quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Grande Arquitecto do Universo


A TECNOLOGIA NO MUNDO DE HOJE: PERSPECTIVAS TEOSÓFICAS

No princípio era a mão e a mão criou o cérebro e do cérebro nasceu o homem… o ser pensante.
Neste pequeno raciocínio estão subjacentes, em termos antropológicos os critérios de humanidade, que nos permitem compreender a evolução psicofisiológica do homem desde os seus princípios mais remotos.
Da libertação da mão, ao aparecimento do cérebro e à emergência da Cultura como criação e extensão do próprio homem, um relativamente pequeno passo em termos da própria evolução do Universo, contudo de excepcional importância para o desenvolvimento físico, psíquico e espiritual dos seres humanos neste planeta.
A Técnica, na sua génese, teve muito que ver com o domínio do “desocultamento”, da procura da verdade e do conhecimento pelos homens. Mas também esteve ligada a uma procura e a uma produção de sentidos, fazendo com que a actuação do homem na natureza tivesse possibilitado, por sua vez, uma liberação de energia, assim como a sua posterior utilização e acumulação, para seu próprio proveito.
Este conhecimento, através da experiência como método, iria originar o desenvolvimento da Ciência, considerada esta, para o homem moderno, como uma teoria do real, sendo realidade tudo aquilo que se encontrasse diante de si próprio, tudo o que tivesse sido produzido e realizado perante si próprio.

Hoje o homem ensaia o cérebro fora do seu próprio corpo, olhando o computador enquanto uma extensão da inteligência e da memória, duas funções fundamentais na criação da Cultura, da língua, dos ritos, etc.

Desde pelo menos há cerca de dois milhões de anos que o homem vem progredindo, vem evoluindo e com ele tem igualmente evoluído a tecnologia e a ciência, permitindo um domínio e uma compreensão do mundo não alcançável por qualquer outro animal seu companheiro de viagem neste planeta, que no fundo é tão só poeira de estrelas, isto é, um minúsculo ponto nestes confins de um Universo para nós infinito e incomensurável.

A Ciência e a Técnica, principalmente a partir do último século, evoluíram de uma maneira tão extraordinária, que nunca o homem ao longo da sua história, pensou que elas assim evoluíssem. Neste momento a progressão científica e tecnológica faz-se não de um modo contido e linear, mas “aos saltos”…
E é salutar questionar: estarão elas ao serviço da Vida? Da Evolução? Ou ao serviço de um progresso desequilibrado, a que só alguns “eleitos” poderão explorar e usufruir?

O lema da Sociedade Teosófica “Não há Religião Superior à Verdade” se olhado, reflectido e vivido com seriedade por nós, teósofos, perceberemos que a sua formulação é sem dúvida alguma altamente científica. Se o utilizarmos para nos tentarmos compreender, através do auto-conhecimento e tentarmos compreender a realidade que nos rodeia vemos que desde sempre o homem teve este instrumento de auto-regulação do seu próprio crescimento e desenvolvimento mental e espiritual, na mão.
A busca da Verdade através de um equilibrado auto-conhecimento permite-nos compreender que o Universo, a Natureza e o próprio Ser Humano são regulados por Leis Universais, as quais não nos são de modo algum desconhecidas:

a Lei da Harmonia;
a Lei da Diversidade;
a Lei da Interdependência;
a Lei da Acção e Reacção;
a Lei da Analogia;
a Lei da Evolução;
a Lei da Unidade da Vida.

Será a aplicação destas Leis que permitirão ao ser humano uma vivência verdadeiramente sã e sábia, possibilitando o estabelecimento do equilíbrio harmonioso do próprio planeta. Tenhamos consciência disso, pois que um pseudo progresso científico desenfreado, aliado a um modernismo tecnológico sem qualquer Ética levará, com toda a certeza, o nosso planeta à destruição, fará com que a Humanidade regrida para o limiar da animalidade onde a sobrevivência física da espécie será a única e última prioridade, e onde a Natureza Humana será desprovida daquela Sageza Perene que colocava o Homem no pedestal da própria divindade, fazendo justiça àquela afirmação milenar:
“HOMEM, CONHECE-TE A TI PRÓPRIO… E, CONHECENDO-TE, CONHECERÁS O UNIVERSO E OS DEUSES!”

