sexta-feira, 10 de julho de 2009

Mar e Terra dualidade na Unidade



Mar de Maiorca e talayot maiorquino



FÉRIAS COM POESIA

A todos os visitantes do EvoraOculta:
Vou de férias durante uns dias até às Baleares e desejo-vos a todos também um bom Verão e umas óptimas férias.
Aproveitemos as férias para ler poesia e olhar o mundo através dos olhos do poeta.
Deixo-vos uma proposta de tradução de Sónia Regina do Soneto LXVI de W. Shakespeare, que faz todo o sentido nós refletirmos profundamente sobre a sua mensagem nos temos que correm:

Farto de tudo, imploro a paz na morte,
Vendo o valor vestido qual mendigo,
E o nada se trajando em boa sorte,
E a fé mais pura à beira de perigo,

E a honra corruptamente distribuída,
E a virgindade à lama misturada,
E pela infâmia a perfeição cingida,
E a força pelo torto dominada,

E a competência embaixo da tolice,
E a arte sob a mordaça do censor,
E a verdade chamada de idiotice,

E o bem sob o comando do impostor.
Farto, queria repousar no pó,
Se não deixasse o meu amor tão só.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Poço Iniciático...


Quinta da Regaleira em Sintra

O CONTO E AS FANTASIAS DO CORPO

O Conto Tradicional só existe autenticamente porque existiu/existe ainda uma relação de corpo, total, entre contador e ouvinte. Um processo de escuta, de comunicação em que ou se está inteiro ou a magia do contar e do escutar não acontece.
A criança (também a que está em nós!) entra em relação com o contador: olha-o nos olhos, percepciona o seu gesto por mais subtil que seja – um esgar de boca, um elevar de sobrolho, um piscar de olhos, um sopro, um tremor, um sorriso, um lamento...–, bebe as palavras dramatizadas, e todos as diferentes entoações...
A partir de certa altura desta relação, deixarão de haver dois sujeitos – contador(a) e ouvinte(s) – para entrarmos noutra dimensão de comunhão, de sentimento, de criação...
Uma atenção total permitirá a compreensão de uma meta-linguagem, de uma tipologia arquetípica em que a possibilidade de uma interiorização transformante poderá de facto acontecer, eventualmente com incidências físicas, psicológicas e espirituais, para quem se encontrar mergulhado e disponível neste processo de grande atenção e de partilha.

