«Ukko, o Grande Espírito, cuja moradia é em Yûmala (o Céu ou Paraíso),
escolhe como veículo a Virgem Mariatta para se encarnar por meio dela em Homem-Deus.
Ela concebe colhendo e comendo um baga vermelha (marja).
Repudiada pelos pais, dá nascimento a um "Filho imortal" numa manjedoura de um estábulo.»
in KALEVALA
Os Cristãos celebram, por alturas do Solstício de Inverno, a Festa chamada Natividade ou Natal, para comemorarem o nascimento de Jesus - o Cristo, o Salvador do Mundo. Festa religiosa tradicional que celebra a passagem do Sol pelo Solstício. Festa que sofreu diversificadas evoluções ao longo dos milénios, consoante os povos e as mentalidades que dela se apropriavam culturalmente.
Todavia, esta Festa foi instituída canonicamente tão-só a partir do século IV da nossa Era pelo Papa Júlio I. O costume da festa religiosa em finais de Dezembro tinha origens remotas, a Igreja de Roma apenas fez coincidir o nascimento de Jesus em 25 de Dezembro para, de certo modo, sacralizar os festejos pagãos pré-existentes, reformando toda a manifestação da Sabedoria-Sageza contida nos Antigos Mistérios.
A tradição do Natal, por conseguinte, não é apanágio exclusivo dos Cristãos, com a representação da Natividade do Menino Jesus, com o nascimento de um Menino-Rei de uma Virgem.
Já os antigos Druidas celtas celebravam o dia 25 de Dezembro com iluminações. Mitra, avatar oriundo da antiga Pérsia, nascia de uma Virgem neste mesmo dia, assim como Horus, uma das figuras da antiga trindade Egípcia. Igualmente, entre os Gregos nascia Baco e, entre os Fenícios, Adonis; na Índia temos também o exemplo de Agni...
Todos eles com o significado da representação ou manifestação do Deus-Sol entre a Humanidade. Todos eles personificações do ancestral Mito Solar Cósmico - que considerava o Sol como a Fonte inesgotável de toda a existência e o Símbolo, por excelência, do Ser Divino e origem de toda a criação, o Logos, a manifestação física do Verbo Inefável e Eterno -, todos eles festejavam o (re)nascimento do Astro após os longos meses de invernia. Era a vitória da Luz sobre as Trevas, era o nascimento do neófito para a luz, e foi exactamente no Solstício de Inverno que a Igreja Cristã fixou o nascimento do Restaurador das Iniciações...
No nosso País tempos houve em que se acendiam madeiros nos adros das igrejas - local sagrado e de culto do Deus Solar, pois Cristo está por demais identificado com o próprio Sol... Mas, são tempos passados, resistindo, esporadicamente, tão só uma ou outra reminiscência destes actos verdadeiramente comunitários, pois a lenha ou o madeiro era transportado para o local do sacrifício por todos os vizinhos.
Porém, hoje em dia, a preocupação real da generalidade das pessoas está direccionada para o consumismo que tão bem caracteriza a nossa sociedade moderna, livre e ocidental ... O Natal - totalmente profanizado, no sentido de ter sido esvaziado dos conteúdos que nos são oferecidos pelo Mito cosmogónico e pelo menino Jesus, símbolo de pureza e de pobreza, de partilha e de amor -, o Natal, fizemo-lo sinónimo de consumo, corporalizado pelo frenesim das compras das vésperas e das trocas de prendas, passando-o em lautos banquetes... Poderemos então, perguntarmo-nos: e o que resta para o Outro? - As prendas oferecêmo-las a nós próprios, nos banquetes devoramos muito mais do que o razoável, para não dizer do que necessitamos... E o Outro? E os Outros? E os milhões e milhões de outros que neste preciso momento necessitam desesperadamente nem que sejam umas pitadas daquele Espírito de Natal que sabemos qual é mas que não temos a coragem, nem a sensibilidade, nem a disponibilidade de assumir porque estamos demasiadamente ocupados em olhar o nosso umbigo... ao invés de escutarmos o Coração e de praticarmos o acto da Dádiva?!...
Ouçamos as palavras e o testemunho da parteira Zaquel, de Belém de Judá, descrevendo um episódio que terá acontecido há quase dois mil anos:
«(...) Naquele momento pararam todas as coisas, silenciosas e atemorizadas: os ventos deixaram de soprar; não se movia folha alguma nas árvores, nem se ouvia o ruído das águas; os rios ficaram imóveis e o mar sem agitação; calaram-se as nascentes das águas e cessou o eco de vozes humanas. Reinava (por toda a parte) um grande silêncio. Até os próprios povos abandonaram naquele momento o seu vertiginoso movimento. O curso das horas quase havia parado. Todas as coisas se tinham abismado no silêncio, atemorizadas e estupefactas. Nós (estávamos) esperando a chegada do Deus das alturas, a meta dos séculos.
