Com este texto gostaria de partilhar convosco um conjunto de reflexões sobre a importância dos contadores de contos para a preservação de uma sabedoria milenar, que se desenvolveu por estas terras lusitanas e peninsulares, mas também um pouco por todas as outras terras onde a tradicional comunicação de boca a ouvido se fez sentir, quer em sentido profano do conto popular quer em sentido sagrado e no âmbito dos mistérios das religiões.
«A praça estava deserta. Como um palco de teatro, iria encher-se a pouco e pouco. Os primeiros a instalarem-se nela foram os Sarauis, mercadores de todos os pós: especiarias, hena, hortelã brava, cal, areia, e outros produtos mágicos, moídos e requintados. Foram seguidos pelos alfarrabistas. Expuseram os seus manuscritos amarelos e queimaram incenso.
E depois havia aqueles que não vendiam nada. Sentavam-se no chão cruzando as pernas e esperavam. Os contistas instalavam-se em último lugar. Cada um tinha o seu ritual.
Um homem alto, seco e delgado, começou por desatar o turbante. Sacudiu-o; caiu dele areia fina. Esse homem vinha do Sul. Sentou-se sobre uma malinha de contraplacado e, sozinho, sem o menor auditor, pôs-se a contar. Eu via-o de longe, falar e gesticular, como se o círculo estivesse fechado e bem cheio. Aproximei-me dele e cheguei a meio de uma frase: "O sabor do tempo lambido por uma matilha de cães." (...).»(1)
Uma pequena descrição fictícia talvez mas não por isso menos real do mundo dos contadores de contos, neste caso em Marrocos, mas que poderia ser, modificando um ou outro pormenor, uma cena de ainda há umas dezenas de anos numa das aldeias espalhadas por este nosso Alentejo de características culturais de camponês e aldeão. Juntamente com os poetas populares, os decimistas, os vendedores de romances de cordel, por essas feiras perdidas nos confins das terras, festas e romarias de santo(a) padroeiro(a), transmissores dos milagres acontecidos e das desgraças sofridas e choradas, andando em círculos de lentidão ponderada, respeitando os ciclos anuais, eram eles os repositórios e os anunciadores das notícias entre o Povo analfabeto, contudo ouvinte atento e ávido de palavras, de gestos e de gestas que ciclicamente se renovavam. Gerações de ouvintes por excelência, ainda tocaram e marcaram as gerações que hoje existem e que por sua vez ainda nos poderão transmitir aquelas memórias de outros tempos, de outros espaços, de outras formas de encarar a vida e o quotidiano.
Daniel Sampaio, ao falar sobre a sua experiência profissional e de vivência pessoal, faz transparecer a preocupação de que "as famílias deveriam recuperar a tradição de contar histórias". Alertava ele: "A tradição nas famílias de contar histórias, que proporcionava momentos de grande equilíbrio emocional entre adultos e crianças, foi perdida nos últimos tempos e é preciso recuperá-la." (2)
Contar um conto foi e é, continua a ser, hoje, um acto cultural. Sem dúvida a tradição oral moderna faz parte daquele conjunto de realidades que auxiliam a construção e a compreensão de uma cultura, da nossa cultura. Olhando o conceito cultura como sendo o conjunto dos costumes, das crenças, das instituições – tais como a arte, o direito, a religião, as técnicas da vida material –, isto é, todos os hábitos e comportamentos e aptidões apreendidos pelo homem enquanto membro de um todo social, a que chamamos Sociedade.
Entre estas aptidões existe uma que por excelência vai "humanizar" a cultura, vai por si só "justificá-la", que é a linguagem. Existe cultura porque existe uma linguagem articulada, traduzível e compreensível através de um sistema de signos. Linguagem, comunicação e cultura, são três realidades que caracterizam na sua essência o ser humano.
Refere-nos o ilustre etnólogo Claude Lévy-Strauss que:
"A linguagem aparece como o facto cultural por excelência. Primeiro porque é uma parte da cultura, uma das suas aptidões ou hábitos que recebemos da tradição externa; em segundo lugar, porque a linguagem é o instrumento essencial, o meio privilegiado pelo qual nós assimilamos a cultura do nosso grupo – uma criança aprende a sua cultura porque falamos, porque comunicamos com ela através da linguagem –; finalmente e sobretudo porque a linguagem é a mais perfeita de todas as manifestações de ordem cultural que formam, a um ou a outro título, sistemas, e se quisermos compreender o que é a arte, a religião, o direito, até mesmo a cozinha ou as regras de cortesia, será necessário concebê-los como códigos formados pela articulação de signos, sobre o modelo da comunicação linguística." (3)
Ainda é o mesmo autor que refere que "sem linguagem não existe cultura, nem homo sapiens..." – a emergência da linguagem é, no fundo, coincidente com a emergência da cultura.
