perdendo a razão.» Há porém, outra alternativa que é, segundo diz, a de «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real». E acrescenta: «No fundo, é por onde eu ando.»
(...).(6)

Penso ser isso que António Telmo realiza através da sua obra: trabalhar o paradoxo, trabalhar nos limiares da língua, do pensamento, das ideias, fornecendo-nos de certo modo a chave para entrarmos noutra dimensão que não a dimensão meramente analítica, normalizada, feita a esquadro. Desafia-nos a dar um passo em frente, a pegar no compasso e desta vez sair da rectilinearidade para nos embrenharmos numa circularidade de uma compreensão e de um pensamento mais abarcante, mais totalizante – «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real... no fundo é por onde eu ando.»(7)

Finalmente, gostaria de mais uma vez agradecer a António Telmo o facto de ter feito o favor de reencarnar nesta época, dando-nos o privilégio de com ele convivermos, conversarmos e partilharmos estas coisas tão extraordinárias que são as palavras e os pensamentos, complicadas in extremis por esta tramada idiossincrasia portuguesa.

Rui Arimateia



NOTAS:
1) Lello & Irmão Editores, Porto, 1976. Referência no Capítulo III –"Conceito de razão e formas da filosofia", na página 218.
2) R.A. Schwaller de Lubicz – PROPOS SUR ÉSOTÉRISME ET SYMBOLE, Col. 'Mystiques & Religions, Dervy-Livres, Paris, 1989 (págs. 9,11 e 12).
3) Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, página 109, artigo sobre a 'Filosofia Portuguesa'.
4) José de Almada Negreiros – POESIA, Col. 'Obras Completas', n.º4, Editorial Estampa, Lisboa, 1971 (pág. 179).
5) "DN magazine", 25 de Agosto de 1991, pág. 27.
6) Entrevista a Antónia de Sousa in "DN magazine", n.º 256, de 25 de Agosto de 1991 (pág.27).
7) Idem