segunda-feira, 30 de novembro de 2009


Pintura de Leonor Serpa Branco - "A menina oleira" (pormenor)

O CONTO TRADICIONAL E A REALIDADE DO ETERNO PRESENTE

Em memória de Maria Beatriz
a Mãe, a Irmã, a Educadora, a Mulher, a Poeta- Mestre...
um grande bem hajas para onde quer que nos estejas a observar.

Pelo facto da nossa época estar tão conturbada social, ética e espiritualmente, em que os aspectos mais negativos e egoístas da Humanidade se manifestam declaradamente e estão constantemente a evidenciar-se com uma energia por vezes assustadora, foi esta a razão pela qual escolhi uma abordagem aos Contos Tradicionais nas suas vertentes mais luminosa e mais construtiva. (1)
Não escolhendo a abordagem do lado negro dos Contos, privilegiei essencialmente a sua importância tradicional na construção da Relação Humana, na Comunicação e nos aspectos unitários que ajudam a definir as diferentes idiossincrasias dos indivíduos inseridos nos seus grupos sociais.
É um universo complexo do conhecimento e das vivências do homem, porque rico e prenhe de significados. Na aproximação e na vivência do Sociocultural, é notória a importância da Relação Humana para os diferentes profissionais do Social, do Cultural e do Educacional desenvolverem uma intervenção na Realidade marcada pela qualidade, integrada e harmoniosa, tendente a fazer crescer os indivíduos, com mais comunicação, inibindo as tendências modernas do isolacionismo e do consumismo
E é importante esta preocupação de mais comunicação perante o conjunto de problemas e de males sociais que se nos deparam nas relações do quotidiano do nosso tempo, pois constatamos que o indivíduo, a família, os grupos sociais, se encontram cada vez mais espartilhados física, psicológica e espiritualmente. As consequências destes problemas e destes males sociais manifestam-se através de um progressivo isolamento do SER e na emergência de uma crise profunda, caracterizada pela ausência de valores construtivos e positivos, que contribuem para a formação e para a evolução do ser humano neste ou naquele Território, neste ou naquele País, enfim neste Planeta tão conturbado.
Possam os Contos Tradicionais vir novamente a preencher uma lacuna na Educação das nossas crianças e no aperfeiçoamento evolutivo do ser humano que tão bem os inventou e conservou ao longo de milénios.
É urgente a (re)invenção dos Contos Tradicionais e a sua difusão na Escola, nas Associações, nas relações humanas em geral do dia-a-dia, onde o crescer biológico e cultural deverá implicar sensibilidade, descoberta, atenção e mudança de mentalidades.

Nesta abordagem ao Conto Tradicional que passo a apresentar travei contacto com um sem número de paradigmas e metáforas, utilizados como palavras-chave desde há remotas eras até aos nossos dias por investigadores, místicos, antropólogos, filósofos e todos quanto têm reflectido sobre as realidades menos explícitas e pouco esclarecidas da Sabedoria Popular, manifestada através da Tradição Oral, portuguesa ou castelhana, francesa ou russa, hindu ou chinesa...
Algumas dessas palavras-chave que surgiram com mais acuidade e com maior profundidade de significado, foram as que passo a referir muito rapidamente:

Idade do Ouro e Ontologia das Origens; Verdade, Mentira e Imaginário; Mitos, Deuses e Heróis; Autoconhecimento, Totalidade e Caminho; Símbolo, Mistérios e Tradição; Sageza Imemorial e Demanda; Vida, Realidade e Evolução; Criança, Educação e Desenvolvimento; Identidade Cultural, Natureza e Cultura; Iniciação e Labirinto; Holismo, Sagrado e Religião; Ser, Estar e Relação Humana; Consciência e Logos; Comunicação e Linguagem; Sentido de Vida e Ecologia...

Lista extensiva de mais para ser esgotada num simples trabalho como este, mas que serve de sugestão, apontando pistas interessantes e extremamente sedutoras para serem seguidas, aprofundadas e posteriormente partilhadas.

Os Contos Tradicionais – ricos e complexos pela sua própria natureza, uma vez que as suas origens, remontarão eventualmente aos inícios da Cultura Humana – são contudo possuidores de uma presença e de uma actualidade que podemos considerar, quase como que mágica.

Queria aproveitar esta oportunidade para, e queiram desculpar-me a ousadia, fazer uma humilde homenagem a uma grande figura extremenha e investigador erudito e exaustivo da Tradição Primordial desta Terra que, através do contacto que tive com a sua extensa obra literária e filosófica, passou também a ser, um bocadinho e por adopção, a minha Terra... Estou a falar-vos de D. Mario Roso de Luna.
Nascido em Logrosán, Extremadura, no ano de 1872, morreu em Madrid a 8 de Novembro de 1931, tendo passado 65 anos da data da sua morte no passado dia 8 de Novembro do corrente ano.
Teósofo, Astrónomo e Escritor. Licenciado em Letras, Ciências Fisicoquímicas, Filosofia e Direito. Como Astrónomo descobriu um cometa a que foi dado o seu nome. A sua extensa bibliografia destaca-se tanto pela beleza da sua escrita como pela sua extraordinária erudição. D. Mario Roso de Luna, «el Mago de Logrosán», como ficou conhecido pelos seus conterrâneos, foi membro do Ateneu de Madrid, tendo passado toda a sua vida de investigador a buscar no coração humano a sinceridade, a lei cósmica reguladora do universo, e, por convicção, a manifestação do espírito imortal na vida do homem.