Entretanto, a partir de meados do século XX, uma nova abordagem metodológica foi surgindo e começou a ser seriamente encarada pelos investigadores dos nossos dias – a perspectiva Holística.
Um modo de pensar abarcante, total e unitário, que olha as várias disciplinas do conhecimento do homem e da Natureza sempre em relação umas com as outras, não compartimentalizando e não separando, mas integrando o conhecimento, como um todo.
Este método revolucionário, sendo relativamente recente, não é novo pois que, a Perspectiva Holística que, por um lado significa total e por outro sagrado, contrapõe-se àquela maneira de ser que fragmenta a realidade e que toma a parte pelo todo, que prefere a análise à síntese.
Por outro lado, a perspectiva holística, para o homem, é, afinal, o acordar da totalidade dele próprio e do seu enquadramento vital criativo, no qual ele poderá desenvolver ou despertar a sua essência espiritual. Consequentemente, a consciencialização desta Unidade, em si própria, confere ao homem uma imensa responsabilidade perante a Natureza, suas Leis e Evolução.
Esta nova descoberta irá consequentemente provocar transformações radicais na ordem estabelecida anteriormente e surgirá então uma nova Cultura e uma nova Ciência.
A aproximação holística apresenta-se como um fio condutor que unirá, unificará e reunirá as várias ciências e filosofias num novo movimento com uma nova e consequente dinâmica de intervenção ao nível dos conceitos e das práticas de concepção do mundo.
Como consequência, a política, a economia e a tecnologia mudarão de carácter, assim como mudará igualmente a relação de dependência Norte/Sul, do Ocidente em relação ao Terceiro Mundo e em última análise, mudarão as relações que os homens estabeleceram entre si e o Universo.

Holismo, é portanto, um neologismo que se poderá identificar com uma perspectiva globalizante da Vida numa visão macroscópica, sistémica e ecológica.
Focando-nos na realidade Teosófica, relacionaremos obrigatoriamente o Holismo com a visão Unitária da Vida e do Homem, em que nada se encontra desligado e ou separado de nada, interpenetrando-se os conceitos, os átomos e as acções do e no quotidiano… Conceito metodológico que contém em si, subjacentes, as ideias de integração, de totalidade, numa perspectiva abarcante de toda a realidade humana que faz parte integrante das nossas relações quotidianas, enquadradas pela Natureza e pela Cultura – duas faces da mesma moeda…
Num enfoque do macro-social passamos do modelo reducionista economicista para um outro modelo totalmente novo onde a complexidade da relação humana e da sua actuação equilibrada no Cosmos acontece e se desenvolve harmoniosamente. Afinal existe uma alternativa de Intervenção para o Homem! E esta aparece através do diálogo e da mudança, através da Ecologia, da Física, da Filosofia, da Biologia… Através da tentativa de construção séria e responsável de um mundo novo, de um homem novo, que se quer dinâmico e não-dogmático, profundamente atencioso e necessariamente em transformação e em evolução contínuas.
Estarão, contudo, criadas as condições para o aprofundamento desta relação nova que aproxima inevitavelmente a parte e o todo? Entre mim e a flor à minha frente constitui-se, forma-se, existe uma Vida Única e Una – talvez esteja aqui a chave da nova relação transformante e transformadora…
Holisticamente, causa e efeito não são opostos, mas constituem um todo indivisível, reflectido na percepção individual que emerge com uma nova consciência, abarcando o Universo na sua totalidade… Será deste pressuposto que terá de brotar uma nova atitude face à Realidade e às relações humanas, complexas por natureza, quotidianamente implementadas nos vários níveis e sectores da intervenção social, cultural, científica… e durante as próprias actividades comezinhas do dia-a-dia… Mas, repito, haverá condições para aprofundar verdadeiramente a relação profunda que existe entre a parte e o todo? Entre o observador e o observado? Entre mim e a flor está a Vida Una, o Todo Indivisível, mas quiçá oculto porque ainda não despertei para a Percepção Total… onde a Voz do Silêncio e o Cântico da Criação vibram em Uníssono por todo o Universo.

Não esqueçamos nunca que os primeiros degraus para alcançarmos a Sabedoria Divina são: “Vida limpa, mente aberta, coração puro”.

Paz a todos os Seres.

Rui Arimateia - “Textos Teosóficos XIV”
Évora, Ramo “Boa-Vontade” da Sociedade Teosófica de Portugal

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ao fundo... a Luz!


INICIAÇÃO

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
… … … … … … … … … …
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

… … … … … … … … … … …

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre ciprestes.
… … … … … … … … … … …
Neófito, não há morte.


FERNANDO PESSOA

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A Demanda


Desenho de A. Couvinha

ÉVORA TERRA MISTÉRICA

Uma História...

Terá sido por altura dos primórdios do Renascimento Eborense que eventualmente terão sido produzidas as cenas iconográficas das assim denominadas "Casas Pintadas", mais concretamente do Claustrim, cuja entrada se faria pela antiga Rua do Coudel-Mor (hoje Travessa das Casas Pintadas). É interessante referir que as pinturas que deram origem ao topónimo Rua das Casas Pintadas (hoje Rua de Vasco da Gama) já nos finais do século XIX eram memória segundo nos referiu Felipe Simões, que já não as viu in loco.

