Estória, Estória… Do Tambor a Blimundo
de
Celina Pereira
Este audio livro apresenta-nos dois contos da tradição oral africana – a lenda do Tambor – uma explicação fabulosa do aparecimento/invenção do tambor – e a estória de Blimundo – um grito de revolta que nos conta situações de injustiça extrema como a da escravatura, a da falta de liberdade, a da negação do usufruto libertador da palavra –, além de jogos tradicionais brincados e cantados pelas crianças de Cabo Verde mas também pelas crianças portuguesas, o fundo é comum. Oferece-nos ainda três mornas interpretadas magistralmente pela Celina acompanhada por um conjunto de músicos de grande qualidade.
Uma palavra de grande apreço para a ilustradora Claudia Melotti que nos ajuda a entranhar a estória não a revelando totalmente. A cor é extraordinária e o ritmo pictórico do desenho remete-nos para as cores de África.
“Quando eu ainda não sabia ler, brincava com os livros e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo”, referia Cecília Meireles no início dos anos da década de 50 do século passado.
Também em Portugal o Prof. João dos Santos se preocupava com esta coisa esquisita que é a “literatura infantil”. Dizia ele:
- “O Principezinho é, como sabem, dedicado ‘à criança que outrora foi, essa pessoa crescida’. Aí está quanto a mim a chave da problemática da literatura infantil: a dos autores saberem, ou não, falar às crianças através da criança que outrora foram.”
É Hora de Brincadeiras
Integração total da criança na vida em comunidade (nas aldeias do Alentejo e de Cabo Verde)
- direitos e deveres
- existência de sanções
- construção e desenvolvimento de diferentes linguagem(ens)
- a construção da Cultura
A Hora das Estórias
A magia da contadora de estórias da tradição oral
A importância dos contos tradicionais na assumpção da identidade cultural
A importância da transmissão deste Património / Matrimónio às crianças
A importante e fundamental transmissão da tradição pelos mais velhos:
“Estória, estória! – (diz o contador).
Fortuna do céu, Amén – Esta resposta da plateia remete-nos ao valor “fortuna” que é dado na tradição africana a todas as palavras que saem da boca dos mais velhos; neste caso só a estes é reconhecida autoridade para saber contar estórias.”
Também aqui no nosso Alentejo temos exemplos desta assunção da Autoridade Tradicional pelos mais velhos, nomeadamente através de um costume que as “Brincas” de Entrudo nos deixaram: no Sábado de Carnaval o “Fundamento” é pela primeira vez apresentado perante uma assembleia dos mais velhos do lugar a que pertencem durante o Baile. É o assim denominado o “Ensaio da Censura”...
A Tradição renova-se sempre que a transmissão acontece através da palavra, da linguagem, da música, da poesia… transmitida da boca ao ouvido.
Atentemos à expressão crioula utilizada por Maria de Lourdes Jesus na introdução:
“Lua noba na terra bedja” – “Esta expressão queria dizer que a Lua continuava a renovar-se perante uma Terra que continuamente envelhecia.” (...) “Quando era tempo de Lua Cheia todos nós, grandes e pequenos íamos dormir mais tarde. A Ilha [de S. Nicolau] iluminava-se com todo o seu esplendor criando uma atmosfera fantástica, propícia para se contar estórias durante todo esse período. (…). Discutíamos muito entre nós, brigávamos e fazíamos apostas sobre como terminaria a história. (…). As contadeiras de estórias alternavam-se e depois do jantar íamos a casa de uma delas ou sentávamo-nos à frente da porta da casa, onde ela também se sentava num banquinho ou num degrau. A contadeira quase sempre segurando o seu canhot (cachimbo que se usa na nossa terra), enquanto as crianças se sentavam no chão fechando o círculo à volta dela, num silêncio tumular, tendo por companheira a Lua. A contadeira de estórias entrava no mundo das fábulas pronunciando em voz alta a frase mágica: “Estória Estória”… e nós em coro respondíamos: “Fortuna do Céu, Amén”.
“Tia, tia, conta-nos uma estória! Conta, conta!
Não, esperem um pouco! Enquanto houver luz do sol, conforme a tradição, de dia não se contam estórias. Senão tens de arrancar uma pestana e enterrá-la na terra, para que as outras não caiam. Continuem a brincar que eu já volto.”
E então, com o Sol recolhido e a Lua a reinar no firmamento, poderíamos ouvir na Ilha de S. Nicolau em Cabo Verde:
“Estória Estória”…
“Fortuna do Céu, Amén”.
