Deslocámo-nos há já alguns anos, mais propriamente em finais de Dezembro de 1993 e princípios de Janeiro de 1994, à Aldeia da Torre de Coelheiros a fim de presenciarmos os ensaios e a posterior saída de uns "Cantadores de Reis", esta última no dia 5 de Janeiro, como reza a Tradição.
Esta situação resultou de um desafio que nós próprios há uns dois anos a esta parte tínhamos feito a elementos e a simpatizantes do Grupo Coral Tradicional existente na aldeia, nomeadamente ao Sr. César Gaivotas e ao Sr. Francisco Ventura.
Na altura, ao falar-se de modas antigas ter-se-ão as referidas pessoas lembrado de que há uns quarenta ou cinquenta anos também nesta aldeia e freguesia se cantavam os Reis. Modas com muitos anos e que alguns mais velhos ainda se lembrariam da letra e da música.
Foi quando referimos o quanto seria importante alguém do Grupo Coral recolher essas "modas" para que se voltassem a cantar, pois seria uma iniciativa de grande interesse cultural, tanto para a Aldeia como para o próprio Concelho.
Costume muito antigo este, o de "cantar os Reis", e bastante enraizado por todo o território nacional. Consiste na formação de grupos de homens e de mulheres e de crianças, organizados mais ou menos ad-hoc e que na noite do dia 5 de Janeiro percorriam o território da sua freguesia cantando à porta dos mais abastados solicitando os mais diversificados géneros alimentares, diferenciando-se o costume, os versos e a música de terra para terra. Uma das características principais deste costume de cariz eminentemente etnográfico‚ o facto de se constituir como uma festa cíclica e rural.
Na aldeia de Torre de Coelheiros, o grupo‚ formado por cerca de uma dezena de homens que cantam em conjunto à moda do cante alentejano, embora com uma entoação e uma melodia peculiares. Já noutras aldeias os cantadores são acompanhados por instrumentos musicais tais como o acordeão e até mesmo o saxofone, por exemplo.
Foi expressa, por este grupo de Torre de Coelheiros, a intenção de realizarem um trabalho colectivo de recolha e recuperação de uma tradição eminentemente popular que se encontrava perdida nos confins da memória de alguns, já poucos, habitantes desta freguesia.
A importância cultural desta esta iniciativa, independentemente de ser na Torre de Coelheiros, prende-se com o aspecto valorativo de que o próprio Grupo de "cante" procura, na medida em que necessita demonstrar às gentes da sua própria aldeia, a importância para a sua identidade cultural, destas tradições dos mais velhos. A iniciativa, no fundo, reveste-se de uma importância fundamental, em termos de Acção Cultural, na medida em que se estarão a "confrontar" positivamente diferentes gerações, em que os mais idosos se encontram a legar conscientemente aos mais novos toda uma herança cultural que estes diariamente recusam e negam em favor do consumismo e dos valores individualistas que a sociedade moderna lhes oferece e os obriga a viver.
Poder-se-á sem sombra de dúvida afirmar-se de que há hoje realmente o reconhecimento e a aceitação do costume não só por parte dos mais velhos, mas igualmente por parte das gerações jovens. É uma tradição popular e tradicional com força suficiente para arrancar das memórias daquela população este costume cíclico de religiosidade popular que toca formas espontâneas de solidariedade social.
Por todas estas razões parece-nos importante a atenção dada a este grupo de gente que mais não quer do que viver todo um conjunto de tradições de índole cultural, e que positivamente contribuirão para uma coesão social da Aldeia que habitam.
Simultaneamente procedeu-se à recolha dos diferentes níveis desta tradição popular, em termos etnográficos, para que posteriormente pudessem. Resta dizer que igualmente noutras freguesias rurais do Concelho de Évora esta tradição de "cantar os Reis" teve lugar, nomeadamente em S. Miguel de Machede, Azaruja, S. Sebastião da Giesteira, etc.
Recolha de alguns elementos da Tradição Oral sobre os Reis na aldeia
da Torre de Coelheiros
Quem era o Grupo de Cantadores dos Reis, ad-hoc, em Janeiro de 1994:
Sr. Francisco Ventura, 67 anos, natural de Oriola, residente em Torre de Coelheiros desde os 2 anos de idade. Reformado (Trabalhador Agrícola, Motorista). Responsável pelo Grupo Coral e Etnográfico "Os Pastores do Alentejo".
Sr. Manuel António Rego, 40 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Trabalhador Rural.
Sr. António José Grilo, 49 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Trabalhador Rural.
Sr. José Manuel Bento Fava, 61 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Reformado (Vendedor Ambulante, Trabalhador Rural).
Sr. António José do Carmo Mendes, 40 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Trabalhador Rural.
Sr. César José Gaivotas, 57 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Taberneiro.