Escutemos então o conto popular O Mama-na-Burra

Era uma vez um rapaz que cuja mãe havia morrido. Como não tinha ninguém foi criado por um velhote que o alimentava com leite de burra, daí que surgiu o nome de Mama-na-Burra.
O rapaz foi crescendo e decidiu ir correr mundo. Como era muito forte não tinha medo de nada. Mandou fazer uma bengala com sessenta arrobas com a qual ele brincava como se fosse uma pena. Para lá foi e depois de ter andado um grande bocado, uns dias, encontrou uma floresta com muitos pinheiros e havia um homem que arrancava os pinheiros com uma facilidade de quem apanha uma flor. Mama-na-Burra ficou admirado e pensou para com ele:
– Aqui está um com mais força que eu!
Escondeu a sua bengala e foi ter com o. Falaram e o Mama-na-Burra convidou o Arranca-Pinheiros – era esse o nome que Mama-na-Burra pôs ao Homem – para ir com ele correr o mundo. Tanto falaram até que Arranca-Pinheiros decidiu ir com ele. Mama-na-Burra para saber se ele era mais forte mandou-o ir buscar a sua bengala. Arranca-Pinheiros foi, mas não conseguiu trazê-la, pois era muito pesada. Lá foram os dois muito contentes pelo mundo fora Passados mais uns dias encontraram um homem que arrasará todas as montanhas. Ficaram todos espasmados e novamente convidaram-no para ir também com eles. E lá foram: o Mama-na-Burra, o Arranca-Pinheiros e o Arrasa-Montanhas. Andaram, andaram, andaram e foram pernoitar a uma casa abandonada que diziam estar assombrada, mas eles não quiseram saber, uma vez lá chegados combinaram, o Mama-na-Burra ia à carne, o Arranca-Pinheiros ia ao pão, e o Arrasa-Montanhas ficava em casa a fazer o jantar. O jantar já estava quase pronto, quando alguém grita do alto da chaminé:
– Ai que eu caio!
Isto várias vezes e o Arrasa-Montanhas começou a olhar para cima e de repente caiu uma coisa na cinza do lume indo estragar o jantar, depois desapareceu. Quando os outros chegaram o Arrasa-Montanhas estava desesperado, pois nem sequer sabia o que lhe tinha estragado o jantar. Comeram a carne e o pão e deitaram-se.
No outro dia foi a vez do Arranca-Pinheiros ficar com o jantar. E aconteceu-lhe a mesma coisa que o Arrasa-Montanhas...
No outro dia chegou a vez do Mama-na-Burra. Faz o jantar e começou a ouvir a voz:
– Ai que eu caio!
Mama-na-Burra não lhe ligou, continuando o que estava a fazer. E a voz continuou sempre. E lá prás tantas respondeu-lhe:
– Cai prá aí à vontade! Mas vê lá se não cais dentro da panela do jantar.
E aquilo caiu e Mama-na-Burra deu-lhe com a bengala, cortando a orelha àquilo, que não era senão o Diabo, que não tinha conseguido ser mais rápido do que a bengala do Mama-na-Burra. O Diabo pediu-lhe para ele lhe dar a orelha, mas o Mama-na-Burra disse-lhe que só lhe dava a orelha se ele lhe desse para o seu jantar e o dos seus companheiros tudo o que houvesse de bom e do melhor para poderem jantar bem. Mas depois de fazer o que o Mama-na-Burra lhe pediu, o Diabo teve de fugir a sete-pés porque o Mama-na-Burra pôs-se a agitar a bengala e só não lhe acertou outra vez por uma unha negra... E o Diabo lá fugiu sem a orelha, que o Mama-na-Burra guardou dentro da sua algibeira.
E nisto aparecem os dois companheiros que comeram e beberam do melhor na companhia do Mama-na-Burra. Depois de jantarem bem resolveram partir outra vez pelo mundo fora.
Andaram, andaram até que encontraram um poço onde diziam que ali se encontravam três princesas encantadas. O poço era muito fundo e ninguém se atrevia a ir lá abaixo, mas eles quiseram ir. Havia um cabanejo e o Arrasa-Montanhas foi o primeiro a ir, a descer o poço, mas a meio do poço mexeu a corda para que o subissem pois lá no poço só havia bichos por todos os lados e ele não sabia o que fazer. Depois foi a vez do Arranca-Pinheiros. Desceu, desceu, mas também não conseguiu chegar ao fundo do poço e subiram-no. E foi então o Mama-na-Burra com a sua bengala. Defendeu-se dos bichos com ela e conseguiu chegar ao fundo do poço. Aí havia uma enorme porta que arrebentou com a bengala. Entrou e aparece-lhe uma menina muito bonita e muito aflita dizendo-lhe:
Ai senhor, vá-se embora que o meu guarda não tarda aí. Mama-na-Burra não faz caso, encantado com a beleza da menina e pediu-lhe para lhe dizer quem era e ela disse-lhe que era uma princesa e que estava encantada com mais duas irmãs e que ela era guardada pelo bicho das sete cabeças. A segunda irmã era guardada pelo rei dos bichos e a terceira irmã pelo Diabo. Ele não se preocupou e daí a pouco apareceu o bicho das sete cabeças dizendo:
– Cheira-me aqui a carne humana!
Mama-na-Burra apareceu e lutou com ele até que o venceu e libertou a princesa mandando-a para cima e ela deu-lhe uma maçã de ouro.