O acto de contar estórias encerra em si próprio um ritual, uma dramatização arquetípica, uma recriação paradigmática de um Eterno Presente, onde o mito tem sentido, actualidade e possibilidade de transformar quem o utiliza.
O conto tradicional é criador de um tempo e de um espaço de diálogo em profundidade que nos reporta para a realidade do Eterno Presente.
Contar um conto é um acto de comunicação, quiçá de comunhão com o outro e ou com os outros… É um acto de autêntica cura e de auto-cura… É um acto que compromete os sujeitos em comunicação e cria as condições para que aconteça o auto-conhecimento. É um acto onde se dá a emergência da Palavra. Onde se sente a urgência da relação entre os sujeitos e a negação consciente da relação sujeito-objecto. A Poética e a Infância, o Mito e o Sonho, a sua importância para a estruturação de uma personalidade harmoniosa, equilibrada e coerente.
Se estivermos no Alentejo poderemos ouvir:
“Ó Avó, conta-me um conto.”
E então:
“Era uma vez…”
E a comunicação, o milagre, acontece!...
Tanto psicologicamente, como vivencialmente, entramos num espaço sem espaço, num tempo sem tempo, onde o paradoxo, a metáfora, a alegoria, o símbolo e o mito se apropriam de toda a acção e de toda a narrativa e acontece qualquer coisa de criador, de transformador, de mágico…
No fundo importa menos o enredo da narração, o que é realmente importante é aquele presente acto de contar e de escutar um conto. O que importa é a relação que se estabelece, autêntica e plena de significado, entre dois ou mais seres humanos.
Relação complexa, poética, intimista, transmitimos essencialmente imagens, uma sucessão de imagens, com diferentes estádios de intensidade dramática, onde são abordados valores, princípios, opções, resoluções, arquétipos que não deixam indiferente quem conta nem quem escuta.
Os contos tradicionais possuem diferentes manifestações exteriores quanto à forma, mas, no fundo possuem, e se olhados comparativamente e em profundidade, qualquer que seja a língua, a civilização ou a cultura em que estejam inseridos, são depositários de uma única essência, para além das aparências, para além da forma, são suportados por uma Cultura Humana Universal, por uma singular Unidade/Unicidade de Vida.
Ouçamos Celina Pereira e o seu Blimundo:
de
Celina Pereira
Este audio livro apresenta-nos dois contos da tradição oral africana – a lenda do Tambor – uma explicação fabulosa do aparecimento/invenção do tambor – e a estória de Blimundo – um grito de revolta que nos conta situações de injustiça extrema como a da escravatura, a da falta de liberdade, a da negação do usufruto libertador da palavra –, além de jogos tradicionais brincados e cantados pelas crianças de Cabo Verde mas também pelas crianças portuguesas, o fundo é comum. Oferece-nos ainda três mornas interpretadas magistralmente pela Celina acompanhada por um conjunto de músicos de grande qualidade.
Uma palavra de grande apreço para a ilustradora Claudia Melotti que nos ajuda a entranhar a estória não a revelando totalmente. A cor é extraordinária e o ritmo pictórico do desenho remete-nos para as cores de África.
“Quando eu ainda não sabia ler, brincava com os livros e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo”, referia Cecília Meireles no início dos anos da década de 50 do século passado.
Também em Portugal o Prof. João dos Santos se preocupava com esta coisa esquisita que é a “literatura infantil”. Dizia ele:
- “O Principezinho é, como sabem, dedicado ‘à criança que outrora foi, essa pessoa crescida’. Aí está quanto a mim a chave da problemática da literatura infantil: a dos autores saberem, ou não, falar às crianças através da criança que outrora foram.”
É Hora de Brincadeiras
Integração total da criança na vida em comunidade (nas aldeias do Alentejo e de Cabo Verde)
- direitos e deveres
- existência de sanções
- construção e desenvolvimento de diferentes linguagem(ens)
- a construção da Cultura
A Hora das Estórias
A magia da contadora de estórias da tradição oral
A importância dos contos tradicionais na assumpção da identidade cultural
A importância da transmissão deste Património / Matrimónio às crianças
A importante e fundamental transmissão da tradição pelos mais velhos:
“Estória, estória! – (diz o contador).
Fortuna do céu, Amén – Esta resposta da plateia remete-nos ao valor “fortuna” que é dado na tradição africana a todas as palavras que saem da boca dos mais velhos; neste caso só a estes é reconhecida autoridade para saber contar estórias.”