Há uns tempos estando eu numa das frequentes visitas àquele local mágico, apreciando mais uma vez as pinturas a capela, o jardim o ar que se respira, o silêncio, a paz..., aparece uma outra visita. Era um senhor de uma certa idade já avançada, de rosto e postura nobres mas de uma simplicidade a toda a prova, que constatei quando me dirigiu a palavra e estivemos um bom bocado a conversar sobre aquele tesouro que se desocultava perante nós.
Sabe – disse-me ele –, para a fundação de Évora, criou-se um mundus onde a terra dos antepassados dos fundadores ficou depositada o que por sua vez transformou a Évora-em-devir num espaço sacralizado. Nesse mundus ficaram igualmente concentradas todas as forças anímicas, benéficas e maléficas, que são parte constituinte daqueles fundadores míticos – materializadas e manifestadas nos seus desejos mais íntimos, nas suas aspirações mais profundas, nas suas crenças e mais sinceras convicções, na sua força interior, para o bem e para o mal.
Com o decorrer dos séculos – continuou o intrigante personagem – aquele espaço sagrado de criação e de construção foi profanado e do mundus libertaram-se forças poderosas e terríveis. A Acrópole continuou a receber e a assumir os espaços sagrados e sacralizados das diferentes religiões – naturalistas, deístas, muçulmanos e pagãos – e todas privilegiaram daquele espaço. Até aos nossos dias chegaram-nos o Templo Romano profanado, mas também a extraordinária obra dos construtores medievos, que é a Catedral de Santa Maria.
Contudo, com as forças, anteriormente concentradas no mundus, libertadas e em livre movimentação pela cidade, os hierofantes cristãos conseguiram dominar e fixar pictoricamente estas energias elementais num pequeno claustro, que nos séculos XV e XVI foi património dos Coudeis-Mor e Capitães da Cidade de Évora, da família Silveira-Henriques, cujo brasão ainda podemos observar num fecho de abóbada existente na capela anexa ao claustrim. Visão extraordinária a daqueles bestiários cristalizados no local - desde a hidra a monstros alados até ao bestiário tradicional do Alentejo.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

o caminho e o portal no limiar


SOBRE O CONTO DA TRADIÇÃO ORAL III

Nesta nossa moderna sociedade de consumo, acorrentado pelo egoísmo, e sobrevalorizando o pequenino eu omnidevorador, o homem comum organizou o quotidiano a seu modo e à sua medida, à medida dos seus interesses, aprisionou-o com sistemas de valores, com tradições, com ideologias, escamoteando a Realidade do que É. Contrapôs a tradição-ideologia à Tradição-Sabedoria, paradigma e essência dos Contos da Tradição Oral de todas as Culturas e de todas as épocas. Pois que, enquanto que a primeira tem como objectivos pragmáticos a apropriação do outro; a segunda aponta para a Libertação do Eu e do Outro, baseada na Sageza das Idades, sem idade, sem tempo, sem lugar...

Eis uma pequena história paradigmática:

Um Santo Homem, percorrendo os Caminhos do Mundo, encontrou-se casualmente com o Diabo. Este dava mostras de estar bastante satisfeito ao observar um outro homem que pulava e gesticulava de alegria.
Chegando o Santo junto do Diabo, perguntou-lhe a razão do seu regozijo. E este respondeu-lhe:
– É que aquele homem acaba de encontrar a Verdade!
– Sim? – retorquiu-lhe o Santo.
– Mas não contribuirá esse achado para enfraquecer o Mal e a Ignorância, o Erro e a Guerra, o Sofrimento e o Ódio, sobre a Terra?! E como poderás estar tu, Senhor da Ilusão, tão contente com o achado?
– Não te preocupes com isso! – respondeu-lhe o Diabo.
–É que eu vou ajudá-lo a organizá-la!!!...

Olhando esta imensa complexidade que é o mundo em que vivemos, tendo em conta os inúmeros factores subjectivos, todavia reais, que nos rodeiam e nos condicionam: a Cultura e os aspectos da nossa própria idiossincrasia; a História e os movimentos sociais; a Economia e a luta pela sobrevivência; a Natureza e a adaptação ao meio físico; etc. Perante todos estes factores, e muitos outros se poderiam nomear, a Vida humana é uma verdadeira aventura. Mas é essa Vida, esse Quotidiano que nos faz continuamente despertar para o facto de estarmos vivos e em relação. Encarar o Quotidiano como um autêntico Mestre é para nós, detentores de eu, um autêntico desafio. A despersonalização, a ausência de egoísmo, poderão fazer nascer aquela disponibilidade e aquela humildade que se encontram na origem da Atitude Religiosa. Atitude que nos permite abraçar e abarcar o Mundo do Real e fazer-nos compreender o Eterno Presente, o total entendimento dos Mistérios e a sua cabal realização pelo Homem... Alguns contos da tradição oral desvelam um pouco a real possibilidade que o homem possui dentro de si para viver uma relação de autêntica disponibilidade para o mundo e para o outro.

Em face das mais atrás referidas realidades dicotómicas de apropriação do mundo, é fundamental estarmos conscientes das relações de poder exercidas pelo urbano face ao rural, da cidade face à aldeia, isto para apresentar um exemplo corrente nos nossos dias do exercício, de facto, do etnocentrismo sócio-cultural.
É importante termos em conta as diferentes Identidades Culturais que frequentemente se complementam de modo harmonioso.
É urgente consciencializarmos a riqueza das relações humanas, da linguagem e das práticas autenticamente tradicionais... a fim de que se torne emergente uma autêntica coesão social entre as diferentes propostas e práticas culturais. Porque são estas diferenças e esta complexidade de relações que torna a Cultura tão rica e tão importante para o bem estar social dos grupos humanos.
É indispensável nós não esquecermos de que todos os homens e mulheres são sujeitos com um DIREITO inalienável à PALAVRA, em LIBERDADE.