A seguir abriu outra porta e apareceu outra menina ainda mais bonita e apareceu também o rei dos bichos, dizendo também:
– Cheira-me aqui a carne humana!
E o Mama-na-Burra com a sua bengala depressa deu conta dele e a menina deu-lhe uma maçã em ouro. E ele vai daí mandou-a também para cima para junto da irmã e dos companheiros.
Depois vai e abre a terceira porta e aparece-lhe logo a menina, que era a terceira irmã, a mais nova e a mais bonita de todas. O Diabo não estava lá e ele disse-lhe que tinha vindo para a salvar e a tirar dali para fora, para junto das suas irmãs. A menina que simpatizou logo com o seu salvador ficou toda contente e foi logo com ele. Quando chegaram ao pé do cabanejo o Mama-na-Burra pôs a menina lá dentro e disse-lhe para não se preocupar, que não cabiam os dois mas que depois os seus companheiros atiravam-lhe uma corda para ele subir. E a menina deu-lhe uma cacho de uvas de ouro. O rapaz abanou a corda e a menina lá foi subindo.
Mas quando lhe mandaram a corda ele desconfiou que o queriam enganar e, em vez de se pôr dentro do cabanejo para ser subido, pôs lá uma grande pedra e puxou a corda para o puxarem. E quando o carrego ia ao meio do poço os dois que estavam lá em cima largaram a corda gritando que se tinha partido e a pedra caiu no fundo do poço fazendo um grande barulho e eles pensaram que o Mama-na-Burra tinha morrido na queda e foram-se embora com as meninas.
E quando estava sozinho lá em baixo, o Mama-na-Burra lembrou-se da orelha do Diabo que tinha ainda dentro da sua algibeira e deu-lhe uma dentada, e o Diabo apareceu-lhe logo aos guinchos e a dizer-lhe:
– Mama-na-Burra diz-me o que queres mas não me faças mal.
Então ele pediu ao Diabo para o pôr dali para fora. Montou-se no Diabo e lá saíram pelos campos fora. Andaram, andaram até ser de noite e chegarem a uma grande charneca onde viram uma luz a brilhar lá muito ao fundo. Para lá foram e chegaram à casa de onde vinha a luz e entraram. Logo lhes apareceu o rei dos bichos que assim que viu o Mama-na-Burra e a sua bengala ficou cheio de medo e então o rapaz pediu-lhe para ele lhe dizer se tinha visto para onde tinham ido as meninas e os seus companheiros. Consultaram as aves todas mas nenhuma sabia de nada, até que apareceu uma águia, já muito velha, que lhes disse que estavam todos num Palácio assim e assim e que ia lá um grande estadão. Havia de tudo do bom e do melhor, mas a princesa mais nova não gostava pois tinha muita pena do senhor que as tinha salvo, porque os outros dois afirmavam serem eles os salvadores das princesas e ela dizia sempre que não. As outras duas irmãs não queriam saber disso.
Depois de tudo o que soube, Mama-na-Burra, vestiu-se de mulher e foi pedir trabalho no Palácio e como andavam com os festins, meteram-no como empregada guardando a criação do Palácio. E a princesa mais nova levava grandes bocados falando com a nova empregada, contando-lhe como estava triste, como gostaria de tornar a ver o seu salvador, e andava sempre triste.
Chegaram então os dias grandes de festas no Palácio, com as cavalhadas a princesa pediu à guardadora da criação para ir às festas, mas ela dizia sempre que não tinha vagar, pois tinha que guardar os animais. Mas assim que todos abalavam, o rapaz mordia a orelha do Diabo e ele aparecia. Mama-na-Burra pedia-lhe então um bom cavalo e um lindo fato e assim sucedia. Abalava para as cavalhadas e quando passava pelas princesas, mostrava-lhes a maçã de ouro que a princesa mais velha lhe tinha dado, e ela conheceu-a logo e disse que aquele cavaleiro era o seu salvador. Tentaram apanhá-lo mas ele desapareceu e ninguém mais o viu. Quando naquele dia as festas acabaram, a princesa mais nova foi ter com a empregada da criação contando-lhe muito entusiasmada o sucedido e pediu-lhe novamente que fosse espreitar as festas e ela não quis. Mas assim que todos abalaram mordeu novamente a orelha e apareceu o Diabo, e disse-lhe:
– Quero um cavalo melhor que o anterior e um fato ainda mais bonito.
E ele lá foi para as cavalhadas e quando passou pelas princesas, mostrou-lhes a maçã de ouro da princesa do meio e todos viram o salvador das Princesas, mas desapareceu imediatamente. E novamente a Princesa mais nova a contar à guardadora de criação o sucedido.
No outro dia aconteceu a mesma coisa, ele passou e mostrou-lhes o cacho de uvas de ouro, mas no mesmo instante a princesa mais nova atirou uma fateixa que o alcançou. O cavalo desapareceu, mas ele ficou preso e conseguiram assim apanhá-lo e casou com a Princesa mais nova ficando com o Reino e os outros dois maus companheiros foram castigados.


