segunda-feira, 5 de outubro de 2009

SOBRE O CONTO DA TRADIÇÃO ORAL II

Gostaria de recordar aqui as palavras, plenas de sentido e oportunidade, da psiquiatra norte-americana Jean Shinoda Bolen:

«A criança que sabe instintivamente a verdade acerca do que ama e quem ama, também reage a histórias que são verdadeiras no sentido mítico mais profundo. Para fazermos o mesmo, precisamos ser a criança dentro de nós, que é receptiva ao maravilhamento e à magia, que escuta sem críticas e entra na história a sério, e uma pessoa sensata que sabe que a história é verdadeira metaforicamente.» [in BOLEN, Jean Shinoda – Travessia para Avalon, Planeta Editora, 2.ªEdição, Lisboa, 1996.]

Ao debruçar-nos sobre o universo do Conto da Tradição Oral, inserimo-nos necessariamente, se o quisermos compreender na sua globalidade e na sua complexidade, em duas problemáticas diferentes, todavia complementares: a das Sociedades Tradicionais não urbanas e a da Identidade Cultural caracterizadora de um conjunto de indivíduos que partilham um espaço geográfico comum ao longo de um tempo indefinido mas que trocam entre si experiências de vida.
As diferenças que aponto entre sociedades urbanas e sociedades rurais – embora aquelas possam estar matizadas culturalmente por um ruralismo por vezes disfarçado, inconsciente, ou até mesmo recusado –, saltam mais vividamente aos nossos olhos se analisarmos as relações humanas na perspectiva de olharmos e questionarmos a construção do quotidiano.

Assim, verificamos que o quotidiano é constituído pela sucessão de pequenos momentos presentes, infinitesimais, para que, em última análise, a Consciência e o Ser possam evoluir, através da prática e da experiência. Percepcionado globalmente por nós, é por nós também deturpado por juízos de valor, justificados e condicionados por variadissimos factores e diferentes realidades:
– a política, que o tenta domesticar e arrumar, segundo as conveniências e as ideologias dos Senhores do Poder Dominante;
– as religiões instituídas, que o tentam encarcerar em sistemas de valores dogmáticos, ao serviço de grupos de interesse e igualmente de poder;
– a ciência, que o tenta esmiuçar, analisar e explicar para, em última análise, as mais das vezes o colocar ao serviço dos detentores dos poderes político e económico;
– o consumo, que o tenta enquadrar numa lógica economicista no mercado da oferta e da procura capitalista: a venda de quotidianos é moeda corrente na nossa sociedade com as novas indústrias do turismo e do lazer;
– a moda, que muitas vezes, através de práticas alienatórias, o procura neutralizar, realizando uma amálgama confusa de valores que lhe estão subjacentes na vida real: vejamos por exemplo a empresa multinacional da Benetton [passe a publicidade!] e as suas grandes campanhas oportunísticas que efectua, na televisão, nos jornais e nos demais meios de informação de massas, recuperando a seu favor (e numa lógica de promoção de vendas dos seus produtos) valores socialmente negativos – racismo, sida, fome, morte... sofrimento!

É importante questionarmo-nos, depois desta breve análise: e o nosso quotidiano, como é?! Isto é, e o quotidiano que nós próprios construímos e estamos a construir sem cessar, qual é?! Qual a sua originalidade?! De que criação e/ou recriação somos nós responsáveis?!
Estas condicionantes do quotidiano estão assimiladas nas sociedades urbanas e encontram no mundo rural mentalidades expectantes e simultaneamente passivas, pois não dominam as linguagens e as práticas propostas nomeadamente através dos meios de comunicação massificantes, com especial relevo para a televisão.
Necessariamente que os contos, nos seus tempos e nos seus ritmos tradicionais, nas suas mensagens e conteúdos, são influenciados, alterados, encontrando-se hoje praticamente em vias de extinção, muito acelerada.

