quarta-feira, 8 de julho de 2009

O CONTO E AS FANTASIAS DO CORPO

O Conto Tradicional só existe autenticamente porque existiu/existe ainda uma relação de corpo, total, entre contador e ouvinte. Um processo de escuta, de comunicação em que ou se está inteiro ou a magia do contar e do escutar não acontece.
A criança (também a que está em nós!) entra em relação com o contador: olha-o nos olhos, percepciona o seu gesto por mais subtil que seja – um esgar de boca, um elevar de sobrolho, um piscar de olhos, um sopro, um tremor, um sorriso, um lamento...–, bebe as palavras dramatizadas, e todos as diferentes entoações...
A partir de certa altura desta relação, deixarão de haver dois sujeitos – contador(a) e ouvinte(s) – para entrarmos noutra dimensão de comunhão, de sentimento, de criação...
Uma atenção total permitirá a compreensão de uma meta-linguagem, de uma tipologia arquetípica em que a possibilidade de uma interiorização transformante poderá de facto acontecer, eventualmente com incidências físicas, psicológicas e espirituais, para quem se encontrar mergulhado e disponível neste processo de grande atenção e de partilha.

Escutemos então o conto popular O Mama-na-Burra

Era uma vez um rapaz que cuja mãe havia morrido. Como não tinha ninguém foi criado por um velhote que o alimentava com leite de burra, daí que surgiu o nome de Mama-na-Burra.
O rapaz foi crescendo e decidiu ir correr mundo. Como era muito forte não tinha medo de nada. Mandou fazer uma bengala com sessenta arrobas com a qual ele brincava como se fosse uma pena. Para lá foi e depois de ter andado um grande bocado, uns dias, encontrou uma floresta com muitos pinheiros e havia um homem que arrancava os pinheiros com uma facilidade de quem apanha uma flor. Mama-na-Burra ficou admirado e pensou para com ele:
– Aqui está um com mais força que eu!
Escondeu a sua bengala e foi ter com o. Falaram e o Mama-na-Burra convidou o Arranca-Pinheiros – era esse o nome que Mama-na-Burra pôs ao Homem – para ir com ele correr o mundo. Tanto falaram até que Arranca-Pinheiros decidiu ir com ele. Mama-na-Burra para saber se ele era mais forte mandou-o ir buscar a sua bengala. Arranca-Pinheiros foi, mas não conseguiu trazê-la, pois era muito pesada. Lá foram os dois muito contentes pelo mundo fora Passados mais uns dias encontraram um homem que arrasará todas as montanhas. Ficaram todos espasmados e novamente convidaram-no para ir também com eles. E lá foram: o Mama-na-Burra, o Arranca-Pinheiros e o Arrasa-Montanhas. Andaram, andaram, andaram e foram pernoitar a uma casa abandonada que diziam estar assombrada, mas eles não quiseram saber, uma vez lá chegados combinaram, o Mama-na-Burra ia à carne, o Arranca-Pinheiros ia ao pão, e o Arrasa-Montanhas ficava em casa a fazer o jantar. O jantar já estava quase pronto, quando alguém grita do alto da chaminé:
– Ai que eu caio!
Isto várias vezes e o Arrasa-Montanhas começou a olhar para cima e de repente caiu uma coisa na cinza do lume indo estragar o jantar, depois desapareceu. Quando os outros chegaram o Arrasa-Montanhas estava desesperado, pois nem sequer sabia o que lhe tinha estragado o jantar. Comeram a carne e o pão e deitaram-se.
No outro dia foi a vez do Arranca-Pinheiros ficar com o jantar. E aconteceu-lhe a mesma coisa que o Arrasa-Montanhas...
No outro dia chegou a vez do Mama-na-Burra. Faz o jantar e começou a ouvir a voz:
– Ai que eu caio!
Mama-na-Burra não lhe ligou, continuando o que estava a fazer. E a voz continuou sempre. E lá prás tantas respondeu-lhe:
– Cai prá aí à vontade! Mas vê lá se não cais dentro da panela do jantar.
E aquilo caiu e Mama-na-Burra deu-lhe com a bengala, cortando a orelha àquilo, que não era senão o Diabo, que não tinha conseguido ser mais rápido do que a bengala do Mama-na-Burra. O Diabo pediu-lhe para ele lhe dar a orelha, mas o Mama-na-Burra disse-lhe que só lhe dava a orelha se ele lhe desse para o seu jantar e o dos seus companheiros tudo o que houvesse de bom e do melhor para poderem jantar bem. Mas depois de fazer o que o Mama-na-Burra lhe pediu, o Diabo teve de fugir a sete-pés porque o Mama-na-Burra pôs-se a agitar a bengala e só não lhe acertou outra vez por uma unha negra... E o Diabo lá fugiu sem a orelha, que o Mama-na-Burra guardou dentro da sua algibeira.
E nisto aparecem os dois companheiros que comeram e beberam do melhor na companhia do Mama-na-Burra. Depois de jantarem bem resolveram partir outra vez pelo mundo fora.
Andaram, andaram até que encontraram um poço onde diziam que ali se encontravam três princesas encantadas. O poço era muito fundo e ninguém se atrevia a ir lá abaixo, mas eles quiseram ir. Havia um cabanejo e o Arrasa-Montanhas foi o primeiro a ir, a descer o poço, mas a meio do poço mexeu a corda para que o subissem pois lá no poço só havia bichos por todos os lados e ele não sabia o que fazer. Depois foi a vez do Arranca-Pinheiros. Desceu, desceu, mas também não conseguiu chegar ao fundo do poço e subiram-no. E foi então o Mama-na-Burra com a sua bengala. Defendeu-se dos bichos com ela e conseguiu chegar ao fundo do poço. Aí havia uma enorme porta que arrebentou com a bengala. Entrou e aparece-lhe uma menina muito bonita e muito aflita dizendo-lhe:
Ai senhor, vá-se embora que o meu guarda não tarda aí. Mama-na-Burra não faz caso, encantado com a beleza da menina e pediu-lhe para lhe dizer quem era e ela disse-lhe que era uma princesa e que estava encantada com mais duas irmãs e que ela era guardada pelo bicho das sete cabeças. A segunda irmã era guardada pelo rei dos bichos e a terceira irmã pelo Diabo. Ele não se preocupou e daí a pouco apareceu o bicho das sete cabeças dizendo:
– Cheira-me aqui a carne humana!
Mama-na-Burra apareceu e lutou com ele até que o venceu e libertou a princesa mandando-a para cima e ela deu-lhe uma maçã de ouro.
A seguir abriu outra porta e apareceu outra menina ainda mais bonita e apareceu também o rei dos bichos, dizendo também:
– Cheira-me aqui a carne humana!
E o Mama-na-Burra com a sua bengala depressa deu conta dele e a menina deu-lhe uma maçã em ouro. E ele vai daí mandou-a também para cima para junto da irmã e dos companheiros.
Depois vai e abre a terceira porta e aparece-lhe logo a menina, que era a terceira irmã, a mais nova e a mais bonita de todas. O Diabo não estava lá e ele disse-lhe que tinha vindo para a salvar e a tirar dali para fora, para junto das suas irmãs. A menina que simpatizou logo com o seu salvador ficou toda contente e foi logo com ele. Quando chegaram ao pé do cabanejo o Mama-na-Burra pôs a menina lá dentro e disse-lhe para não se preocupar, que não cabiam os dois mas que depois os seus companheiros atiravam-lhe uma corda para ele subir. E a menina deu-lhe uma cacho de uvas de ouro. O rapaz abanou a corda e a menina lá foi subindo.
Mas quando lhe mandaram a corda ele desconfiou que o queriam enganar e, em vez de se pôr dentro do cabanejo para ser subido, pôs lá uma grande pedra e puxou a corda para o puxarem. E quando o carrego ia ao meio do poço os dois que estavam lá em cima largaram a corda gritando que se tinha partido e a pedra caiu no fundo do poço fazendo um grande barulho e eles pensaram que o Mama-na-Burra tinha morrido na queda e foram-se embora com as meninas.