Termino com um pequeno excerto de Rainer Maria Rilke e sem mais comentários pelo facto do mesmo ser bastante significativo e gerador de reflexão:

«Eu acabo de pronunciar a palavra Liberdade. Parece-me que nós adultos, vivemos num mundo onde não existe nenhuma liberdade. A liberdade é uma lei em movimento que cresce e se desenvolve com a alma do homem. As nossas leis já não são mais as nossas. Ficaram para trás enquanto que a vida corria... Conservámo-las por avareza, por ambição, por egoísmo. Mas antes de mais: por medo. Não as quisemos ter connosco, sobre as vagas, na tempestade ou em pleno naufrágio. Elas devem estar em segurança. E como as deixámos assim ao abrigo de qualquer perigo, sobre a margem, elas petrificaram-se. E eis a causa da nossa angústia: que tenhamos leis em pedra.» [“Samskola”, in «Oeuvres 1 – prose», 1966 (pág.265).]

Rui Arimateia

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Mercedes Sosa: a voz dos sem voz


Mercedes Sosa

MERCEDES SOSA, 1935 - 2009

Morreu ontem a cantora Mercedes Sosa.
Nasceu em San Miguel de Tucumán, no noroeste argentino, a 9 de Julho de 1935. Tinha ascendência mestizo, francesa e da etnia Quechua.
Morreu a 4 de Outubro de 2009 em Buenos Aires.
Mercedes Sosa foi uma cantora muito popular na América Latina e um pouco por todo o mundo, também em Portugal.
O seu cante tinha raízes na música folclórica argentina, tendo-se tornado uma das expoentes do movimento da Nueva Canción.
Mercedes Sosa era conhecida como "a voz dos sem voz".
Ouvir o seu cante é fazê-la re-viver dentro de quem a escuta, a sente...
Recordemo-la com o inesquecível canto "Gracias a la Vida":

http://www.youtube.com/watch?v=WyOJ-A5iv5I

criança... imaginação


Pintura de Paul Klee

SOBRE O CONTO DA TRADIÇÃO ORAL II

Gostaria de recordar aqui as palavras, plenas de sentido e oportunidade, da psiquiatra norte-americana Jean Shinoda Bolen:

«A criança que sabe instintivamente a verdade acerca do que ama e quem ama, também reage a histórias que são verdadeiras no sentido mítico mais profundo. Para fazermos o mesmo, precisamos ser a criança dentro de nós, que é receptiva ao maravilhamento e à magia, que escuta sem críticas e entra na história a sério, e uma pessoa sensata que sabe que a história é verdadeira metaforicamente.» [in BOLEN, Jean Shinoda – Travessia para Avalon, Planeta Editora, 2.ªEdição, Lisboa, 1996.]

Ao debruçar-nos sobre o universo do Conto da Tradição Oral, inserimo-nos necessariamente, se o quisermos compreender na sua globalidade e na sua complexidade, em duas problemáticas diferentes, todavia complementares: a das Sociedades Tradicionais não urbanas e a da Identidade Cultural caracterizadora de um conjunto de indivíduos que partilham um espaço geográfico comum ao longo de um tempo indefinido mas que trocam entre si experiências de vida.
As diferenças que aponto entre sociedades urbanas e sociedades rurais – embora aquelas possam estar matizadas culturalmente por um ruralismo por vezes disfarçado, inconsciente, ou até mesmo recusado –, saltam mais vividamente aos nossos olhos se analisarmos as relações humanas na perspectiva de olharmos e questionarmos a construção do quotidiano.

Assim, verificamos que o quotidiano é constituído pela sucessão de pequenos momentos presentes, infinitesimais, para que, em última análise, a Consciência e o Ser possam evoluir, através da prática e da experiência. Percepcionado globalmente por nós, é por nós também deturpado por juízos de valor, justificados e condicionados por variadissimos factores e diferentes realidades:
– a política, que o tenta domesticar e arrumar, segundo as conveniências e as ideologias dos Senhores do Poder Dominante;
– as religiões instituídas, que o tentam encarcerar em sistemas de valores dogmáticos, ao serviço de grupos de interesse e igualmente de poder;
– a ciência, que o tenta esmiuçar, analisar e explicar para, em última análise, as mais das vezes o colocar ao serviço dos detentores dos poderes político e económico;
– o consumo, que o tenta enquadrar numa lógica economicista no mercado da oferta e da procura capitalista: a venda de quotidianos é moeda corrente na nossa sociedade com as novas indústrias do turismo e do lazer;
– a moda, que muitas vezes, através de práticas alienatórias, o procura neutralizar, realizando uma amálgama confusa de valores que lhe estão subjacentes na vida real: vejamos por exemplo a empresa multinacional da Benetton [passe a publicidade!] e as suas grandes campanhas oportunísticas que efectua, na televisão, nos jornais e nos demais meios de informação de massas, recuperando a seu favor (e numa lógica de promoção de vendas dos seus produtos) valores socialmente negativos – racismo, sida, fome, morte... sofrimento!