Um factor de uniformização/desestruturação cultural por excelência, que vem embotando a sensibilidade, o espírito crítico e a inteligência, principalmente das crianças e jovens, é a televisão, não só pelas suas programações, mas também pelo facto deste “instrumento” não ser utilizado racionalmente pelas famílias e pelas instituições com responsabilidades principalmente no domínio da Educação.
Gostaria de referir um trabalho extremamente interessante da autoria de Karl Popper e John Condry, denominado significativamente – Televisão: um perigo para a Democracia, [Col.’Trajectos’, N.º29, Ed. Gradiva Publicações,Lisboa,1995.] em que o segundo autor, a certo passo, refere:

«A televisão não revela verdadeira curiosidade, que falta muitas vezes às crianças que estão habituadas a vê-la muito tempo. Sistema omnisciente por excelência, não deixa espaço ao mistério. Para penetrar nos verdadeiros mistérios é preciso tempo; isso pressupõe também à partida autênticos conhecimentos e situações reais para os estimular. » [op. cit., pág.48]

Daquele tempo sem tempo, de relação humana autêntica, de comunhão entre sujeitos, que é o de contar um conto, seja pela avó seja por um outro contador, e do tempo passado em frente do écran da TV, em termos qualitativos, encontramos um espaço abissal... Em caso de dúvida, experimentemos...
Contar um conto é um acto criativo... O acto de ouvir um conto não é de modo nenhum um acto passivo. A criança fica envolvida por uma egrégora de símbolos, signos e significações que vão permitir-lhe a criação de pontos de referência vivenciais: paradigmas de auto-identificação, os quais vai querer imitar, qualidades que lhe vão permitir realizar, imaginar e exprimir, em última análise, a distinção entre o mal e o Bem arquetípicos...

E continua mais à frente J. Condry:

«Será dar provas de excesso de romantismo recordar que, nos séculos anteriores, as fábulas e os contos ocupavam uma grande parte da vida das crianças e que, ainda não há muito tempo, se lia para as crianças mais pequenas e se estimulavam as mais velhas para esta actividade? Hoje, em muitas famílias, a televisão substituiu os contos por histórias modernas, homogéneas, mas menos coerentes. O tempo passado a vê-las desvia as crianças da leitura; a sua capacidade de ler é pouco desenvolvida; aliás, atribui-se pouco valor a esta actividade. (...).» [op. cit, pág.64]

É bastante elucidativo o título do artigo em que o autor faz publicar estas reflexões: «Ladra do tempo, criada infiel», reportando-se à televisão. Perante as imagens da televisão, o diálogo torna-se inexistente. As capacidades de imaginação e de reflexão tornam-se secundárias, correndo inclusivamente o risco de se atrofiarem. Se à partida a televisão foi considerada um meio privilegiado de comunicação e de explicação das relações vivenciais para uma melhor compreensão do mundo, hoje, consideram os referidos autores, aquele meio de comunicação serve quase exclusivamente para vender produtos disponíveis nos mercados – isto é, sem publicidade comercial a televisão não existia, pelo menos tal como a conhecemos hoje! –, assumindo-se como um veículo transmissor e ao serviço das ideologias dominantes, consumistas, violentas e normalizadoras dos gostos, dos hábitos e das mentes dos seus consumidores...

E é ainda Condry que afirma:

«As crianças têm tanta necessidade de se conhecerem a si próprias como ao mundo exterior; e só poderão fazer essa aprendizagem realizando as suas próprias experiências e estando em contacto com outros seres humanos. O que faz falta às crianças é mais experiência e menos televisão.» [op. cit, pág.66]

Não é por acaso que nos encontramos a viver uns tempos em que a busca das raízes ­– sociais, culturais, históricas – se tornou fundamental. No fundo trata-se do homem à procura de si próprio, das suas origens. Nunca o conceito de Património teve tanta importância, nunca as iniciativas tendentes à sua defesa e preservação tiveram tantos apoios institucionais.
Um certo revivalismo, dirão alguns, está na base das muitas recolhas de contos e lendas das tradições orais um pouco por todo o lado. Contudo, certo é que todas estas buscas, recolhas e sua posterior divulgação têm um objectivo comum e único: a procura da Identidade Cultural.
­ Já no tempo de José Leite de Vasconcellos se detectavam sinais de mudança em termos da vivência do conto tradicional pelos indivíduos e a sua decrescente importância nas relações familiares, tal como este depoimento registado pelo Professor de uma mulher de Tolosa: “Dantes passava-se o serão a contar contos... Agora não!»

Rui Arimateia

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