1. Se as «Casas Pintadas» que hoje subsistem foram bens patrimoniais do Almirante D. Vasco da Gama, não se encontra comprovado documentalmente.
Em documento do Século XVI[1] (1591) lê-se:
“… casas do Conde da Vidigueira q estam junto ao escrivão Cunha e junto da Inquisição.” Pertenciam a D. Francisco da Gama, 4.º Conde da Vidigueira e futuro Vice-Rei da Índia (neto de D. Vasco da Gama).
2. Ainda segundo a tradição, não documentada, D. Vasco da Gama terá vivido em Évora entre os anos de 1507 e 1519, casando-se nesta cidade com D. Catarina de Ataíde…
3. Todo este quarteirão foi profundamente modificado em 1636 pelo Arq.to Mateus do Couto, aquando da venda pelos Condes da Vidigueira ao Santo Ofício. O bloco original, de proporções reduzidas, tinha fachadas para os terreiros do Marquês e da Sé e para uma rua pública que o separava do Paço dos Gamas, compreendendo um grupo de casario que el-rei adquiriu aos herdeiros do Coudel-Mor D. Francisco da Silveira.
O Paço dos Gamas era, em 1591, habitado por D. Francisco da Gama, 4.º Conde da Vidigueira e futuro Vice-Rei da Índia. Depois de 1597 as casas foram vendidas à Inquisição. Em 1662, por autorização municipal, que aprovou o projecto do Arq.to-mor Mateus do Couto, o primitivo Paço da Inquisição sofreu grandes obras de ampliação, absorvendo parte da moradia dos Condes da Vidigueira.
4. Refere-nos Túlio Espanca[2] que “Tristão da Cunha vivia em casas grandes no Terreiro da Sé, as quais foram, mais tarde, ocupadas pelo Tribunal do Santo Ofício. Contíguas ficavam as residências de Pero Borges, as dos herdeiros do coudel-mor e a pousada de Roque Pires e do licenciado João Dias.”
5. Na fronteira das casas teria, segundo a tradição, mandado pintar D. Vasco da Gama, frescos alusivos às suas viagens descobridoras no Oriente.
Podemos então ler na obra do P.e Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa[3], em 1728, em relação às ditas casas de Vasco da Gama: “… suas casas eram as que chamamos pintadas, por causa dos bichos, e animais, pouco ha que D. José da Gama (que é 5.º neto do nosso D. Vasco da Gama, Arcediago da Sé do Algarve e Deputado do Santo Ofício de Évora) nos disse que o ouro que se está ainda vendo entre estas pinturas, he do primeiro que o dito D. Vasco trouxe da India…”.
Refere o eminente historiador A. Filipe Simões em 1871 que, na altura, “ainda aqui existem pessoas que se recordam de ter visto por cima da porta das casas chamadas de Vasco da Gama, pintados e dourados, uns índios, entre árvores e objectos orientais, que se diziam allusivos ao descobrimento da Índia”[4].
6. Segundo Túlio Espanca, dos primitivos edifícios subsistem algumas janelas quinhentistas – uma geminada, de arcos de ferradura e inspiração mudejar – abóbadas nervuradas no interior e uma ala do claustrim, com oratório privativo, recoberto por pinturas murais a fresco, de espírito renascentista. Espanca, por conseguinte, integra o espaço das actuais pinturas sobreviventes, na propriedade dos Gamas, não obstante este claustrim se encontrar numa cota muito superior aos restantes edifícios e ostente, pintado, o brasão da família nobre eborense dos Silveiras Henriques, como mais à frente se verá.
7. Quanto às pinturas actuais, temos que:
Pinturas a fresco de símbolos sagrados e mitológicos, bem ao estilo da mentalidade das épocas de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I.
Friso com pintura essencialmente decorativa: vasos, anjos e folhagem nitidamente ao gosto clássico renascentista, rematado por um friso menor de composição geométrica.
Do friso às abóbadas: coloração homogénea onde os ocres, os castanhos e os vermelhos velhos se impõem. É-nos apresentado um verdadeiro mundo de simbologia animal com animais do bestiário contemporâneo do autor ou autores: duas sereias – mulher-ave e mulher-peixe –, dragões, basiliscos, hidra de sete cabeças, pavão e ganso, mochos e falcões, patos e andorinhas, leopardos e panteras, galos, perdizes, coelhos, raposas e veados, papagaio, além do simbólico pelicano encimando a porta da capela-oratório, e um solitário pastor a tocar gaita-de-foles tendo a atenção de diversos animais…E ainda, nas abóbadas, cordas com nós, em grupos de três…
Diz-nos a investigadora Y. K. Centeno, numa sua obra que:
“(…).
