domingo, 3 de maio de 2009

JOSÉ SARAMAGO EM ÉVORA

Texto de José Saramago sobre Évora. Bem merece ser recordado de quando em quando.

"O mais surpreendente será pensarmos que uma tal beleza começou por não existir. O lugar estava ali, estava ali a colina, o monte, a altura desafogada de onde os olhos poderiam abraçar um vasto horizonte, tão vasto que mais parecia estar a planície a empurrá-lo até ao infinito. Apesar de perto correr uma ribeira, daquelas que sempre atraíram e depois fixaram a morada dos humanos para lhe oferecer o alimento e o refresco do corpo, esta colina, que um dia viria a receber o mágico nome de Évora, só teve para dar, durante anos e anos sem conto, a mesma humildade de quantas a rodeavam – ser atalaia de pastores e mirante de viajantes perdidos à procura de um caminho. O destino dos lugares, porém, é como uma carta fechada à espera do gesto único que um dia a dará a conhecer. De quem fosse, a quem tivesse pertencido a mão que pela primeira vez veio colocar uma pedra sobre outra pedra na falda do monte a fim de construir um abrigo de vivos ou levantar uma casa de mortos – não se sabe. Nem nunca se saberá. Os primeiros homens e mulheres que escolheram para viver a colina de Évora não tinham para enterrar solenemente um cofre de prata ornado de cabochões com a acta da fundação da cidade que ainda haveria de ser, mas a memória da sua passagem por este lugar do mundo, se a soubermos procurar aparecer-nos-á tão viva como a presença do zimbório da Sé, que de tantas destas ruas se espreita. Algum vestígio dessas mulheres e desses homens primitivos perdurará ainda por aí, alguma fina poeira, algum entalhe na mais velha de todas as pedras, algum suspiro cansado que o ar naqueles dias recolheu e que a Évora constantemente retorna quando os ventos mudam. Diz-se que a história certificada é só aquela que tiver sido passada a escrito, mas a história autêntica da colina de Évora e das suas cercanias, a história que não teve ninguém que a descrevesse, mas que nem por isso foi menos substancial, essa história ilegível, inscrita na superfície do tempo, é o alicerce mais profundo sobre o qual se edificou, destruiu e tornou a edificar a cidade. Até hoje.
O próprio topónimo, Évora, quando o pronunciamos, quando nos detemos a escutá-lo, ressoa na nossa boca e nos nossos ouvidos como a memória de uma voz arcaica. [...] Curioso vocábulo, este. Se efectivamente foram os celtiberos que puseram o nome de Ebora à cidade e se, neste caso, a aparente filiação etimológica é algo mais do que uma ocasional coincidência, então haverá motivo para que nos perguntemos por que a teriam nomeado eles com uma palavra de raiz latina, pois que eboraria é a arte de esculpir o marfim, eborário o artista que o marfim trabalha, ebóreo o que de marfim é feito. Honra e gratidão, portanto, ao ignoto profeta, ao bruxo celtibero que leu o futuro e foi o primeiro a saber que uma cidade chamada Évora se tornaria, com o tempo, tão preciosa como o marfim.
[...].
Porque Évora é principalmente um estado de espírito, aquele estado de espírito que, ao longo da sua história, a fez defender quase sempre o lugar do passado sem negar ao presente o espaço que lhe é próprio, como se, com o mesmo olhar intenso que os seus horizontes requerem, a si mesma se tivesse contemplado e portanto compreendido que só existe um modo de perenidade capaz de sobreviver à precaridade das existências humanas e das suas obras: segurar o fio da história e com ele bem agarrado avançar para o futuro. Évora está viva porque estão vivas as suas raízes."

in:"Évora - Património da Humanidade", Eduardo Gageiro/José Saramago, Ed. Câmara Municipal de Évora, 1997.

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