Pela sua beleza e profundidade vou apresentar-lhes de seguida o excerto de um texto, datado de 1921, todavia pleno de actualidade, da autoria de D. Mario Roso de Luna, cujo conteúdo se insere perfeitamente no nosso objecto particular de estudo:

«(...).
En edades primitivas o “de Oro” reinó soberana la Verdad hasta que la Mentira, logró disfrazarse de Verdad y engañar al mundo con su Maya o ilusión. La Verdad desnuda fué rechazada desde entonces por los hombres, enamorados ya de las apariencias de la Mentira, pero ella, a su vez, se disfrazó con el “Velo de Isis” tranformándose asi en mito o fábula, y en Parábola sus consiguientes enseñanzas.
Hubo un hombre sin embargo – habría y hay tantos en todas las Edades! – que buscó decidido la verdad en el mundo, en la corte, en el claustro, y doquiera le dijeron “hace ya muchísimo tiempo que estuvo aquí, pero desapareció y nadie ya ha vuelto a encontrarla”. Los dioses, envidiosos de la grandeza del hombre, la habían hurtado, y escondido nada menos que en el propio corazón humano, porque si lo hubiera hecho en otra parte, monte, abismo, nube o desierto, el incansable anhelo progresivo del hombre la habría encontrado al cabo, mientras que llevándola él, sin saberlo, dentro de su pecho, donde no mira por desgracia nunca, le sería imposible el volverla a hallar. Aleccionada, al fin, la Humanidad por el rebelde Prometeo logra encontrarla mediante esa máquina terrible de invención y hallazgo que se ha llamado desde entonces Filosofia, o “nósce te ipsum” socrático [o sea, en castellano: “Oh Hombre, conócete a ti mismo!”].
Con la Filosofia, en efecto, caemos en la cuenta de que la “Verdad Absoluta o Suprema”, no está en ninguna percepción concreta, ni en ninguna ciencia particular llámese como se llame, sino en el augusto y abstracto misterio del Símbolo porque en el Símbolo concurren, se aunan y hacen compatibles las revelaciones parciales de las diversas ciencias ya que estas últimas no son sino ramas de un gran tronco primitivo y oculto.
Porque nosotros, ciegos sempiternos, tenemos siempre interpuesto entre nuestra vista y el mundo superior de la Verdad un tupido velo que se ha llamado por los poetas el “Velo de Maya” y por los matemáticos modernos “el misterio geométrico del mundo de las ene dimensiones del espacio”, desde el día memorable que se cortaron las comunicaciones estre este pobre mundo de los mortales y los “supermundos” de héroes, semidioses y dioses antiguos.
(...).»
(2)

Desde tempos imemoriais que os Antigos Mistérios, detentores da Sageza das Idades, têm tido como fim último da sua Demanda, a cabal compreensão da Verdade. Contudo, esta parece ser inatingível, para o homem comum, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, vem transformando e espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que o ajudam a dominar a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios.
Sempre o homem comum olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer mistério vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, em algum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: «Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...», resta-nos a possibilidade de (re)encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... ou, como disse D. Mario Roso de Luna, oculto no nosso Coração...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluem através de nós próprios como os grãos de areia escorregam através da nossa mão aberta.
Aqueles Mistérios Antigos, através das roupagens dos Contos da Tradição Oral podem muito bem ser esses grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias complicadas e intrincadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade de vida...
Os Mistérios, os Contos, as Lendas... com toda a sua carga simbólica e com toda a sua autêntica Autoridade, conferidas pela Tradição-Sageza milenar, poderão constituir, de facto, a possibilidade de olharmos em nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais!...
Por demasiadas vezes, se calhar, não conseguimos ou não queremos, ouvir uma voz muito ténue – aquela voz maravilhosa que sempre acompanha o herói ou a heroína nos contos de encantar – que nos faz ouvir muito suavemente no fundo da nossa Consciência: «Fecha a mão!», e que, se estivermos atentos, ao fecharmos a mão, conseguiremos reter três grãozinhos de areia... e com que emoção e alegria os olhamos, tal criança perante um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, mais sem sentido – para nós adultos – pelas coisas mais simples que ela encontrou ao sabor do vento, nos seus sonhos, criadas pela sua imaginação criadora, durante as suas brincadeiras inocentes...