Quando chegou, pois a hora, descobriu-se a virtude de Deus. E a donzela, que olhava fixamente o céu converteu-se (como) numa vinha [estátua branca], pois já avançava o cúmulo dos bens. E enquanto a luz jorrava, a donzela adorou Aquele a quem reconheceu haver ela própria dado à luz. O Menino resplandecia tal como o Sol. Estava limpissimo e era gratissimo à vista, pois só Ele apareceu como a paz que apazigua todo (o universo). À hora do nascimento ouviu-se a voz de muitos espíritos invisíveis que diziam a uma só voz: "Amén". E aquela luz multiplicou-se e obscureceu com o seu esplendor o fulgor do sol, ao mesmo tempo que esta gruta se viu inundada por uma intensa claridade e por um aroma suavissimo. Esta luz nasceu da mesma maneira que o orvalho desce do céu à terra. O seu aroma é mais penetrante que o perfume de todos os unguentos da terra.
Eu, por minha parte, fiquei cheia de assombro e de admiração e o medo apoderou-se de mim, pois tinha fixo o meu olhar no intenso resplendor que emanava a luz que tinha nascido. E esta luz foi-se pouco a pouco condensando e tomando a forma de um menino, até que apareceu um infante (tal) como costumam ser os homens ao nascer. Então eu tomei coragem: inclinei-me e toquei-o, levantei-o nas minhas mãos com grande reverência e enchi-me de espanto ao verificar que não estava minimamente manchado, mas que o seu corpo era nítido, como acontece com a orvalhada do Deus Altissimo; era ligeiro de peso e radiante ao olhar. E enquanto me surpreendia ao ver que não chorava, como costumam fazê-lo os recém-nascidos, e o fitava com grande atenção, dirigiu-me um suavissimo sorriso; depois, abrindo os olhos, fixou em mim um penetrante olhar e simultaneamente saiu da sua vista uma grande luz como se se tratasse de um relâmpago. (...).»
[in Liber de Infantia Salvatoris, Cod. Museu Britânico,Séc.IX?]
O Natal - Festa Cíclica que deveria inspirar os homens para que vivessem continuamente aquele estado de inocência e pureza que é a infância, que assumissem o regresso à Infância... Deste modo, a dramatização do Presépio - através da sua construção com as pequenas figuras de barro, com o musgo e todos os objectos que permanecem na nossa memória mais longínqua - deveria constituir uma oportunidade do homem reflectir o seu estar e o seu ser, autenticamente humanos, no mundo.
Não é demais reafirmar que a Festa do Natal é, acima de tudo, a Festa do Cristo, individualidade ímpar na Tradição Religiosa da Humanidade. Esta imensa Entidade que o cérebro humano não apreende na sua real dimensão, pertence ao domínio da intuição e do espírito, embora se manifeste pelo pensamento, pela emoção e pela sensação física. Daí que possamos eventualmente olhar essa Excelsa Figura em três dimensões (entre outras) diferentes, embora complementares: a dimensão Histórica, a Cósmica e a Mística.
O aspecto Histórico do Cristo está relacionado com aquele Menino Jesus que há cerca de dois mil anos nascia em Belém de Judá, na Palestina. Manifestação física e susceptível de ser verificada na história dos homens.
O aspecto Cósmico tem que ver com a manifestação do Cristo na Natureza, enquadrado astronomicamente (como atrás se viu) em todo o Universo. Cristo enquanto representante de um Logos-Solar (conceito que eventualmente pode ser traduzido por Deus, por Todo...) num Cosmos manifestado e sensível, tal como o vemos, o sentimos, o compreendemos.
O terceiro aspecto, quiçá o mais humano e simultaneamente o mais profundo, terá que ver com a faceta Mística do Cristo, relacionada com o tal Menino passível de ser-nascido no Coração ou na Gruta de todo o ser humano, nas profundidades de todo o indivíduo.
No entanto, para ser apreendida, intuída, na sua profundidade religiosa (de re-ligare), terá que ser vivida, por cada um de nós, interiormente e em liberdade. Primeiro porque é a vivência interior de um Símbolo que poderá vir a conferir a capacidade criadora e transformadora de nós próprios. Segundo, em liberdade, pois não transformemos essa Mensagem em dogma instituído, em prisão de nós próprios, ou em meia verdade, ou em autoridade repressiva... o Cristo é realmente um Ser livre - no grande sentido espiritual do termo - e de uma interioridade tal, conseguindo que a Sua chamazinha interior se transformasse num foco, num fogo radioso de luz ígnea, num autêntico Sol vivificador de Universos, de Indivíduos...
Mas, poderemos, novamente perguntar, que significado terá, hoje em dia, o Presépio e o Natal? Qual o modo, pelo qual, o homem vive essa realidade e essa época festivas? Encontrar-se-á atento à Mensagem subjacente, às perenes e inefáveis Realidades transmitidas!? E os pais-natais, personificando símbolos de puro consumismo, e anti-pedagógicas porque alienantes, quais os seus papéis na dramatização espiritual do Natal e do Presépio?
O Espírito do Natal, através das suas muitas e diversas manifestações tradicionais, da aldeia ou da cidade - o Presépio, o Madeiro, a Missa do Galo, a Consoada e a Missadura -, só fará humanamente sentido se estiver consolidado com valores autenticamente fraternais onde a partilha e a disponibilidade prevaleçam e o Humano se torne mais Solar, mais divino...
Atentemos, para terminar, nas palavras inspiradoras de Rabindranath Tagore quando afirma que «cada vez que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda confia nos Homens.».
Rui Arimateia
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