Sr. Manuel Borrego, 26 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Motorista. Pertencente ao Grupo Coral "Os Pastores do Alentejo".
Sr. Caetano José, 65 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Trabalhador Rural.
Sr. Domingos Gaivotas, 28 anos, natural e residente de Torre de Coelheiros. Trabalhador Rural. Pertencente ao Grupo Coral "Os Pastores do Alentejo".
Sr. Narciso Vaqueira, 24 anos, natural e residente em Torre de Coelheiros. Trabalhador Rural.
Sr. Francisco José Campino, 44 anos, natural de Selmes (Vidigueira) e residente em Torre de Coelheiros há cerca de 20 anos. Trabalhador Rural. Pertencente ao Grupo Coral "Os Pastores do Alentejo".
Sr. Martinho Marques, 55 anos, natural de Oriola, tendo vivido 40 e muitos anos em Torre de Coelheiros. Motorista de Taxi.
CANTAR OS REIS - Antiga Tradição do Calendário retomada após cerca de quarenta anos de silêncio. Os mais idosos deste grupo lembram-se dos seus tempos de meninice e juventude em que acompanhados pelos seus pais ou avós ou conterrâneos mais velhos se deslocavam, até altas horas da madrugada, de vizinho em vizinho, de "monte" em "monte", por toda a freguesia, por vezes sem luz, a cantarem e a pedirem os Reis, eram as saudosas Reisadas. Lembram-se do Sr. Joaquim Gaivotas, do Ti'Joaquim Prudêncio e do Ti'Domingos Prudêncio, todos hoje com idades superiores a oitenta anos, lhes terem passado o testemunho da Tradição, ensinando-lhes as músicas e as letras dos cantares.
Naqueles tempos, em alturas de vésperas do dia de Reis, 5 de Janeiro, juntava-se a rapaziada por volta das dez horas da noite, quando já nada nem ninguém soava na aldeia. Eram grupos pequenos, com meia dúzia de elementos cada, todos homens e com idades que tocavam a casa dos vinte anos em média. Cantavam o cante coral alentejano. Como trabalhavam praticamente todos juntos na faina agrícola, combinavam a saída da noite no trabalho.
«Vocês riem-se da miséria!...», dizia um dos nossos interlocutores aos companheiros mais novos que faziam grande festa, à medida que as descrições das lembranças aconteciam. Na verdade eram todos os jovens naquela altura já trabalhadores rurais, cujos parcos rendimentos auferidos como resultante dos seus salários, lhes não permitiam grandes farras, daí que aproveitassem esta ocasião para se divertirem à volta do cante popular e do petisco...
Assim, ao chegar a noite do dia de Reis, a 5 de Janeiro de cada ano, por volta das 22,00 horas e munidos de um ou mais alforges juntava-se o grupo de jovens para calcorrearem a aldeia e a freguesia cantando os Reis, de casa a casa, de porta a porta, de "monte" em "monte" e pedindo a graça ou a "esmola" de uma linguiça, um bocado de pão, um copo de vinho, uma laranja, ou o que calhasse mas que pesasse no saco... As casas mais abastadas, a do merceeiro ou a do padeiro eram as mais apetecidas, pois sempre se recolhiam duas ou três linguiças e dois ou três pães. Pois é, davam o que calhava e chegaram mesmo a ir até S. Bartolomeu do Outeiro ou S. Manços, freguesias limítrofes, pelos campos fora, de "monte" em "monte", às escuras e quase sempre com um frio que fazia gelar os ossos, não fora um ou outro copito de aguardente com que, após uma ou outra cantiga, eram agraciados.
"Monte" após "monte", casa após casa, apoiando-se uns nos outros, por causa do frio e fazendo jus à tradicional solidariedade popular alentejana, eles aí iam e o "cante" saltava das suas gargantas com a costumeira cadência tradicional, que era como se cantava antigamente...
Ao chegarem junto à porta ou junto à janela do vizinho agraciado com a cantiga, noite escura em que somente soava o vento e algum cão ao longe, logo iniciava o "alto" a cantilena. Cantava uma cantiga, em género de quadra, com a letra tradicional, e logo, rotativamente entravam em quadras improvisadas segundo a inspiração do momento e segundo as características próprias do dono da casa. Após a "esmola" agradeciam, sempre a cantar... e assim sucessivamente, porta a porta a pedir a "esmola", a agradecer e a cantar.
Do "bodo" final, resultante do peditório de toda a noite, o que não era consumido no local, juntavam e no dia seguinte faziam um petisco colectivo. Sobrando ainda alguma coisa, dividiam por todos.
As "quadras", directamente respeitantes aos Reis pertenciam à Tradição Oral Popular, assim como a música e a maneira de cantar.