Falar-se de Contos Tradicionais nos tempos que correm, é falar-se de Identidade Cultural de um Povo e, paralelamente, do desenvolvimento mais ou menos harmonioso que esse Povo sofreu e sofre através dos diferentes estádios de crescimento e maturação dos indivíduos e das comunidades que o constituem.

Refiramos, por outro lado, a diferente função do Conto conforme se trate de uma criança ou de um adulto. Os fins de uma e de outro, no desenrolar do mesmo, são intrinsecamente diferentes.
Para a criança o conto é, de facto, uma autêntica iniciação para a vida que a rodeia e da qual ela própria faz parte integrante. Escutar contos, contar contos tem que ver com o próprio desenvolvimento físico, psicológico e espiritual de um ser que se encontra a desabrochar para a devir plenitude do adulto.
Através deles, a criança torna-se um ser-em-relação, primeiramente com ela própria, e quase simultaneamente com o outro e com o mundo, e não esqueçamos de que a Iniciação é, no fundo, a total assunção do outro...
Nos contos tradicionais manifestam-se, através da alegoria e do símbolo, os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua História e Evolução: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta. Tal como o peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:

– Oh, Mãe! O que é o Mar?
E a Mãe, com aquela ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:
– Olha, meu filho, tu estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...

União com o Todo ou com o Amado, que os místicos espanhóis como São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila tão bem souberam cantar nos seus poemas e nos seus escritos de religião, e por vezes tão incompreendidos pela superestrutura católica da sua época.
Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio, saírem vitoriosos para a Luz do dia...

Narração rica de mistério e de magia é a que apresento de seguida, uma lenda popular da região de Évora (Alentejo – Portugal) cujas especificidade narratória e linguagem simbólica me pareceram valer a pena partilhá-la convosco. Foi recolhida da tradição oral local no ano de 1983, no decorrer de uma sessão de Curso de Alfabetização de Adultos, na Freguesia (rural) de S. Sebastião da Giesteira, que dista cerca de 18 quilómetros da sede do Concelho. Passo a contar:

Na Herdade dos Padres há uma nora muito antiga, quiçá do tempo dos Mouros... Com largos muros e águas negras e profundas, com lodo que a uns escassos metros da superfície esconde eficazmente as suas profundezas, os seus habitantes e os seus tesouros...
Conta-se que, realmente existirá no fundo desta nora um tesouro oculto, um grande tesouro, que fará muito rico quem tiver a sorte de o encontrar, se tiver a coragem para o procurar... Isto porque o tesouro é guardado por uma enorme serpente pronta a resistir a quaisquer profanações.
Assim, aquele que à meia-noite conseguir ir ao fundo da nora e encarar com o tesouro, aparecer-lhe-á a serpente, vigilante desde há muitas eras, que subirá pela espinha do aventureiro atrevido e lhe irá dar um beijo na testa. E eis que acontece o momento supremo da lenda e decisivo para o protagonista arrojado: se ele se arrepiar, ficará encantado no fundo da nora de onde não mais sairá, mas se vencer a serpente e não se arrepiar, ganhará o tesouro e usufruirá das suas imensas riquezas.

Importa referir neste passo que é precisamente na Tradição Aldeã e Camponesa que esta forma de comunicação e de educação milenares se conservam ainda, apesar de tudo... Uma aldeia possui tradicionalmente os seus ritmos/ritos e os seus tempos/templos próprios, enquadrados naturalmente por Ciclos Anuais, correspondentes às festas religiosas locais e ao calendário dos trabalhos agrícolas, onde o sagrado e o profano se (con)fundem harmoniosamente.
Em última análise, os contos tradicionais e as lendas, de modo diverso, incorporam em si uma explicação do inexplicável. São contados pelo contador e são intuídas as mensagens pelos ouvintes, estabelecendo-se entretanto, uma relação mágica, total, holística, religiosa...

Façamos aqui um parêntesis para focar muito rapidamente a importante problemática do Holismo, conceito relativamente recente nos meios científicos e culturais, contendo em si subjacentes as ideias de integração, de totalidade, numa perspectiva abarcante de toda a realidade humana que faz parte integrante das nossas relações quotidianas, enquadradas pela Natureza e pela Cultura, agora olhadas enquanto duas faces da mesma moeda. Neologismo que se poderá identificar com uma perspectiva globalizante da Vida numa visão macroscópica, sistémica e ecológica. Conceito que vai obrigatoriamente relacionar-se com a Visão Unitária da Vida e do Homem, em que nada se encontra desligado e ou separado de nada, interpenetrando-se os conceitos, os átomos e as acções do e no quotidiano...pois tal como nos deixou registado Hermes Trimagistos na sua Tábua de Esmeralda:

«É verdadeiro, completo, claro e certo. O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é igual ao que está em baixo, para realizar os milagres de uma única coisa.»