E quando estava sozinho lá em baixo, o Mama-na-Burra lembrou-se da orelha do Diabo que tinha ainda dentro da sua algibeira e deu-lhe uma dentada, e o Diabo apareceu-lhe logo aos guinchos e a dizer-lhe:
– Mama-na-Burra diz-me o que queres mas não me faças mal.
Então ele pediu ao Diabo para o pôr dali para fora. Montou-se no Diabo e lá saíram pelos campos fora. Andaram, andaram até ser de noite e chegarem a uma grande charneca onde viram uma luz a brilhar lá muito ao fundo. Para lá foram e chegaram à casa de onde vinha a luz e entraram. Logo lhes apareceu o rei dos bichos que assim que viu o Mama-na-Burra e a sua bengala ficou cheio de medo e então o rapaz pediu-lhe para ele lhe dizer se tinha visto para onde tinham ido as meninas e os seus companheiros. Consultaram as aves todas mas nenhuma sabia de nada, até que apareceu uma águia, já muito velha, que lhes disse que estavam todos num Palácio assim e assim e que ia lá um grande estadão. Havia de tudo do bom e do melhor, mas a princesa mais nova não gostava pois tinha muita pena do senhor que as tinha salvo, porque os outros dois afirmavam serem eles os salvadores das princesas e ela dizia sempre que não. As outras duas irmãs não queriam saber disso.
Depois de tudo o que soube, Mama-na-Burra, vestiu-se de mulher e foi pedir trabalho no Palácio e como andavam com os festins, meteram-no como empregada guardando a criação do Palácio. E a princesa mais nova levava grandes bocados falando com a nova empregada, contando-lhe como estava triste, como gostaria de tornar a ver o seu salvador, e andava sempre triste.
Chegaram então os dias grandes de festas no Palácio, com as cavalhadas a princesa pediu à guardadora da criação para ir às festas, mas ela dizia sempre que não tinha vagar, pois tinha que guardar os animais. Mas assim que todos abalavam, o rapaz mordia a orelha do Diabo e ele aparecia. Mama-na-Burra pedia-lhe então um bom cavalo e um lindo fato e assim sucedia. Abalava para as cavalhadas e quando passava pelas princesas, mostrava-lhes a maçã de ouro que a princesa mais velha lhe tinha dado, e ela conheceu-a logo e disse que aquele cavaleiro era o seu salvador. Tentaram apanhá-lo mas ele desapareceu e ninguém mais o viu. Quando naquele dia as festas acabaram, a princesa mais nova foi ter com a empregada da criação contando-lhe muito entusiasmada o sucedido e pediu-lhe novamente que fosse espreitar as festas e ela não quis. Mas assim que todos abalaram mordeu novamente a orelha e apareceu o Diabo, e disse-lhe:
– Quero um cavalo melhor que o anterior e um fato ainda mais bonito.
E ele lá foi para as cavalhadas e quando passou pelas princesas, mostrou-lhes a maçã de ouro da princesa do meio e todos viram o salvador das Princesas, mas desapareceu imediatamente. E novamente a Princesa mais nova a contar à guardadora de criação o sucedido.
No outro dia aconteceu a mesma coisa, ele passou e mostrou-lhes o cacho de uvas de ouro, mas no mesmo instante a princesa mais nova atirou uma fateixa que o alcançou. O cavalo desapareceu, mas ele ficou preso e conseguiram assim apanhá-lo e casou com a Princesa mais nova ficando com o Reino e os outros dois maus companheiros foram castigados.


[Recolha da Tradição Oral efectuada na aldeia de Valverde, Freguesia de N.ª S.ª da Tourega, Concelho de Évora, em 1986. Fonte: Senhor João Mendes, de 54 anos.]

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