Os animais, representando instintos ou impulsos, por vezes antagónicos, são símbolos das forças (…) que é necessário integrar. O bestiário alquímico é extremamente rico. Cães, lobos, cisnes, veados e unicórnios, caracóis, leões, serpentes, dragões, salamandras, pavões, são alguns dos animais mais representados. Ligam-se aos elementos terra, ar, água e fogo, consoante os casos. (E aludem ainda às cores da obra, ou aos princípios em jogo).
(…).”[5]
Desconhece-se o autor das pinturas assim como persiste o problema da não datação dos frescos. Pintura de síntese e analogia…
Em relação à iconografia apresentada deste riquíssimo e simbólico bestiário, temos 5 grandes agrupamentos, a saber:
· o 1.º – o das garças – essencialmente luminoso, pelos animais que enquadra e olhando à sua simbologia. Conotações com o Paraíso Perdido?…
· o 2.º – o das sereias – truncado, pois a abertura da porta hoje existente fez desaparecer alguns elementos pictóricos. Conotações com a Ilusão e Queda?…
· o 3.º – o do pastor-músico – único antropomorfismo (completo) que podemos ver nos diferentes conjuntos. O Acordar?…
· o 4.º – o da hidra – que, em relação às figuras tanto neste quadro como nos anteriores é a mais imponente e monumental. A Grande Demanda?… A grande luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas…o Fim dos Tempos…
· o 5.º – encontramo-lo a rodear a porta de acesso à capela-oratório e é dominado pelo pelicano crístico[6], símbolo tão caro a El-Rei D. João II. Conotações com o Cristo/O Paraíso Reencontrado (perspectiva messiânica), a Redenção/Salvação…
No interior da capela-oratório podemos ver, frontalmente, a figuração da Sagrada Família. Na parede lateral direita (em relação ao observador), uma representação da Descida da Cruz. Na lateral esquerda podemos observar dois quadros pintados, alusivos à figura de S. Cristóvão e, tudo leva a crer, ao milagre da Missa de S. Gregório.
8. No tecto da capela-oratório, encontra-se muito bem pintado o brasão da família dos Silveiras Henriques, de Évora.
D. Fernão da Silveira, que herdou o ofício de coudel-mor de seu irmão Diogo da Silveira (1464), casando com D. Isabel Henriques, deu origem à linha de Silveiras coudéis-mor de Évora em tempo d’El-Rei D. Afonso V – usou armas esquarteladas de Silveiras (de prata, três faixas de vermelho) e Henriques (torre piramidal com dois leões de pé), segundo interpretação heráldica de D. Luís de Lancastre e Távora, marquês de Abrantes, em 1969.
A origem dos Silveiras Henriques:
· Nuno Martins da Silveira, 4.º Senhor da Casa e Quinta da Silveira, no termo do Redondo (1413), foi armado cavaleiro em Ceuta pelo Infante D. Duarte (1415). Foi embaixador de D. João I a Castela. Foi escrivão da puridade dos Reis D. Duarte e D. Afonso V. Por este último foi-lhe dado o foro de rico-homem. Teve os direitos reais da Mouraria de Évora e o ofício de Coudel-mor. Casou com D. Leonor Gonçalves de Abreu, em 1449 e usou as armas dos Costas (expostas no adro da Sé de Évora).
· Diogo da Silveira, 5.º Senhor da Casa e Quinta da Silveira. Foi 1.º administrador do Morgadio de Évora, e da capela do Senhor Cristo Salvador do Mundo (Convento de S. Domingos). Fidalgo da Casa d’El-Rei D. Afonso V e seu escrivão da puridade. Teve ofício de Coudel-mor e de Vedor-mor das Obras do Reino, tal como seu pai. Morreu numa expedição a África em 1464.
· Fernão da Silveira, que herdou o ofício de Coudel-mor de seu irmão, em 1464. Casando com D. Isabel Henriques, deu origem à linha dos Silveiras Coudéis-mores de Évora em tempo de D. AfonsoV – usou armas esquarteladas de Silveiras e Henriques.
· Nuno Martins da Silveira, o Moço, casando em Évora, a 15 de Agosto de 1482, com D. Filipa de Vilhena (filha do Senhor de Unhão), teve dez filhos, entre os quais António da Silveira que se celebrizou na Índia como Capitão de Dio, aquando do primeiro cerco de Dio.