O Conto Popular é ele próprio um exemplo da utilização inteligente da linguagem articulada, logo humana, ao longo dos tempos. Através da linguagem e através dos contos populares preservaram-se e reproduziram-se saberes, mitos, memórias que vieram até aos nossos dias das profundezas dos tempos e da História.
Várias contribuições têm sido dadas para que as memórias daqueles últimos contadores de contos subsistam. E subsistem através, não só da palavra transmissora desses saberes, de geração para geração, como ainda se fixam textualmente algumas dessas autênticas pérolas da tradição oral.
Não obstante os aspectos negativos que os perfeccionistas destas coisas da cultura popular possam apontar, não deixam de ser extremamente importantes estas edições, uma vez que fazem circular diferentes versões de contos que, em última análise servirão não só de leitura de prazer para quem os quer recordar, ou para quem os queira conhecer, mas também para quem se sirva deles para os comparar com muitas outras versões que eventualmente possam existir noutras colecções, noutras memórias, noutras terras e até noutras línguas.
E entrando agora mais directamente na problemática dos contos populares, refira-se que para uma compreensão global de um texto, neste caso concreto, de um conto popular da tradição oral, será importante ouvir e ou ler o maior número de versões existentes e ou conhecidas desse texto. Os contos populares são textos conservados pela memória através de séculos e séculos. Textos cuja forma se transforma mas cuja essência permanece – não será este o comportamento e evolução daquele fenómeno social a que chamamos cultura?
Outro facto curioso e significativo é que o conto popular tradicional encontra-se liberto da "prisão" do autor. São textos de autores anónimos, ou melhor, são textos colectivos que pertencem a uma comunidade e que se transmitem através da boca do povo, de comunidade para comunidade até adquirirem a sua característica universal. Os contos são moldados formalmente ao longo dos tempos, ao sabor das circunstâncias sociais, culturais, civilizacionais...
Sobre as "origens dos contos", vou socorrer-me do escritor italiano Italo Calvino, em colectânea recentemente publicada em Portugal. Refere ele:
[Segundo Ferdinando Neri, 1934] «O "balanço" das tradições populares é absolutamente ilusório: tão casuais são os testemunhos, sobretudo se se remontar a uma época remota; e mesmo quando se tem o seu documento seguro, os inúmeros cotejos com o folclore de outros países acabam por excluir toda a possibilidade de uma localização que não seja pontual e transitória. A lenda passa, volatiliza-se, está por todos caminhos como uma poeira dispersa sobre as pegadas dos homens. (...)».
Portanto falar de «conto popular italiano não pode ter significado? Todo o problema do conto popular terá de ser remetido para uma antiguidade que não é só pré-histórica, mas também pré-geográfica?
As escolas que estudam as relações entre o conto popular e os ritos da sociedade primitiva dão resultados surpreendentes. Que se encontram aí as origens do conto de fadas parece-me indúbio. Porém, dito isto, volta-se a tombar numa noite indiferenciada. (...).»(4)
A propósito do acto de narrar de contar um conto, e tendo em conta a relação de comunicação vivencial que se estabelece entre um ou mais sujeitos, o(a) narrador(a) e os ouvintes, verificar-se-á que a passividade não existe, existirá sim um estado completo de atenção e de comunicação entre um(a) e outros dificilmente comparável em qualquer outra situação no quotidiano.
Tenhamos em conta um extraordinário depoimento de Giuseppe Pitré (5), partilhado connosco por Italo Calvino, que nos revela toda uma situação relacional tradicional entre uma contadora de contos e o(s) seu(s) ouvinte(s):
Assim nos diz Italo Calvino: «Com Pitré o folclore ganha consciência do papel que no próprio existir de uma tradição de conto desempenha a tradição poética de quem narra, essa coisa que – ao contrário do que acontece com o canto, fixado de uma vez por todas nos seus versos e nas suas rimas, repetido anonimamente nos coros, com uma margem limitada de possíveis variantes individuais – para o conto popular tem de ser recriado todas as vezes, de modo que no centro do costume de contar histórias está a pessoa – excepcional em cada aldeia ou burgo – da narradora ou do narrador, com um estilo e um fascínio muito seus. E é através desta pessoa que a sempre renovada ligação do conto atemporal entra em comunicação com o mundo dos seus ouvintes, com a História.
Assim, a protagonista da colectânea da colectânea de Pitré é uma velha contadora analfabeta, Agatuzza Messia "costureira de colchas de Inverno no Borgo (bairro de Palermo) (...)" e antiga criada na casa de Pitré. Grande número dos mais belos "cunti" de Pitré provém da sua boca (...). É assim que Pitré no prefácio da colectânea descreve a sua "narradora-modelo":
Nada bonita, tem a palavra fácil, a frase eficaz, e uma maneira atraente de contar, que nos faz adivinhar a sua extraordinária memória e o engenho que brotou da natureza. Agatuzza Messia conta já os seus setenta anos, e é mãe, avó e bisavó; em criança ouviu contar a uma das suas avós, que os aprendera com a mãe e esta, também de um seu avô, uma infinidade de historietas e de contos; tinha boa memória, e nunca mais se esqueceu (...). Entre as suas companheiras de burgo, bairro (...) de Palermo, ela gozava da reputação de boa contadora de histórias, e quanto mais a ouvíamos, mais vontade tínhamos de ouvi-la. (...).