Olhar os contos tradicionais a partir desta perspectiva holística, que tem tanto de abarcante como de sacralizante, permitir-nos-á a compreensão mais profunda das suas mensagens, permitindo-nos ainda, através dessas narrações, encontrar pontos comuns que unem as diferentes culturas, os diferentes povos e nações humanas, numa única Cultura Universal. A Linguagem e o substractum dos Contos Tradicionais são realmente Universais...
Aprofundando um pouco mais a perspectiva holística, vemos que as leis naturais começam a pouco e pouco a ser vistas como partes de um universo holístico no qual a ordem subjacente se desenvolve numa ordem muito explícita, que as leis naturais exemplificam em detalhe. Entidades e objectos separados não poderão ser significativamente estudados quando isolados do resto do universo. Existe uma relação mística (total) entre o observador e o observado, mesmo em disciplinas tais como, por exemplo, a física atómica. Existem muitos sistemas abertos inter-relacionados no mundo, incluindo diferentes unidades tais como o átomo, a célula biológica e o homem, que funcionam e evoluem, regulados pelo mesmo princípio auto-organizador no universo.
O homem espiritual e o homem holístico (o místico-religioso e o cientista) preocupam-se respectivamente com a busca do auto-conhecimento e com a busca das causas últimas da manifestação da Vida. Em última análise, ambas as demandas, com eventuais metodologias distintas, preocupam-se com a qualidade das coisas, com a Vida enquanto sinónimo de Totalidade, e, qualquer que seja o Caminho, qualquer que seja o início da pesquisa, a preocupação essencial e fundamental de ambos é caracterizada muito marcadamente por uma Ontologia das Origens, onde o Imaginário Real está presente, é, sempiternamente na base orgânica do entendimento do homem e da natureza em relação permanente com o Todo, isto é, com o Estado de Ser. Lembro uma curta citação de Menéndez Pelayo publicada nos seus “Estudios de Critica Literaria”, que diz:

«Muchas puertas llevan a la encantada ciudad de la Fantasía: no nos empeñemos, pues, en cerrar ninguna de ellas, ni en limitar el número de los placeres del espíritu.»

Tradicionalmente, contar um conto, o acto em si, reveste-se de uma importância relacional fora do comum, porquanto os sentidos da narração transmutam-se, através das vivências interiores, imaginárias, intuitivas dos ouvintes, em Sentidos para a Vida.
A disponibilidade na relação, o encontrar um sentido para a vida, são actos fundamentais para o homem moderno e citadino (re)descobrir.
Os contos tradicionais com a sua sabedoria milenar, poderão ajudar-nos a abrir as portas para uma relação humana qualitativamente diferente.

Em última análise o homem é um ser intrinsecamente religioso. E encare-se este conceito na perspectiva de que o homem possui em si a capacidade de compreender e de efectuar a re-ligação das partes com o Todo. Re-ligar, eis a chave essencial para a compreensão do organismo homem e do organismo social – ambos vivos e susceptíveis de se reproduzirem e de evoluírem no tempo e no espaço das suas relações e interrelações na e com a Natureza.
O homem vive para penetrar e conhecer os segredos telúricos, sagrados e universais encerrados no Templo da Natureza, transformando-O e transformando-se. O animal atinge tão só o limiar do Portal dos Sages. O primeiro tem acesso ao Espírito Universal, o segundo fica prisioneiro da forma, e, subjugado, não consegue a verticalidade nem a liberação da mão (gesto) e da face (palavra), que o deveriam tornar num deus.
Nos contos tradicionais o homem comum, além da capacidade, tem a possibilidade de conhecer e de, através de transmutações de carácter mágico e onírico, penetrar esses segredos telúricos e aquela Tradição-Sageza que o transformam num Ser Real...
De tudo isto se evidencia que a importância da relação humana reside principalmente no Ser (Ser Consciente) e nunca no estar. Implicando este último concepções de espaço e de tempo limitadores da Relação Total. As partes são formadas pelas dimensões espaço-tempo enquanto que o Todo pertence à dimensão do Ser (Consciência, Logos), aquela dimensão que reside além das palavras e dos efeitos. O Ser adivinha-se através da Voz do Silêncio...
Analisemos então a palavra e a linguagem e a sua importância na Relação e na Comunicação humanas, sendo todos estes conceitos e realidades, de facto fundamentais para a vivência e para a compreensão dos Contos, ontem como hoje.

«(...) Se nós escutássemos o silêncio uns dos outros, em vez de meramente escutar palavras faladas, haveria maior compreensão e espírito de boa-vontade nas relações humanas. Justamente como numa melodia o que importa é o intervalo entre duas notas, também na vida é o intervalo entre as palavras e acções que é da maior significação. É neste intervalo que se pode perceber a qualidade de um ser. Ouvir a melodia é, portanto, compreender a qualidade dos homens e das coisas. (...).» (3)

O homem conseguiu um ganho cultural e espiritual na aquisição da linguagem. No entanto há que compreendê-la enquanto uma extensão (um meio) física e psicológica do ser humano e não enquanto um fim (uma causa). Há o perigo real de se confundir a extensão com a própria origem, com a própria fonte dessa extensão. Há o perigo, sempre presente, de se confundir o sujeito com o objecto, o ser com a manifestação desse ser.
Como disse o escritor, poeta, pintor e dramaturgo português Almada Negreiros:

«Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.»

