quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O LUGAR DA RELIGIÃO NO MUNDO ACTUAL

“Não vivas no presente nem no futuro, mas sim no eterno. (…).
Cresce como cresce a flor, inconscientemente,
mas ardendo em ânsias de entreabrir a sua alma à brisa.
Assim é como deves avançar: abrindo a tua alma ao eterno.”

– Mabel Collins

“Vós sois o mundo e o mundo sois vós.
A vossa consciência é a consciência da humanidade.
Pois que todos os homens são semelhantes, têm os mesmos medos, a mesma dor, os mesmos sonhos de felicidade, os mesmos conflitos interiores, a mesma solidão.
O vosso sofrimento é o sofrimento da humanidade.”

– Krishnamurti


Ao tratar este tema sobre o “Lugar da Religião no mundo actual” gostaria de referir que o abordarei sob uma perspectiva Teosófica e considerando, à partida, a TEOSOFIA enquanto uma Ética Universal, que me permitirá olhar o lado luminoso da RELIGIÃO-SABEDORIA, que não é apanágio nem pertença de nenhum povo eleito, de nenhum poder constituído, de nenhum sacerdote, de nenhuma igreja…

O grande lema da Sociedade Teosófica, e que me tem acompanhado desde a primeira vez que com ela contactei é: “Não há Religião Superior à Verdade.” Verdade aqui que procura ser a tradução aproximada da palavra sânscrita “Dharma”, que significará também “Dever”, “Lei”, “Virtude”, “a essência da Religião, da Filosofia e da Ciência”… Esta pequena frase resolveu-me o problema da “autoridade” em Teosofia e na Sociedade Teosófica. Problema esse que os próprios textos de H. P. Blavatsky e de outros Teósofos como C. W. Leadbeater e Annie W. Besant também focavam e alertavam.
“Faz o que tens a fazer e sê aquilo que és… – dizia C. W. Leadbeater a um “buscador do oculto” – não dês importância a atitudes marcadamente convencionais, sê tu próprio… o que as pessoas pensam ou dizem acerca de ti, aprovando ou desaprovando as tuas acções, é indiferente para o teu real desenvolvimento… não creias em nada que não experimentes e não comproves por ti próprio e em ti próprio…”.
Eticamente a “autoridade” teosófica, no fundo, reside na experiência e na vivência de cada um de nós. Reside na possibilidade e na capacidade de cada qual viver a Teosofia na vida do dia-a-dia.
Atentemos a parte da Comunicação da Presidente Annie Besant à Convenção Anual da Sociedade Teosófica que teve lugar em Adyar a 24 de Dezembro de 1932 (1), dizia ela, com a firmeza habitual que a caracterizava como oradora, não obstante já bastante fisicamente debilitada pela doença:
“Amigos, o assunto que eu vos quero a todos hoje transmitir firmemente, é de que somente enquanto viverdes a Teosofia podereis propagar a Teosofia. Não são as nossas palavras, é a nossa vida, que afecta as pessoas. E eu quero que cada um de vós, e todos quantos tiverem influenciado, se lembre que o homem que vive uma vida Teosófica é o melhor propagandista das ideias Teosóficas. As nossas palavras não influenciam tanto as pessoas quanto as nossas vidas; se as nossas vidas não forem egoístas, se forem puras, amorosas e auxiliadoras, serão a melhor propaganda das ideias Teosóficas; porque não é bom falar de Teosofia a menos que vivamos aquilo que falamos. (…). Não importa o discurso de uma pessoa, são as suas acções que interessam e importam. (…).”

Na verdade a Humanidade é Una, sendo que a capacidade de apreensão e compreensão dos problemas da Vida e da Morte reside no interior de cada um de nós. Nós temos a total Liberdade para viver e para problematizar essa Vida que vivemos, que está em nós e à volta de nós, que esteve antes e que se prolongará após o nosso desaparecimento nesta existência.
Também J. Krishnamurti, o grande lutador pela liberdade da consciência individual e pesquisador sincero na procura do Autoconhecimento, nos alertava:
“Amigo, quem pensais que eu sou? Se eu disser ‘sou o Cristo’, criareis uma outra autoridade, Se disser ‘não sou’ criareis também uma outra autoridade. Pensais que a Verdade tem algo que ver com o que vós julgais que eu sou? Não vos preocupais com a Verdade e sim com o vaso que contem a Verdade. Não quereis beber das águas, mas quereis verificar quem modelou o vaso que as contém. Amigo, se eu vos disser que ‘eu sou o Cristo’ e um outro vos disser que ‘não sou’, – com quem estareis? Ponde de parte o rótulo, pois este não tem valor. Bebei da água se a água está limpa: eu vos digo que possuo essa água limpa; tenho esse bálsamo que purifica, que grandemente curará; e se me perguntais: ‘quem sois?’ – SOU TODAS AS COISAS, POIS SOU A VIDA.”.