[Recolha da Tradição Oral efectuada na aldeia de Valverde, Freguesia de N.ª S.ª da Tourega, Concelho de Évora, em 1986. Fonte: Senhor João Mendes, de 54 anos.]

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O Galo Oculto


Desenho de António Couvinha

ERA UMA VEZ...


Falar-se de Contos e ou de Lendas Tradicionais nos tempos que correm, é falar-se de Identidade Cultural de um Povo e, paralelamente, do desenvolvimento mais ou menos harmonioso que esse Povo sofreu e sofre através dos diferentes estádios de crescimento e maturação dos indivíduos e das comunidades que o constituem.
Refiramos, por outro lado, a diferente função do Conto e da Lenda conforme se trate de uma criança ou de um adulto. Os fins de uma e de outro, no desenrolar do mesmo, são intrinsecamente diferentes.
Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio, saírem vitoriosos para a Luz do dia...
Narrações ricas de mistério e de magia são as que apresento de seguida, duas lendas populares da região de Évora (Alentejo – Portugal) cujas especificidade narratória e linguagem simbólica me pareceram valer a pena partilhá-las convosco. Foram recolhidas da tradição oral local no ano de 1983, na Freguesia (rural) de S. Sebastião da Giesteira, que dista cerca de 18 quilómetros da sede do Concelho, Évora. A primeira intitulada “A Nora da Herdade dos Padres” foi já apresentada neste blogue no passado dia 3 de Abril e a segunda “A Mina Encantada do Freixial” é apresentada de seguida.
Importa ainda referir que é precisamente na Tradição Aldeã e Camponesa que esta forma de comunicação e de educação milenares se conservam ainda, apesar de tudo... Uma aldeia possui tradicionalmente os seus ritmos/ritos e os seus tempos/templos próprios, enquadrados naturalmente por Ciclos Anuais, correspondentes às festas religiosas locais e ao calendário dos trabalhos agrícolas, onde o sagrado e o profano se (con)fundem harmoniosamente.
Em última análise, os contos tradicionais e as lendas, de modo diverso, incorporam em si uma explicação do inexplicável. São contados pelo contador e são intuídas as mensagens pelos ouvintes, estabelecendo-se entretanto, uma relação mágica, total, holística, religiosa...
Termino com a narração da segunda lenda:

A Mina encantada do Freixial

Conta-se que, no casão do Freixial existe uma mina
[1]. Segundo os antigos, essa mina encontra-se numa casa subterrânea, que contém água vai até mais ao menos à metade do pé direito dessa mesma casa.
Para se tirar essa mina, a pessoa terá de cavar até encontrar umas escadas que a conduzirão até à casa subterrânea. Para isso conseguir os seus intentos terá também de levar um alqueire de milho que deixará à porta e será comido por um galo
[2] saído da casa subterrânea.
Enquanto o galo come o milho, a pessoa terá que entrar, tirar a mina e sair sem que o dito galo tenha comido todo o milho, pois, caso contrário o aventureiro ficará encantado para sempre naquele local.
Conta-se também os casos de algumas pessoas que já tentaram tirar a mina e não conseguiram descobrir mais do que dois degraus, pois ao pisar o segundo degrau não conseguem ou não se atrevem a ir mais para a frente...
Rui Arimateia

Notas:
[1] O vocábulo “mina” tem aqui a significação simultânea de espaço subterrâneo e tesouro.
[2] Em S. Sebastião da Giesteira existem outras versões desta lenda, nas quais em vez de ser um galo aparece ou um touro ou uma serpente, tendo as pessoas de levar o alimento adequado para cada um deles – milho, palha ou leite. Noutros locais do Concelho aparece ainda a versão da “moura encantada”.