Também aqui no nosso Alentejo temos exemplos desta assunção da Autoridade Tradicional pelos mais velhos, nomeadamente através de um costume que as “Brincas” de Entrudo nos deixaram: no Sábado de Carnaval o “Fundamento” é pela primeira vez apresentado perante uma assembleia dos mais velhos do lugar a que pertencem durante o Baile. É o assim denominado o “Ensaio da Censura”...
A Tradição renova-se sempre que a transmissão acontece através da palavra, da linguagem, da música, da poesia… transmitida da boca ao ouvido.
Atentemos à expressão crioula utilizada por Maria de Lourdes Jesus na introdução:
“Lua noba na terra bedja” – “Esta expressão queria dizer que a Lua continuava a renovar-se perante uma Terra que continuamente envelhecia.” (...) “Quando era tempo de Lua Cheia todos nós, grandes e pequenos íamos dormir mais tarde. A Ilha [de S. Nicolau] iluminava-se com todo o seu esplendor criando uma atmosfera fantástica, propícia para se contar estórias durante todo esse período. (…). Discutíamos muito entre nós, brigávamos e fazíamos apostas sobre como terminaria a história. (…). As contadeiras de estórias alternavam-se e depois do jantar íamos a casa de uma delas ou sentávamo-nos à frente da porta da casa, onde ela também se sentava num banquinho ou num degrau. A contadeira quase sempre segurando o seu canhot (cachimbo que se usa na nossa terra), enquanto as crianças se sentavam no chão fechando o círculo à volta dela, num silêncio tumular, tendo por companheira a Lua. A contadeira de estórias entrava no mundo das fábulas pronunciando em voz alta a frase mágica: “Estória Estória”… e nós em coro respondíamos: “Fortuna do Céu, Amén”.
“Tia, tia, conta-nos uma estória! Conta, conta!
Não, esperem um pouco! Enquanto houver luz do sol, conforme a tradição, de dia não se contam estórias. Senão tens de arrancar uma pestana e enterrá-la na terra, para que as outras não caiam. Continuem a brincar que eu já volto.”
E então, com o Sol recolhido e a Lua a reinar no firmamento, poderíamos ouvir na Ilha de S. Nicolau em Cabo Verde:
“Estória Estória”…
“Fortuna do Céu, Amén”.
O acto de contar estórias encerra em si próprio um ritual, uma dramatização arquetípica, uma recriação paradigmática de um Eterno Presente, onde o mito tem sentido, actualidade e possibilidade de transformar quem o utiliza.
O conto tradicional é criador de um tempo e de um espaço de diálogo em profundidade que nos reporta para a realidade do Eterno Presente.
Contar um conto é um acto de comunicação, quiçá de comunhão com o outro e ou com os outros… É um acto de autêntica cura e de auto-cura… É um acto que compromete os sujeitos em comunicação e cria as condições para que aconteça o auto-conhecimento. É um acto onde se dá a emergência da Palavra. Onde se sente a urgência da relação entre os sujeitos e a negação consciente da relação sujeito-objecto. A Poética e a Infância, o Mito e o Sonho, a sua importância para a estruturação de uma personalidade harmoniosa, equilibrada e coerente.
Se estivermos no Alentejo poderemos ouvir:
“Ó Avó, conta-me um conto.”
E então:
“Era uma vez…”
E a comunicação, o milagre, acontece!...
Tanto psicologicamente, como vivencialmente, entramos num espaço sem espaço, num tempo sem tempo, onde o paradoxo, a metáfora, a alegoria, o símbolo e o mito se apropriam de toda a acção e de toda a narrativa e acontece qualquer coisa de criador, de transformador, de mágico…
No fundo importa menos o enredo da narração, o que é realmente importante é aquele presente acto de contar e de escutar um conto. O que importa é a relação que se estabelece, autêntica e plena de significado, entre dois ou mais seres humanos.
Relação complexa, poética, intimista, transmitimos essencialmente imagens, uma sucessão de imagens, com diferentes estádios de intensidade dramática, onde são abordados valores, princípios, opções, resoluções, arquétipos que não deixam indiferente quem conta nem quem escuta.
Os contos tradicionais possuem diferentes manifestações exteriores quanto à forma, mas, no fundo possuem, e se olhados comparativamente e em profundidade, qualquer que seja a língua, a civilização ou a cultura em que estejam inseridos, são depositários de uma única essência, para além das aparências, para além da forma, são suportados por uma Cultura Humana Universal, por uma singular Unidade/Unicidade de Vida.
Ouçamos Celina Pereira e o seu Blimundo:
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