Sobre a relação entre Teosofia e Religião recorro-me do texto clássico da autoria de H. P. Blavatsky, “A Chave da Teosofia” (2), que afirma a dado passo:
“Todos os homens têm espiritual e fisicamente a mesma origem, e é este o ensinamento fundamental da Teosofia. Sendo a humanidade fundamentalmente de uma única e mesma essência, e sendo essa essência una – infinita, incriada e eterna, quer lhe chamemos Deus ou Natureza –, não há nada que possa afectar uma nação ou um homem que não afecte todas as outras nações e todos os outros homens. (…). Quando se conseguir levar o homem a compreender que nenhuma das religiões é detentora de toda a verdade, que todas elas são mutuamente complementares, e que só é possível encontrar a verdade total conciliando todos os pontos de vista depois de se separar o que cada uma delas tem de verdadeiro daquilo que é falso, então poderá falar-se de verdadeira fraternidade em religião. (…) a Teosofia é a essência de todas as religiões e da verdade absoluta, sendo cada credo apenas uma pequena gota dessa mesma essência. (…).”

É por este motivo que o segundo objectivo da Sociedade Teosófica é tão importante: “Promover o estudo comparativo das Religiões, Filosofias e Ciências.”
Contudo o papel da Teosofia e dos Teósofos pretende ir muito mais longe, daí que seja o primeiro objectivo da Sociedade Teosófica o que mais importa: “Formar um núcleo de Fraternidade Universal da Humanidade, sem distinção de raças, sexo, casta ou cor.”

É importante relembrarmos o depoimento que H. P. Blavatsky referia numa Mensagem endereçada aos Teósofos Americanos, no Congresso de 1888 da Secção Americana da Sociedade Teosófica (3):
“(…). Numerosos são os que, não tendo nunca ouvido falar da Sociedade, são contudo teósofos, sem o saberem, porque a essência da Teosofia consiste na harmonização perfeita do divino e do humano no homem, na adaptação das suas qualidades e das suas aspirações divinas e no seu triunfo sobre as paixões animais ou terrestres. A bondade, a ausência de todo mau sentimento e de todo o egoísmo, a caridade, a boa vontade perante todos os seres, e a justiça perfeita perante os outros como perante nós próprios, são as características capitais. Aquele que ensina a Teosofia, prega o evangelho da boa vontade; e o inverso também é verdadeiro: quem pregar o evangelho da boa vontade, ensina a Teosofia. (…). A função dos Teósofos é a de abrir o coração e a compreensão dos homens à caridade, à justiça e à generosidade, atributos que pertencem especificamente ao reino humano e são naturais ao homem quando ele tiver desenvolvido as qualidades de um ser humano. A Teosofia ensina ao homem animal tornar-se um homem humano; quando os seres tiverem aprendido a pensar e a sentir como os verdadeiros seres humanos deveriam sentir e pensar, então eles agirão com humanidade e todos cumprirão espontaneamente obras de caridade, de justiça e de generosidade.(…)”

Solidariedade, Fraternidade, Bondade, Justiça, Humildade, Altruísmo, Liberdade, Generosidade, Igualdade, Caridade, Verdade, Responsabilidade, Pureza, Boa-Vontade, Ética, Amor… estas qualidades humanas, de grande valor espiritual, deveriam inspirar de tal maneira a RELIGIÃO que não pairasse sobre ela qualquer sombra de egoísmo, qualquer dúvida do caminho a seguir em prol da Humanidade e da VIDA UNIVERSAL.

Afinal a mensagem última de todas as grandes Religiões conhecidas poderá ser sintetizada por um curto discurso atribuído a Jesus o Cristo e que encontramos esplendidamente reproduzida no Evangelho de São João:

«Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos ordenei. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor: chamei-vos amigos, porque vos manifestei tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que escolhestes a mim; fui eu que escolhi a vós e vos constituí, para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja duradouro, a fim de que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda. Isto eu vos ordeno: que vos ameis uns aos outros.»(4)

A grande questão que tentaremos abordar neste Seminário é a seguinte:
– Terão os homens do Século XXI capacidade para pôr em prática os ensinamentos da RELIGIÃO-SABEDORIA que lhes têm vindo a ser transmitidos ao longo de séculos e séculos?
Acorrentado pelo egoísmo e sobrevalorizando o pequenino “eu”, o homem comum “organizou” o quotidiano a seu modo e à sua medida, à medida dos seus interesses, aprisionou-o com sistemas de valores, com tradições, com ideologias e religiões, escamoteando a Realidade do que É. Contrapôs a religião-tradição-ideologia à RELIGIÃO-SABEDORIA. Pensamos nós que, enquanto que a primeira tem como objectivos pragmáticos a “apoderação” do outro; a segunda aponta para a Libertação do Eu, baseada na Sageza das Idades, no entanto sem idade, sem tempo, sem lugar...