É importante questionarmo-nos, depois desta breve análise: e o nosso quotidiano, como é?! Isto é, e o quotidiano que nós próprios construímos e estamos a construir sem cessar, qual é?! Qual a sua originalidade?! De que criação e/ou recriação somos nós responsáveis?!
Estas condicionantes do quotidiano estão assimiladas nas sociedades urbanas e encontram no mundo rural mentalidades expectantes e simultaneamente passivas, pois não dominam as linguagens e as práticas propostas nomeadamente através dos meios de comunicação massificantes, com especial relevo para a televisão.
Necessariamente que os contos, nos seus tempos e nos seus ritmos tradicionais, nas suas mensagens e conteúdos, são influenciados, alterados, encontrando-se hoje praticamente em vias de extinção, muito acelerada.

Um factor de uniformização/desestruturação cultural por excelência, que vem embotando a sensibilidade, o espírito crítico e a inteligência, principalmente das crianças e jovens, é a televisão, não só pelas suas programações, mas também pelo facto deste “instrumento” não ser utilizado racionalmente pelas famílias e pelas instituições com responsabilidades principalmente no domínio da Educação.
Gostaria de referir um trabalho extremamente interessante da autoria de Karl Popper e John Condry, denominado significativamente – Televisão: um perigo para a Democracia, [Col.’Trajectos’, N.º29, Ed. Gradiva Publicações,Lisboa,1995.] em que o segundo autor, a certo passo, refere:

«A televisão não revela verdadeira curiosidade, que falta muitas vezes às crianças que estão habituadas a vê-la muito tempo. Sistema omnisciente por excelência, não deixa espaço ao mistério. Para penetrar nos verdadeiros mistérios é preciso tempo; isso pressupõe também à partida autênticos conhecimentos e situações reais para os estimular. » [op. cit., pág.48]

Daquele tempo sem tempo, de relação humana autêntica, de comunhão entre sujeitos, que é o de contar um conto, seja pela avó seja por um outro contador, e do tempo passado em frente do écran da TV, em termos qualitativos, encontramos um espaço abissal... Em caso de dúvida, experimentemos...
Contar um conto é um acto criativo... O acto de ouvir um conto não é de modo nenhum um acto passivo. A criança fica envolvida por uma egrégora de símbolos, signos e significações que vão permitir-lhe a criação de pontos de referência vivenciais: paradigmas de auto-identificação, os quais vai querer imitar, qualidades que lhe vão permitir realizar, imaginar e exprimir, em última análise, a distinção entre o mal e o Bem arquetípicos...

E continua mais à frente J. Condry:

«Será dar provas de excesso de romantismo recordar que, nos séculos anteriores, as fábulas e os contos ocupavam uma grande parte da vida das crianças e que, ainda não há muito tempo, se lia para as crianças mais pequenas e se estimulavam as mais velhas para esta actividade? Hoje, em muitas famílias, a televisão substituiu os contos por histórias modernas, homogéneas, mas menos coerentes. O tempo passado a vê-las desvia as crianças da leitura; a sua capacidade de ler é pouco desenvolvida; aliás, atribui-se pouco valor a esta actividade. (...).» [op. cit, pág.64]

É bastante elucidativo o título do artigo em que o autor faz publicar estas reflexões: «Ladra do tempo, criada infiel», reportando-se à televisão. Perante as imagens da televisão, o diálogo torna-se inexistente. As capacidades de imaginação e de reflexão tornam-se secundárias, correndo inclusivamente o risco de se atrofiarem. Se à partida a televisão foi considerada um meio privilegiado de comunicação e de explicação das relações vivenciais para uma melhor compreensão do mundo, hoje, consideram os referidos autores, aquele meio de comunicação serve quase exclusivamente para vender produtos disponíveis nos mercados – isto é, sem publicidade comercial a televisão não existia, pelo menos tal como a conhecemos hoje! –, assumindo-se como um veículo transmissor e ao serviço das ideologias dominantes, consumistas, violentas e normalizadoras dos gostos, dos hábitos e das mentes dos seus consumidores...

E é ainda Condry que afirma:

«As crianças têm tanta necessidade de se conhecerem a si próprias como ao mundo exterior; e só poderão fazer essa aprendizagem realizando as suas próprias experiências e estando em contacto com outros seres humanos. O que faz falta às crianças é mais experiência e menos televisão.» [op. cit, pág.66]

Não é por acaso que nos encontramos a viver uns tempos em que a busca das raízes ­– sociais, culturais, históricas – se tornou fundamental. No fundo trata-se do homem à procura de si próprio, das suas origens. Nunca o conceito de Património teve tanta importância, nunca as iniciativas tendentes à sua defesa e preservação tiveram tantos apoios institucionais.
Um certo revivalismo, dirão alguns, está na base das muitas recolhas de contos e lendas das tradições orais um pouco por todo o lado. Contudo, certo é que todas estas buscas, recolhas e sua posterior divulgação têm um objectivo comum e único: a procura da Identidade Cultural.
­ Já no tempo de José Leite de Vasconcellos se detectavam sinais de mudança em termos da vivência do conto tradicional pelos indivíduos e a sua decrescente importância nas relações familiares, tal como este depoimento registado pelo Professor de uma mulher de Tolosa: “Dantes passava-se o serão a contar contos... Agora não!»