9. Uma eventual interpretação do significado dos frescos só fará algum sentido se atendermos à existência em Portugal de todo um conjunto de doutrinas joaquimitas, herméticas e neo-platonistas muito em voga naqueles tempos. Recorde-se aqui que D. Afonso V, monarca de cultura ímpar, foi “Astrólogo, músico, alquimista provável, iniciado na cabala talvez pela mão de D. Isaac Abarbanel (1437-1508), seu conselheiro indefectível, almoxarife e rabi-mor de Portugal, Afonso V dedicou-se de igual modo à exegese bíblica e, sobretudo, aos cálculos das cronologias e à epilogística, como se deduz do passo seguinte de uma carta (1503) de Cristobal Colón aos Reis Católicos: ‘Santo Agostinho ensina-nos que o mundo terá fim aos 7000 anos da criação; e tal é também a opinião dos sagrados teólogos e do Cardeal Pedro d’Ailly. Como, segundo o cálculo do rei Afonso de Portugal, passaram já 6845, resta pouco até ao fim do mundo’.”[7]
Como curiosidade e para melhor enquadrarmos a figura de D. Afonso V, o historiador Barbosa Machado atribui-lhe o Tratado de melicia conforme o costume de batalhar dos antigos portugueses e o Discurso em que se mostra que a constellação chamada Cão Celeste constava de vinte e nove estrellas e a menor de duas, este, muito louvado por Zacuto Lusitano no seu De Medicorum principium Historia, impresso em Londres em 1614. Sete anos depois (1621)saíam dos prelos de Thomas Harper, na mesma cidade, os Five Treatises of the Philosophers Stone, apontando-se como autor para dois deles um “Alphonso, King of Portugal”.
Igualmente os Reis D. João II e D. Manuel I se rodearam de uma auréola de mística hermética que ainda hoje se encontra indecifrável pois que a nossa mentalidade moderna ainda não conseguiu a chave para penetrar esses Mistérios de Quatrocentos e de Quinhentos…
Quanto às pinturas em questão, de resto, a mensagem subjacente aos frescos, terá eventualmente que ver com as doutrinas escatológicas, joaquimitas e apocalípticas, por um lado apontando os fins dos tempos mas, por outro, apresentando a Revelação de Cristo e a Doutrina Messiânica da Salvação, principalmente devido à existência fulgurante da hidra (símbolo do mal) em combate com o pavão e com outros animais luminosos…
Os conjuntos dos cordões com nós: o principal facto que nos leva a pensar que todo este bestiário não foi pintado ao acaso, nem como mera decoração, mas que encerra uma mensagem (ou mensagens) cifrada(s), é a existência insistentemente declarada dos cordões com nós, pintados a fresco, tanto nas abóbadas de nervurada gótica do claustrim como na abóbada da capela oratório. Poderemos adiantar a hipótese de estarem directamente relacionadas com os Mistérios Cristãos de finais de Quatrocentos, todavia imbuídos de tal heterodoxia, no que diz respeito aos nós, que fez com que, uns anos mais tarde, a vizinha Inquisição os tivesse mandado caiar…
Vários autores propõem um leitura espiritual para estes denominados laços de amor, no nosso caso simbolizaria a memória do mar navegado e do fazer náutico, da empresa náutica à peregrinação espiritual. E notemos que a família dos Silveiras sempre esteve ligada com a Empresa dos Descobrimentos Portugueses – Nuno Martins da Silveira, recordemos, foi investido Cavaleiro pelas mãos do Infante D. Duarte em Ceuta; D. Diogo da Silveira, que acompanhou D. Afonso V em expedição à África, aí morreu a combater; António da Silveira, ficou célebre como Capitão de Dio; D. Gonçalo da Silveira, jesuíta, celebrizou-se na evangelização da Rodésia; e, finalmente, D. João da Silveira, que perdeu a vida em Alcácer Quibir…
O nó, com uma conotação espiritual de união mística com Deus ou com Cristo, significará compromisso, e simultaneamente, transmissão de conhecimento…uma reconstituição, uma religação com a Unidade perdida… a Palavra Perdida a ser reencontrada através de uma Empresa Espiritual…
R.A., Évora, Janeiro de 1998
Notas:
[1] Livro das Visitações dos oratórios desta cidade de Évora.
[2] In «A Cidade de Évora», N.º 63-64, 1980-81 ver, à pág.135, Rol de apontamentos curiosos, respeitantes à história da Cidade de Évora (1536).
[3] Biblioteca Pública de Évora, Ms.T.2.º cod CXXX/1-9.
[4] Carta a Teixeira de Aragão…
[5] in «A Alquimia do Amor», Lisboa, 1982 (págs.32-33).
[6]Louis Réau, na sua obra «Iconographie de l’Art Chrétien», Paris, 1955-59, contrapõe o pelicano cristológico, o que apresenta o bico virado para a esquerda, ao pelicano não-cristológico, com o bico voltado para a direita.
[7] Conceição Silva, Os Painéis do Museu das Janelas Verdes, Lisboa, 1981 (à pág.60).
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