Estejamos, contudo, atentos às modernas respostas holísticas, que fazem com que as mensagens das diferentes Religiões coincidam com as respostas da Ciência.
Por outro lado, a assunção da Unicidade da Vida, visa despertar por todos os verdadeiros buscadores da Palavra Divina (a Palavra Perdida para alguns…), a existência de um verdadeiro Ecumenismo e vai evidenciar o fundo comum das “diferentes” Religiões.
O Re-ligare do radical da palavra Religião, faz cada vez mais sentido. Cada vez mais é necessário encontrar o fundo comum das Religiões e fazer com que essa essência comum se manifeste e venha afastar os fantasmas apocalípticos que assombram a Humanidade dos nossos dias, através de cruzadas, guerras santas, terrorismos, verdades absolutas, povos eleitos, povos mártires, tudo isto misturado com “teologias do petróleo” e monopólios multinacionais e intercontinentais de armas e de ciências da morte.

Desde sempre que a TEOSOFIA ou RELIGIÃO-SABEDORIA tem tido como o fim último da sua demanda, a compreensão da Verdade. Contudo é inatingível, para o homem comum, a cabal compreensão dessa mesma Verdade, o qual, para ultrapassar a frustração de incapacidade que lhe (a)parece inata, ele vem transformando, espartilhando o que julga entender por Verdade em miríades de dogmas, de leis, de convenções, de teorias, de religiões, etc., que o “ajudam” a dominar o que ele pensa ser a Realidade e a Vida... segundo os seus próprios juízos e critérios. Sempre ele olha para o exterior de si próprio quando quer compreender qualquer “mistério” vital, sempre ele tem julgado que aquela Verdade intransponível e inacessível se encontra encerrada algures, em algum país longínquo, nalgum livro dito “sagrado”, em qualquer lugar ou pessoa investida de autoridade.
Porém, e fazendo jus ao aforismo antigo que reza: “Não me procuraríeis se não me tivésseis encontrado já...”, resta-nos a possibilidade de encontrar algo, e esse algo estará encerrado no nosso próprio corpo, nos nossos genes, no nosso Ser...
Não obstante, no quotidiano, as pequenas verdades, as pequenas certezas que nos rodeiam, fluírem através de nós tal como os grãos de areia escorrem através da nossa mão aberta. A Realidade de que julgamos estarmos rodeados assume cada vez mais uma condição virtual. A matéria é olhada de modo completamente diferente pelo cientista deste início de milénio, do que pelo seu colega de há trinta, quarenta ou cinquenta anos... toda a imensa evolução tecnológica e científica, apesar de nos abrirem novas perspectivas para a compreensão da matéria, da vida manifestada, vêm também deparando-se com complexidades cada vez mais ténues, mais subtis, cada vez em dimensões, de estar e de ser mais inacessíveis, onde o acaso e a Consciência poderão ter alguma coisa a dizer... Nem na própria morte nós poderemos descansar o nosso espírito indagador, elegendo-a como a única certeza nesta vida...
Poderemos então perguntar: o que nos resta, enquanto seres vivos dotados de inteligência, de capacidade de perguntar, de procurar e de encontrar?... Talvez tão só o tomarmos consciência dessa capacidade e de sorrirmos perante aquela POSSIBILIDADE de viver o que dia-a-dia, minuto-a-minuto que acontece perante nós próprios, em nós próprios, e nos faz ouvir muito suavemente, muito subtilmente, no fundo da nossa ténue Consciência (onde se faz escutar a Voz do Silêncio...): “Fecha a mão!”, e que, ao fecharmos a mão, deparamos com três grãozinhos de areia que conseguimos suster... e com que alegria os olhamos!... Tal como uma criança o faria perante um imenso tesouro formado pelas coisas mais sem significado, pelas coisas mais simples que encontrou ao sabor do vento durante as suas brincadeiras inocentes...
A TEOSOFIA/RELIGIÃO-SABEDORIA, poderá muito bem ser esses grãozinhos de areia, sem sentido para quem procura dogmas, convenções ou teorias explicativas complicadas e intricadas, aparentemente possuidoras de autoridade e poder, contudo vazias de sentido e de autenticidade de vida. A TEOSOFIA/RELIGIÃO-SABEDORIA, poderá ser eventualmente a possibilidade de olharmos em nós e ao nosso redor e vermos algo diferente porque, realmente, não existem dois grãozinhos de areia iguais!...

NOTAS:
(1) in “The Theosophist”, Vol.126, N.º1,October 2004 (pp. 33-34).
(2) H. P. Blavatsky, A CHAVE DA TEOSOFIA, Edições 70, Lisboa, 1978 (pp.46, 47, 49, 56).
(3) H. P. Blavatsky, CINQ MESSAGES aux Théosophes Américains aux Congrès de 1888, 1889, 1890, 1891, Ed. Textes Théosophiques, Paris, 1982 (pp. 17, 18, 20 e 21).
(4) Evangelho Segundo São João, XV,12-17.


Rui Arimateia
“Textos Teosóficos XII”
Évora Ramo “Boa-Vontade” da Sociedade Teosófica de Portugal

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