Rui Arimateia

domingo, 4 de outubro de 2009

contar um conto... ouvir um conto...


G. Doré

SOBRE O CONTO DA TRADIÇÃO ORAL I

A acção – fictícia nos dias de hoje – passa-se numa aldeia algures no Alentejo. Contudo poderia ter-se generalizado a uma das muitas aldeias doutras regiões de diferentes países:

– Ó Avó, conte-nos um conto...
– Pois sim, vamos ali para o pé do lume que tem um belo braseiro, e estejam sossegados.
–Ó Avó, conte-nos aquele da Serpente e da Nora – grita a Joana.
– Não! Esse não – replica o João –, antes aquele da Guiomar, a filha do Diabo...
E volta-lhes a Avó, com um sorriso cheio de ternura e um olhar já perdido nos confins da sua infância, época saudosa em que ela, por sua vez, tinha ouvido esses mesmos contos à sua Avó velhinha:
– Pois muito bem, hoje vou contar-lhes o Conto do Soldado Estragado, que vocês nunca ouviram.
– Sim, sim, conte-nos, conte-nos! – gritavam entusiasmados os petizes, antecipando o prazer e os momentos mágicos da narração, que daí a pouco se transformaria numa autêntica viagem imaginária através de reinos longínquos pejados de heróis, cujas façanhas seriam protagonizadas por eles próprios...
E fez-se um silêncio total, em que só se ouvia, para além das respirações ofegantes, o crepitar das chamas... E todo o espaço envolvente era preenchido pela presença da Avó e pelos olhos desmedidamente abertos, e ávidos de palavras, das crianças.
E começa ela, repetindo frases e gestos milenares, reactualizando os sentidos e as realidades desde há muito vividas, sentidas e contadas de geração em geração:
– Era uma vez... e a Comunicação aconteceu...