Por outro lado, o investigador moderno da Sabedoria Sagrada e dos Mistérios do Antigo Egipto, Schwaller de Lubickz numa das suas obras refere que «não é preciso imaginar nada: é preciso calar... e escutar... É preciso olhar no silêncio, sem querer ver e aceitar o Nada, porque ao que o homem denomina por “nada” isso é a Realidade».
Realmente uma das provas mais difíceis da Iniciação Tradicional é a do Silêncio. Em o que o neófito tem de se enfrentar a si próprio, em que tem que calar a mente tagarela e justificadora, as emoções constrangedoras e apaixonadas, as sensações ilusórias e deformadoras da Realidade, para que o Príncipe possa (re)descobrir a Princesa Adormecida no seu leito do Palácio Encantado e despertá-la para a Vida através de um beijo de Amor. Para que isto aconteça, a disponibilidade do Ser deverá ser total!
Diz-nos Mircea Eliade (4) que:

«No mundo Ocidental, a iniciação no sentido tradicional e estrito do termo há muito que desapareceu. Mas os símbolos e os cenários iniciatórios sobrevivem a nível inconsciente, especialmente nos sonhos e universos imaginários.(...).
(...) Num mundo dessacralizado como o nosso, o “sagrado” encontra-se presente e activo principalmente nos universos imaginários. Mas as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total, não menos importantes que as suas experiências diurnas. Isto quer dizer que a nostalgia das provas e cenários iniciatórios, nostalgia decifrada em tantas obras literárias e plásticas, revela o anseio do homem moderno por uma renovação total e definitiva, uma renovatio capaz de mudar radicalmente a sua existência. (...).»

São as tradições, tais como as dos contos e lendas aldeãs, que, tanto pela sua riqueza antropológica e mítica, como pela sua complexidade vivencial, conferem toda uma idiossincrasia a um Povo e o ajudam a definir e a re-criar continuamente uma Identidade Cultural própria. Pela desmontagem dos ritos e dos mitos subjacentes a estes costumes adivinhamos o cruzamento de culturas, de crenças e de tradições de diferentes origens. Contudo, o olhar do investigador não deverá nunca ser limitado pelo dogma e/ou pela ideologia eventualmente dominantes, que cristalizam e condicionam pela sua acção, valores universais tais como a Verdade e a Liberdade entre os homens. É necessário cada vez mais olhar sem julgar, é necessário possuir a humildade que nos permitirá aprender com o próprio Povo, pois sem ele, não seríamos ninguém...

Como conclusão não gostaria deixar de frisar a importância de vivermos o dia-a-dia plenamente conscientes das mensagens de beleza, de riqueza e de harmonia que até nós chegam, nomeadamente por via da Sabedoria Popular Tradicional. Gostaria sinceramente que este pequeno contributo trouxesse alguma luz para melhor conseguirmos a compreensão de nós próprios, para melhor conseguirmos viver em harmonia e paz a Relação Humana, raiz do Desenvolvimento e da Cultura e clarificadora do Espírito. E, tal como nos transmitiu Rainer Maria Rilke, neste seu poema, mensagem de beleza e de esperança:


A Vida, não tentes compreendê-la,
e então ela será como uma festa.
E que cada dia te aconteça
como a uma criança que, ao caminhar,
de cada sopro do vento
vai recebendo presentes de flores.

Apanhá-las e guardá-las,
nem nisso pensa a criança.
Tira-as devagar do cabelo
onde se sentiam tão bem,
e estende as mãos aos jovens anos
para receber novas flores.

Rui Arimateia

NOTAS:
(1) Comunicação apresentada in I SEMINÁRIO INTERNACIONAL: CUENTOS Y LEYENDAS DE ESPAÑA Y PORTUGAL, Faculdad de Educación de Badajoz, 21 de Novembro de 1996
(2) D. MARIO ROSO DE LUNA, in “Prólogo” de Por el reino encantado de Maya, Madrid, 1921 (pp.8-9).
(3) MEHTA, Rohit – Procura o Caminho, São Paulo, Brasil, 1962 (pp.70-71).
(4) ELIADE, Mircea – Origens, Lisboa, 1989 (p.152).

domingo, 22 de novembro de 2009

sol e lua branco e negro vida e morte ...


O CONTO DE ENCANTAR OU O ESPELHO NO FUNDO DO POÇO

A minha Idade de Ouro
é a minha Infância...

Uma abordagem aos Contos Tradicionais, aos Contos de Encantar reveste-se sempre de dificuldades acrescidas uma vez que estamos a tratar de aspectos ligados às profundezas psicológicas e espirituais de um povo.
É uma matéria que por si só mereceria a organização de vários Encontros, exactamente pelo facto de ser extremamente rica e complexa.