As Quadras Tradicionais das "Reisadas", recolhidas na Freguesia da
Torre de Coelheiros em Janeiro de 1994:
Venho aqui cantar os Reis
Já que os bons anos não pude,
E venho aqui para saber
Novas da sua saúde.
Era meia-noite em ponto
No céu se abriu uma luz,
São os três Reis do Oriente
Que vêm visitar Jesus.
E acorda se estás dormindo
Nesse sono tão profundo,
E à porta te 'stão pedindo
Pr'às almas do outro mundo.
Os três Reis do Oriente
E uma estrela‚ que os guiou,
Numa cabana em Belém
Nossa Senhora O deitou.
E as Quadras cantadas de improviso:
Ê venho aqui cantar os Reis
Alegram-se os meus amores,
E vamos pedir a esmola
E além àquele senhor.
E agradeço a esmola
E a esmola agradeço,
E em troca da sua esmola
E uma cantiga lh'ofereço.
E agora vou começar
E começo sem receio,
Vou a pensar no alforge
E decerto que vem bem cheio.
E ó César se 'stás dormindo
'Stá noite de nevoeiro,
Traz pr'a cá duas chouriças
Dessas que tens ó fumeiro.
Daqui'nada vou buscá-las
'Inda hoje de serão,
Trago 'tão duas linguiças
E também um agarrafão.
Uma noite‚ tão estrelada
E também‚ Lua-Cheia,
E acorda lá ó Zé Fava
E traz mel da tu' colmeia.
E obrigado ó Zé Fava
Pela tua esmolinha,
Deus te dê muita saúde
E à avó e à tua netinha.
E ó Ti Chico Ventura
Que está dormindo no quente,
Já temos bolos e filhoses
E só nos falta aguardente.
Estou aqui cantando os Reis
Ó que noite tão catita,
Venho aqui mandar a esmola
Pela tua neta Rita.
Venho aqui cantar os Reis
Minha fala já m'engana,
Mande-me dar a esmola
P'la sua filha Mariana.
E acorda se estás dormindo
E ó Pirico vem à porta,
Vem trazer uma linguiça
E ai, mesmo que seja torta.
Venho aqui cantar os Reis
Com grande "satesfação",
Manda-me dar a esmola
P'la su' filha Conceição.
Muito obrigado Pirico
Por esta chouriça torta,
Dada de boa vontade
E por isso não importa.
Venho aqui cantar os Reis
Nesta noite de serão,
Venha-me dar a esmola
Nem que seja só um pão.
E agradeço a esmola
E à menina qu'a veio dar,
Deus lhe dê muita saúde
P'ra s'acabar de criar.
Venho aqui cantar os Reis
Com prazer e alegria,
Mande-me dar a esmola
P'la su'filha Maria.
E obrigado amigo César
Pelo pão e pelo vinho,
Bem podias ai mandar
E um bocado de toucinho.
Acorda que estás a dormir
Ó César vem à janela,
Traz uma garrafa de vinho
Traz um queijo da panela.
Acorda se estás dormindo
Nesse sono tão profundo,
E à porta te estão pedindo
Pr'às almas do outro mundo.
É no adro da Igreja
E onde saem os andores,
E obrigado à santinha
E obrigado meu senhor.
Venho aqui cantar os Reis
E já vou a estar cansado,
Agradeço a sua esmola
Pel'amor Deus obrigado.
E à Senhora do Rosário
Vamos dizer adeus,
E ao Menino Jesus
E também ao Senhor Deus.
Ó Felismino vem à porta
E é casa de boa gente,
Não precisas trazer bolos
Vem, traz só a aguardente.
Agradeço a tua esmola
E agradeço com carinho,
Deus te dê muita saúde
P'ra criares o teu filhinho.
E o corpo já está molhado
E ó que noite tão fria,
Traga lá a aguardente
Veja lá Dona Maria.
Ó que noite tão chuvosa
Estão pingando as beiras,
E ó César olh'á linguiça
Essa que está na lareira.
Olha lá o que t'eu digo
E isto não é casa fona,
E vai ser cá pró petisco
E um pratinho de azeitonas.
E agradeço a esmola
À senhora que a veio dar,
Deus lhe dê muita saúde
P'ra seus filhinhos criar.
E obrigado ó Domingos
E obrigado Florbela,
Deus lhe dê muita saúde
E não tenham uma mazela.
E obrigado senhora Maria
E obrigado senhor Manel,
E ó que bela linguiça
Vai saber a pão e mel.
Vou cantar uma cantiga
Mostra a minha opinião,
E agradeço a esmola
E à Maria e ao João.
E a mim me compete
E quando canto estou contente,
Calhou-me a ser o mestre
E agradeço a tod'a gente.
Felicidades pr'a este lar
É uma família pacata,
Muito obrigado João
Por seres um perfeito autarca.
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