O Soldado Estragado era um homem que não aprendia nada na tropa, foi sempre militar... E atão, como ele ‘tava sempre na tropa, os outros subiam e abalavam e ele ficava sempre na tropa e ‘tava sempre na mesma – puseram-lhe “o Soldado Estragado”.
Depois, havia um rei – naquele tempo era os reis – e tinha uma filha que todas as noites gastava sete pares de botas com as solas de ferro e ninguém sabia aonde era – isto é uma espécie de um encanto, néi? – ninguém sabia aonde e atão, o qu’é qu’o, o rei, fez?: começou a pôr uma sentinela todas as noites a guardar a filha para saber aonde é que ela gastava aqueles sete pares de botas. Ora!... e adepois quem nã soubesse, no outro dia era morto!
Foi lá um, no outro dia, coitadito!, nã sabia de nada... mataram-no.
Foi outro, mandaram outro!
Chegou lá, no outro dia, os sete pares de botas outra vez só com as empenhas!... Solas já nã tinha... Outro morto!
Mandaram outro. Mas aquele outro, tinha já mais uns galões do que os outros e pensou assim:
– Ora esta! Eu vou ver se o Soldado Estragado quer ir por mim, pode ser que ele saiba...
Foi-lhe dizer e ele nã quis.
– Eu não, não quero... atão os outros – ele era assim muito abrutalhado – vão matá-los e agora vou p’ra lá eu por querer? Eu não!...
No outro dia mandaram-no a ele. Então foi ele, coitado! E pôs-se a pensar no qu’é que havia de fazer à vida, p’ra saber o qu’é que havia de fazer... Ora, abalou... abalou assim pela estrada abaixo, chegou lá a um chafariz assentou-se, muito aborrecido da vida, a pensar o qu’é que havia de fazer... ainda não estava aborrecido de viver...
Apareceu uma velhinha com um chapéu na cabeça:
– Atão soldadinho! O que estás a fazer?
– Ora, estou aqui muito aborrecido...
– Atão?!...
– Atão, a filha do rei todas as noites gasta sete pares de botas com as solas de ferro... e mandam um militar fazer guarda todas as noites, de sentinela, p’ra saber onde ela gasta os sete pares de botas e se não souber é morto. Já mataram três... E agora calhou-me a mim e eu vim-me embora... Agora vou p’ra lá, não sei tal e qual como os outros e o qu’é qu’eu faço?
– Olha filho, tu vás... tu vás saber...
Era Nossa Senhora, aquela velhota.
– Tu vás saber...
– Eu?... Ná!... Eu nã vou...
– Vás! Vás!...Olha, vai e toma lá uma borrachinha, – e deu-lhe uma borrachinha – metes’a aí por dentro do colarinho da camisa. E depois, quando ela te disser assim: – “Soldado, temos d’ir deitar!”–, tu tens já a borrachinha preparada e ela antes de se deitar dá-te uma chávena de chá... E tu nã bebas o chá, mete-o para dentro dessa borracha. E depois, ela diz: – “Soldado, vamos deitar.”, e tu vás-te deitar. E depois vem uma música muito grande... Quando tu ouvires uma grande música, assim um grande barulho dum trem ou coisa assim, tu ‘tás alerta p’ra quando ela sair, tu saíres também. E deu-lhe um saco para ele levar qu’é para trazer as empenhas das botas. – E ela depois, quando vem aquela grande música, corre à cama e dá-te umas espetadelas com um alfinete, e tu aguentas-te... Nã te queixas, fazes que ‘tás a dormir como se tivesses bebido o chá – que era o chá das dormideiras.
Bom, ele assim fez... Lá se fiou nos paleios da velhota, que ele nem sabia que era Nossa Senhora, pois... E foi... Foi lá fazer guarda, e ela, às tantas, disse-lhe assim:
– Então Soldado, são horas de irmos deitar, não?...
– Nã será mal, não, menina princesa, e tal...
Bom, ela então:
– Eu vou fazer o chá.
Foi fazer o chá. Foi-lhe dar uma chávena de chá e ele não o bebeu. Toma! Dentro da borrachinha...
E ela:
– Soldado, temos de ir deitar, não?
– Parece que já vou a estar com sono... Então vá, vamos deitar – disse ele.
Foi-se deitar. E daí a nada, estava assim a fazer que estava a dormir e sempre a pensar, sempre aflito... Quando ele ouve aquele grande barulho e levantou-se logo à coca. Ora... Daí a nada vem ela com um alfenete e, zumba!! duas ou três espetadelas com o alfenete, e ele coitadito até... Mas aguentou-se e nunca disse nada, pra ver se sabia...
Porque o rei dizia que aquele que fosse capaz de saber onde ela gastava os sete pares de botas, casava com ela...
Depois, pegou no saquinho e oh! abre! atrás dela. Porque aquilo estava preparado para ela não o ver... Ela não o via...
Ela amontou-se no trem.
Era ela que era amiga do Diabo Grande e o trem era puxado pelos diabos pequenos. Era tudo diabos.
Bom, passaram ao Jardim do Cobre, e houve uma voz que disse assim:
– Lá vai a Princesa da Austra, com a sua companhia toda atrás! – eram os diabos.
E ele colheu um raminho de cobre e meteu-o dentro da algibeira do casaco.
Passaram ao Jardim da Prata:
– Lá vai a Princesa da Austra, com a sua companhia toda atrás!
E ele colheu um raminho de prata e meteu-o na algibeira.
Passaram ao Jardim do Ouro:
– Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás.
E ele colheu um raminho de ouro. E levou os três raminhos.
Chegou lá e era um salão muito bonito, muito em luxo. Nossa Senhora tinha-lhe dito para ele se sentar num banco qualquer que não havia novidade, qu’ela não o via. E ele pegou no saquinho e sentou-se num banco. E a princesa andou dançando: foram sete voltas e cada uma volta era um par de botas... E ele apanhava as empenhas e metia dentro do saco. Depois, acabou as sete voltas, tocaram a abalar, ele veio para o trem e trouxe o saco com os sete pares de empenhas das botas e trouxe os raminhos na algibeira.
No outro dia, foi tudo fazer a festa ao Soldado Estragado porque naquele dia é que se iriam ver livre dele:
– Eh! Soldado Estragado! Hoje é que é o fim, e tal...
E ele disse:
– Ah! Ah! Os outros ficaram cá e não souberam mas é que eu já sube onde é que ela gastou os sete pares de botas.
– O qu’é que tu sabes, mê mintiroso?! – disse ela logo.