Gostaria de introduzir nesta reflexão alargada a constatação da existência de uma CULTURA NATURAL em cada indivíduo, que permite o entendimento e a escuta de um em relação ao(s) outro(s), independentemente dos conhecimentos intelectuais e eruditos, dos conhecimentos técnicos e teóricos. Esta Cultura Natural terá mais que ver com as vivências acumuladas por cada um... com as capacidades que cada indivíduo possui, em si próprio, para responder positivamente aos desafios da Vida... com as necessidades de todos para a construção, juntamente com os seus semelhantes, de um mundo melhor, mais verdadeiro, mais belo e mais sensível...
Será esta Cultura Natural a que se encontra na origem e na preservação ao longo de séculos dos Contos Tradicionais da Humanidade?
Será esta a Cultura Natural que se encontra subjacente na essência dos Contos Tradicionais e dos Mitos que constituem aquela corrente de união subterrânea que liga indissoluvelmente as gerações humanas entre si? Independentemente de raças, de credos, de cores?...

Por outro lado consideremos a existência de uma Identidade Cultural Tradicional – Alentejana, Portuguesa, no nosso caso – que se encontra em risco de desaparecer dando lugar a qualquer coisa um tanto vaga, amorfa e uniforme, e para mais importada do exterior e ideologicamente caracterizada como europeísta e europeizante... não no sentido de se considerar uma Europa constituída e enriquecida por diferentes regiões, mas uma Europa considerada exclusivamente na sua vertente economicista e mercantil passando por cima das diferentes marcas e identidades culturais dos povos que nela se encontram e acentuando as clivagens socioeconómicas Norte/Sul.

Perante o conjunto de problemas e de males sociais que se nos deparam nas relações sociais do quotidiano, o indivíduo, a família, os grupos sociais encontram-se cada vez mais espartilhados física, psicológica e espiritualmente.
Problemas sociais tais como a falta de emprego; a competição desenfreada para a obtenção de um lugar que assegure um rendimento familiar mínimo; o rápido crescimento do extracto etário da 3ª Idade e a emergência urbana de uma 4.ª Idade. Males sociais como a droga e a tóxico-dependência, a violência, o racismo e a xenofobia que emergem por toda a parte.
Tudo isto tem como resultado imediato a fragilização do indivíduo e da família. Tudo isto vai condicionar a sociedade, complicá-la e desestruturá-la, apontando-lhe um fim que quase podemos profetizar escatologicamente como estando próximo.
Daí todos nós sabermos que a mudança terá de ter um carácter inadiável e inevitável para que valores como o Bom, o Belo e o Verdadeiro voltem à ribalta dos objectivos autênticos de sociedade e de socialização, e se constituam enquanto pragmáticas verdadeiramente humanas para reencontrarmos um Sentido para a Vida.
Os contos de encantar, principalmente ao nível da prevenção, poderão ter um papel extraordinariamente importante para as crianças e para os adultos de hoje.
Aspectos da Intervenção Sociocultural que têm que ver com a Prevenção, com a Educação e com a Mudança terão obrigatoriamente de ser reflectidos, e terão que, em conjunto, pugnar pela construção do Homem Novo.
A função educativa dos contos de encantar poderá exactamente estar na importância do fornecer ao imaginário da criança e do fazer relembrar ao adulto a Grande Verdade Antiga, o Grande Mito Universal de que a Vida é Una e o Homem faz parte d’Ela, possuindo em si uma acção verdadeiramente criadora e transformadora. A Grande Imagem que o conto fornece é afinal constituída pelas grandes imagens paradigmáticas procuradas pelo homem ao longo dos tempos, tais como, e volto a referir, o Bom, o Belo e o Verdadeiro, tais como a Sabedoria, a Força e a Beleza...
A possibilidade de criar imagens no seu íntimo, e de igualmente lhes conferir uma forma exterior, é uma qualidade essencial e singular do ser humano. A imagem possui para todos algo de fascinante e de arrebatador. Ainda hoje a vivência de imagens desempenha um papel deveras importante, conforme o demonstrou a rapidíssima ascensão sociocultural da televisão na nossa sociedade moderna.
Poder-se-á dizer que o homem moderno tem fome de imagens. Contudo existem questões em certa medida problemáticas que nos são colocadas e sobre as quais importa reflectir de modo claro e consciente:
– que qualidade de imagens consome a criança diariamente?
– que qualidade de imagens o adulto fornece à criança, durante o seu desenvolvimento, principalmente durante os primeiros anos da sua formação como ser humano?
Serão imagens que irão fortalecer a personalidade da criança com falsas necessidades (tais como o consumismo, a abundância, a guerra, o ódio, a violência gratuita, etc.) e falsos valores ideológicos? Ou, pelo contrário, vão fornecer-lhes imagens que contribuam construtivamente para a educação da vida social em comunidade e em relação como o que a rodeia? Fornecer-lhe imagens com o intuito de fazer com que os instintos agressivos/anti-sociais e negativos da criança se transformem em instintos virados para a socialização e coesão social do grupo ao qual pertence?
A criança necessita de imagens que lhe forneçam valores essencialmente humanos e criativos; ao identificar-se com eles, na relação com os seus semelhantes vai querer usá-los, imitá-los, experimentá-los... em liberdade.
Os homens de hoje somos seguidores acérrimos de um estar e de um ser a que convencionámos denominar por modernidade, e que caracterizámos segundo diversos itens conforme o nosso estado de espírito, o nosso grupo socioeconómico de pertença ou de referência, segundo a nossa ideologia, crença ou o nosso particular sistema de valores. No que diz respeito à nossa sociedade em particular, modernidade é, para o senso comum, sinónimo de consumo e este, por sua vez, contrapõe-se a estados do Ser e do Sentir, ignorando situações onde o Escutar e o Criar podem de facto permitir um Estar-em-plenitude com tudo o que nos rodeia. A modernidade e o consumismo hodiernos privilegiam o Ter e, em última análise, inviabilizam a concretização da célebre máxima socrática:

Homem, conhece-te a ti próprio!...
E, conhecendo-te, conhecerás o Universo e os próprios deuses!...


Os homens de hoje julgamos estar mais próximos da Verdade e da Realidade do que os nossos antepassados, para quem o contar contos de encantar tinha uma finalidade de re-creação... de recordação de vivências espirituais arcaicas, mas autênticas, porque transformantes e transformadoras, de mentalidades e de personalidades, principalmente ao nível da infância, onde tudo era bebido insaciavelmente até à última gota.
Os homens de hoje, teremos nós capacidade para uma compreensão total da Verdade? Daquela Verdade cantada poeticamente e assumida de forma onírica e velada nos Contos de Encantar que até nós chegaram através da Tradição Oral?
Para o homem de hoje, contudo, parece-nos inatingível uma profunda compreensão dessa mesma Verdade; e nós, para ultrapassar a frustração e a incapacidade que nos (a)parecem inatas, vimos transformando e espartilhando o que julgamos entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, que nos ajudam a dominar, ou antes, a domesticar e a tentar modelar, a nosso gosto, aquilo que julgamos ser a Realidade e a Vida... segundo os nossos próprios juízos e critérios. Sempre olhamos para o exterior de nós próprios quando queremos compreender qualquer mistério vital, sempre temos julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, nalgum livro dito sagrado, em qualquer local ou pessoa investida de autoridade. Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza:

«Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...»,

resta-nos a possibilidade de encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser... é o nosso génio ...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluírem através de nós como os grãos de areia escorrem através da nossa mão aberta, a realidade que julgamos rodear-nos assume cada vez mais uma condição virtual. A matéria é olhada de modo completamente diferente pelo cientista deste fim de século, em relação ao seu colega de há vinte, trinta, quarenta anos... Toda a imensa evolução tecnológica e científica, apesar de nos abrirem novas perspectivas para a compreensão da matéria, da vida manifestada, vem-se também deparando com complexidades cada vez mais ténues, mais subtis, de cada vez em dimensões de estar e de ser mais inacessíveis, onde o acaso e a Consciência irão ter progressivamente alguma coisa a dizer... Nem na própria morte nós poderemos descansar o nosso espírito indagador, elegendo-a como a única certeza nesta vida...
Poderemos então perguntar: o que nos resta, enquanto seres vivos dotados de inteligência, de capacidade de perguntar, de procurar e de encontrar?... Talvez tão só o tomar consciência dessa capacidade e sorrirmos perante aquela POSSIBILIDADE de viver o que dia-a-dia, minuto-a-minuto, acontece perante nós próprios, em nós próprios, e nos faz ouvir muito suavemente, muito subtilmente, no fundo da nossa ténue Consciência: «Fecha a mão!», e, ao fecharmos a mão, depararmos com três grãozinhos de areia que conseguimos suster... E com que alegria os olhamos, tal como uma criança olha um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, pelas coisas mais simples que encontrou ao sabor do vento durante as suas brincadeiras inocentes...
Não queria deixar de vos apresentar um pequeno texto de Almada Negreiros, denominado A Verdade:

«Eu tinha chegado tarde à escola. O Mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! Quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...»
(1)

E conseguiremos reviver o estádio de infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada de adultos, procurando a verdade absoluta e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do dia-a-dia?
Tal como diz o Poeta:

não se gastou nem se perdeu a infância
a nossa infância

ficou junto escondida em qualquer canto da vida
sem mudança igual a ser

como a vida que mora por dentro do viver
(2)


Para o homem de hoje, os Contos de Encantar podem muito bem ser aqueles grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias complicadas e intricadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade. O Conto de Encantar poderá ser eventualmente aquela possibilidade de olharmos para nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais...
Os homens de hoje, encontramo-nos a redescobrir os Contos de Encantar. Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação, observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela ­– ela lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas que se formam na sua pequena cabeça.
Importante é esta pequena reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen (3):

«A infância não é coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! Voltar a captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»

Goethe, um dos grandes poetas da humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:

«O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo. Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos. Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a princesa não casará com esse miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração». (4)

Segundo Bruno Bettelheim:


«Os contos de fadas, para além de uma deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»

E é ainda Bettelheim quem afirma:

«A história de fadas é essa dádiva de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a desembrulhá-lo com felicidade!».

Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice Vieira, refere:

«Pode haver coisa mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»

Percorramos todos os velhos contos que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
O homem de hoje , tal como o homem de ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus, Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida que a Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma, há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar histórias maravilhosas aos seus netos.
E a criança aqui é um elemento-chave fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses mitos.
E porquê, neste virar de século – e de milénio –, os homens de hoje , pelo menos os que possuem responsabilidades ao nível da Educação, da Intervenção Sociocultural, da Psicologia, da Medicina e de muitas outras áreas afins e complementares, fazemos ressurgir os contos de encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da humanidade?
É muito possível que uma das respostas nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
A relação que tradicionalmente se estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre – não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em sensibilidade.
O acto de contar um conto nos tempos remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar de uma flor... acontecia e era um momento vivido como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
A importância de um Sentido para a Vida era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
A dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira....
Debrucemo-nos muito rapidamente sobre a sociedade moderna e poderemos ver como ela gera elementos desestruturantes, no sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão – os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso SER mais profundo...
A nossa moderna sociedade urbana caracteriza-se por exigir aos seus membros cada vez maior rapidez, em todas as relações humanas. Não há tempo para parar um momento, tudo possui rodas, o som foi ultrapassado, a vida quotidiana torna-se uma corrida contra-relógio. O êxito pertence ao mais rápido, ao mais competitivo (que raramente é o mais capaz...); “circular é viver, parar é morrer” – dizem os slogans publicitários nas bocas do senso comum. O lento, o velho (o idoso), encontra-se condenado, “arrumado”, no asilo, simplesmente à espera da libertação da sua “incapacidade” e da sua “lentidão”: a morte. O stress é o senhor da cidade. É urgente a mudança...
Nesta sociedade tudo se consome, tudo se compra e se vende. Eis-nos perante a era dos “instantâneos”, do “pronto a servir”. A rapidez alia-se à eficiência para formar ou para satisfazer necessidades, muitas das quais artificiais, falsas. A alienação impera. É urgente a mudança...
Da electricidade às auto-estradas da informática, dos audiovisuais à cibernética e à estimulação virtual, a evolução da electrónica nos últimos anos tem sido verdadeiramente alucinante. Terá o homem de hoje, teremos nós capacidade para dominarmos, para compreendermos estas mudanças radicais nos conceitos de tempo, de espaço, de matéria?...
Qual o espaço psicológico reservado para o Sagrado não instituído?
E o que terá isto tudo a ver com os contos de encantar e com o acto de os contar?
Vejamos então:
– As avós cada vez moram mais longe (e com certeza que não ficarão ligadas aos netos através da Internet!...).
– Os pais cada dia têm menos tempo disponível para uma relação profunda, sem pressas, com os filhos.
– A TV, o Vídeo, o Computador encontram-se sempre ligados nos sítios mais visíveis das casas.
– As mentalidades urbanas e modernistas consideraram que as crianças deveriam ser poupadas a estes “contos absurdos”, que nada têm a ver com os problemas do país, com os exercícios militares no mar da China, com o rebentamento de minas na Bósnia, ou então com os massacres realizados pela UPA(5), nos anos 60 em Angola e fotograficamente tão bem documentados em revista de grande tiragem nacional... É urgente a mudança...
– Os adultos começaram a considerar os contos como histórias de horrores, transmissores de sentimentos e pensamentos violentos, que traumatizavam as crianças - a geração futura – e vá de “suavizarem” os ditos contos: o João Ratão deixou de cair no caldeirão... A Bela Adormecida não se picou no fuso da fada má... À Branca de Neve, em vez de a ter mandado matar na floresta por caçadores, a madrasta mandou-a para um colégio interno...
Do silêncio criador do conto de encantar quereremos dar às nossas crianças o silêncio apodrecido desta modernidade alienante? É urgente a mudança...
O homem moderno, teremos de encontrar uma perspectiva diferente sobre os contos de encantar tradicionais, ou com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente, mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir viver aquém e além da fronteira do espelho, símbolo do símbolo.
Recordemos Victor Hugo quando afirma que:

«É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».

Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde está oculta a Pedra Filosofal dos antigos Alquimistas.

Rui Arimateia

NOTAS:

(1) NEGREIROS, José de Almada - poesia , Lisboa, 1971 (p.179).
(2) BRANCO, Beatriz Serpa -A Face e as Sombras, Évora,1969 (p.29).
(3) Cit. por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45).
(4) Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa, 1984 (p.195).
(5) União dos Povos de Angola, movimento político liderado por Holden Roberto.