Agatuzza Messia não sabe ler, mas sabe muitas coisas que ninguém sabe, e repete-as com uma propriedade de língua que é um prazer ouvi-la. Esta é uma das suas características (...). Se o conto incide num navio que tem de viajar, ela desencanta, sem dar por isso ou pelo menos sem parecer, frases e termos da marinhagem que só conhecem os marinheiros ou quem esteja relacionado com a gente do mar. Se a heroína da novela vai parar, pobre e desolada, a uma casa de padeiros e aí se instala, a linguagem de Agatuzza é tão informada daquele ofício que se julga ter ela estado a trabalhar, e a cozer pão, quando em Palermo esta ocupação, comum nas famílias dos pequenos municípios da ilha, pertence apenas aos padeiros. E não falemos de onde apareçam afazeres domésticos, porque então Agatuzza está em casa (...).
(...). Quem lê, só encontra a fria e nua palavra; mas a narração de Agatuzza mais que na palavra consiste no mover irrequieto dos olhos, no agitar dos braços, nas atitudes da pessoa toda, que se levanta, anda às voltas pela sala, inclina-se, ergue-se, fazendo a voz ora baixinha, ora excitada, ora medonha, ora doce, ora estridente, recriando a voz das personagens e o acto que elas realizam. Tem de se entrar sempre em linha de conta com a mímica das narrações, especialmente de Agatuzza, e pode-se ter a certeza de que sem ela a narração perde metade da sua força e eficácia. Felizmente a linguagem permanece tal qual é, plena de inspiração natural, de imagens todas tiradas dos agentes externos, para as quais se tornam concretas as coisas abstractas, corpóreas as sobrenaturais, e vivas e falantes as que nunca tiveram vida ou só a tiveram uma vez. (...)»(6).
Todo o processo vivencial de experimentação em relação, permitirá, em última análise, ao homem, evoluir e assumir a sua espiritualidade mais autêntica, ocasionando simultaneamente a sua auto-expressão. Caso contrário esta permanecerá “enegrecida” pelo medo, pela limitação e pelo condicionamento, agentes-travão da experiência, da vivência e causadores de conflito e da não comunicação e entendimento entre as pessoas.
Afinal o indivíduo só existe e só se realiza, enquanto ser humano, em relação, relação essa que, para ser realmente libertadora e transformante, terá que se construir conscientemente pelos próprios sujeitos intervenientes e autores da comunicação.
Todo o aprender é comunicar!
Por sua vez, comunicar é estar em relação com, agir. Partindo do pressuposto de que basta estarmos presentes para estarmos a (inter)agir e, por assim dizer, a comunicar: é impossível não comunicar. A comunicação não tem antítese. Estamos constrangidos a comunicar seja qual for o tipo de comunicação que se estabeleça com o outro no quotidiano: verbal ou não verbal, pela palavra ou pelo silêncio. O compromisso da relação encontra-se sempre presente.
Contemos contos, ouçamos contos, inventemos contos... e a nossa relação com os outros concerteza que ficará mais rica humanamente, com mais comunicação e concerteza será muito mais fácil crescermos interiormente e terá repercussões visíveis nas nossas palavras, nos nossos gestos, nos nossos comportamentos e relacionamentos do dia a dia.
Rui Arimateia
NOTAS:
(1) in A NOITE SAGRADA, por Tahar Bem Jelloun, Bertrand Editora, Venda Nova, 1988, pág. 13.
(2) in XIII Encontros de Literatura para Crianças, promovidos pelo Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura, da Fundação Calouste Gulbenkian, que decorreram em Lisboa em Novembro de 1998.
(3) Entretiens avec Claude Lévy-Strauss
(4) in"Introdução" de FÁBULAS E CONTOS ITALIANOS, Ed. Teorema, Rio de Mouro, 2000 (pp.33-34).
(5) Giuseppe Pitré, 1841-1916, médico e folclorista siciliano, cujas investigações foram publicadas nos seus monumentais 35 volumes da Biblioteca das Tradições Populares Sicilianas, iniciada em 1871 e acabada em 1913. Em 1880, em colaboração com S. Salomone-Marino, também médico, fundou o Arquivo das Tradições Populares. Igualmente importante é a colecção das Curiosidades Populares Tradicionais e a Bibliografia das Tradições Populares em Itália, publicada em 1894. Fundou em Palermo o Museu Etnográfico Siciliano.
(6) Idem, pp. 21-23.
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