– Sei que você foi ao Inferno, bailhar com o Diabo Grande e abalou daqui puxada pelos diabos piquenos e passámos ao Jardim do Cobre e houve uma voz que disse: “Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás”, e está aqui um raminho de cobre que eu colhi... Passámos ao Jardim da Prata e houve outra voz que disse: “Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás.”, está aqui um raminho de prata que eu colhi... E passámos ao jardim do Ouro e houve outra voz que disse: “Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás.”, e aqui está outro raminho de ouro que eu colhi... E lá, você deu sete voltas em volta da sala a bailhar com o Diabo Grande, cada uma volta foi um par de botas, estão aqui as empenhas delas...
E ela encantou-se...
Nã queria casar com ele e por isso encantou-se e disse:
– Só peço ao mê pai que me ponha uma sentinela na capela todas as noites.
E atão ela desapareceu, encantou-se!...
Foi uma sentinela p’rá capela nessa noite... e no outro dia não estava lá. No outro dia foi outra e no outro dia não estava lá...Três! Foram três!...
Havia lá um que lhe calhou, e foi então ter com o Soldado Estragado, p’ra ele ir por ele, p’ra desempenhar o papel dele... O outro pagou-lhe bem, já nã sei aquanto é que era... era lá do tempo dos reis, ou nã sei quê... E atão ele foi. Mas começou com medo de nã ser capaz de desempenhar o papel como tinha sido na outra e abalou pela tal dita estrada outra vez e foi para o tal chafariz... Assentou-se, nã via a velhota e assentou-se lá a pensar...
Apareceu a velhota ao fim de um bocado.
– Atão soldadinho, atão?!...
– Ai! Deixe-me lá!...
– Atão como é que te vistes com a princesa?
– Bem. Mas atão e agora?... Agora que ela pediu uma sentinela ao pai dela, e todas as noites lá vai estar um e no outro dia de manhã já lá nã está!...
– Atão, ela come-os!... – Disse a velhota.
Pior ele ficou...
– Ah! Mas atão agora é qu’eu lá nã vou...
– Vás sim. Tu vás lá.
– Eu nã vou...
Ela lá lhe começou a dizer:
– Vás... Olha, vás p’ra lá e pões-te atrás do altar... E ela aparece à meia-noite a bradar à sentinela mas tu nã respondas!... E nã queiras saber, deixa que ela depois abala...
Bom, ele foi... Lá foi de sentinela e assim que marcou a meia-noite, aparece ela...
– Oh! Sentinela!!... Oh! Sentinela!!... – Dentro da tal capelita.
E ele, nada...
E ela novamente:
– Oh! Sentinela!!... Oh! Sentinela!!...
E ele nada...
E ela, por fim, disse:
– Mal haja os favores que o meu pai me faz... – E nisto desapareceu, abalou.
E ele ficou.
No outro dia, foram ver, lá estava o Soldado Estragado... o Soldado Estragado nã teve prejuízo...
Ora, calhou outro ir p’ra lá, desapareceu outra vez, no outro dia...
No outro dia calhou outro, foi logo ter com o Soldado Estragado, a pagar-lhe bem, e ele foi outra vez pela tal estrada abaixo, p’ró tal chafariz. Chegou lá, apareceu a tal velhota:
– Atão soldado, atão como é que te destes?
– Ah! Eu dê-me bem! Ela por aí andou às trombadas... – Dizia ele.
– Atão agora vás lá outra vez.
– Eh! Nã vou... Já tenho medo.
– Nã tenhas medo... Vás e agora pões-te atrás da pia da água benta e nã queiras saber, deixa-a gritar... Nã lhe digas nada.
Bom, lá o convenceu, com muita conversa e ele atão lá foi... Foi lá p’ró pé da pia da água benta e apareceu ela outra vez à meia-noite, a gritar à sentinela. E ele, nada... E ela lá andou aos gritos, aos gritos como da outra vez e ele nã acudiu e ela disse:
– Mal haja os favores que o meu pai me faz... – E abalou outra vez.
No outro dia lá estava o Soldado Estragado.
No outro dia calhou a outro e esse foi logo ter com ele, já nã esperou então mais demasias... Já via que só o Soldado Estragado é que era capaz de desempenhar o papel... Foi logo ter com ele.
Ele, abalou outra vez pela tal estrada abaixo, lá ter com a tal velhota outra vez. Lá ao tal chafariz, depois aparecia a velha...
– Atão e que tal?...
– Eh! Agora é qu’eu já lá nã vou.
– Vás, vás! Agora é a última vez.
– Nã vou, qu’ela agora já dava urros e batia ali quase ao pé dos meus pés e dizia assim muitas brutidades...
– Não... Tu vás! Tu agora vás e pões-te a fazer que estás a dizer missa... Pões-te ao altar, vestes a opa do padre e pões-te ao altar a fazer que dizes missa, e ela, aparece-te a bradar e tu nã respondas...
Ele foi, pôs-se lá, e ela andou a gritar, a gritar à sentinela e ele nã lhe respondeu e ela correu p’ra ele e agarrou-se a ele e disse-lhe:
– Ai! Soldado Estragado! Sempre me ganháste...
Porque aquele que descobrisse é que casava com ela... Sempre foi ele que a descobriu e sempre foi ele que casou com ela... Ela já nã pôde abalar porque ficou desencantada. No outro dia o Soldado Estragado casou com a Princesa desencantada e assim acabou este conto.

Este conto da tradição oral popular foi recolhido na Freguesia de S. Sebastião da Giesteira, Concelho de Évora, no Inverno de 1983, no decorrer de uma sessão do Curso de Alfabetização de Adultos que na época decorria na aldeia. Foi contado pela Senhora Jerónima, trabalhadora rural, há muitos anos residente nesta aldeia; por sua vez terá ouvido o conto a um seu antigo manageiro. Na transcrição para a linguagem escrita, procurou-se que a oralidade fosse minimamente respeitada, tendo em vista o reconhecimento da sua musicalidade e do seu expressionismo próprios.
Conto com características narrativas mistas pertencentes ao maravilhoso cristão com elementos arcaicos da tradição pagã, versões fragmentadas deste conto foram publicadas por José Leite de Vasconcellos. [in «Contos Populares e Lendas», I: Conto n.º 320-’A Princesa que rompia sete sapatos numa noite’ (pág.636); Conto n.º 321-’A Princesa de Áustria e o Zé Pequeno’ (pág.638); Conto n.º 322-’Os Sapatinhos de Ferro’ (pág.640).]

Rui Arimateia