sexta-feira, 14 de setembro de 2012

ADMIRÁVEL MUNDO VELHO de J. A. DAVID MORAIS


ADMIRÁVEL MUNDO VELHO

J.A. David de Morais
  
Quo vadis, Europa?
                                                           Para onde vais, Europa?
  
 
[NOTAS DE LEITURA PARA A SESSÃO DE LANÇAMENTO REALIZADA NAS INSTALAÇÕES DA BIBLIOTECA PÚBLICA DE ÉVORA, NO DIA 28 DE JUNHO DE 2012 PELAS 18:30]
 
Agradecendo desde já o convite e o desafio para fazer a apresentação deste livro ao muito estimado amigo Prof. João David Morais e agradecendo igualmente às Edições Colibri através do seu incansável editor e amigo Dr. Fernando Mão de Ferro, irei de seguida esboçar algumas considerações sobre a obra agora apresentada a público na magnífica e inspiradora Sala de Leitura Geral da Biblioteca Pública de Évora.

Desafio que aceitei de imediato, o que levou a realizar a minha própria investigação para a compreensão do que me estava a ser pedido, de modo que eu pudesse de seguida transmitir o resultado da minha leitura e posteriores reflexões. Assim, muito do que a seguir é escrito resultou de reflexões e de outras leituras de aprofundamento de um ou outro assunto referido no livro agora apresentado ao público em geral.

Principio por referir que, segundo o Autor, este livro “Admirável Mundo Velho” é uma parábola.

E acrescento que este livro é um hino ao Alentejo!…

Mas é um livro que incomoda!...

Faz-nos reflectir sobre aquilo que andamos – querendo ou não, conscientes ou não – a construir e a transmitir para as gerações futuras, neste caso de Alentejanos / Aquentejanos!   

Esta obra toca diversificadas temáticas: desde a ficção científica, à ciência propriamente dita e à medicina; desde a ecologia, à geografia e à política; desde a arqueologia, à etnografia e à história; desde a literatura, à poesia e à arte; desde a filosofia à religião…

É uma obra que, em última análise, denuncia um estado de coisas, e esperemos que não seja nem premonitória ou profética, nem escatológica… anunciando o fim dos tempos, para a civilização e a cultura que hoje conhecemos e vivemos após longos anos de obscurecimento e ditaduras. Não esqueçamos que o Povo português, desde a sua génese enquanto Estado europeu independente, somente conheceu e viveu uma espécie de Democracia, em relativa liberdade, após o 25 de Abril de 1974…

Gostaria em primeiro lugar de referir o facto de estarmos hoje a viver enquadrados numa assim chamada civilização do consumo. Estamos instalados no primado do conforto e do prazer, a que unilateralmente nós, europeus, temos vindo a construir desde há séculos, em detrimento e com a destruição, de facto, de outras culturas, de outras civilizações, de outros seres humanos… E muitas vezes (demasiadas, penso eu) em nome de uma civilização, de uma religião e de princípios tantas vezes conjunturalmente aceites mas hoje completamente ultrapassados… E lembro as épocas dos descobrimentos e conquistas, da escravatura, dos colonialismos…

Esta obra literária agora apresentada é arrojada e corajosa – é um grito de alerta contra todas as prepotências do passado, do presente e do futuro.

Apresenta-nos uma descrição idiossincrática do alentejano, em breves traços mas referindo o profundo e o essencial.

É um grito de alerta e de revolta contra o aprisionamento das consciências e do condicionamento e formatação das mentalidades. É um grito contra a “domesticação” da liberdade, individual e colectiva…
 
O leitmotiv subjacente a toda a obra, penso ser o seguinte:
 
As regiões e as minorias têm direito à palavra e à autodeterminação. Têm direito a construir o seu futuro, decidido no presente, em liberdade!

Este é também um livro que denuncia os erros passados, assim como denuncia a insistência, por vezes criminosa, dos mesmos erros cometidos no presente… Erros que levam um povo, através dos seus dirigentes “democraticamente” eleitos, a realizarem e a assumirem actos de lesa Património…

O egoísmo agravado do ser humano… a ânsia pelo lucro… a procura desenfreada pelo prazer... a loucura do poder pelo poder… a usura exacerbada, seja física seja psicológica, do ser humano, transforma-o num autêntico animal irracional e desprovido de qualquer sentimento ético ou espiritual… Poderá verdadeiramente dizer-se que o homem cada vez mais se assume enquanto lobo do homem

Por vezes para compreendermos e vivermos harmónica e equilibradamente o presente, teremos de olhar umas vezes para o passado outras para o futuro. Contudo esse olhar não poderá ser o mesmo com que diariamente nos confrontamos com o nosso presente. Esse olhar terá de ser, direi não só mais profundo, mas impregnado de uma outra qualidade. A sua construção terá de ser formada por ferramentas de intervenção / interpretação no/do real. E que elas próprias enformem a própria sensibilidade humana na compreensão e na construção do real, enumero algumas, a título de exemplo:

             - a imaginação criadora, que leva à autêntica transformação…

                        - a poesia, através de uma prática da sensibilidade…

                        - a analogia, o colocarmo-nos na pele do outro…

É o que o Prof. João David Morais magistralmente nos apresenta nesta sua obra – um real formado pelo passado e pelo devir, que nos ajuda a perspectivar melhor o presente.

Gostaria contudo, de partilhar convosco um texto de Fidelino de Figueiredo, uma das grandes figuras da cultura, da história e do humanismo lusitano do século XX.   

Muitas vezes, demais talvez, esquecido tal como muitos outros humanistas e filósofos desta nossa terra lúcida… mas tão abandonada pelas actuais medíocres classes políticas dirigentes, que não sabem orientar o Povo na direcção da Luz!...

O problema da História é o facto de ser escrita por quem detém o poder temporal… Umas vezes (raras!) investido de autoridade outras enganando, burlando e escamoteando a realidade do que é ao Povo que em Democracia conferiu essa autoridade ao político, ao que deveria gerir a res publica de maneira equilibrada e honesta…

Basta olharmos com atenção para as nossas democracias para vermos que a coisa não se passa assim… Existe poder e abuso de poder… e existe poder desprovido de qualquer autoridade ética e perigosamente de braço dado com a corrupção e a prepotência política…
 
Mas, reflictamos conjuntamente com as palavras de Fidelino de Figueiredo, sobre a história e a infra-história:
 
            (…). A história que se ensina e que baseia a governação e os comentários jornalísticos, outrora matéria oficial dos cronistas régios e ainda hoje departamento predilecto da erudição académica, está para a história integral como a espuma suja da superfície para as fermentações de um líquido, ou como a queda outonal da folhagem e o seu apodrecimento sob a chuva para a evolução biológica das plantas: uma parte, e parte miserável, de um nobre conjunto.

         (…). A história integral possui outro plano oculto, o da subterrânea acção criadora – subterrânea como a das raízes daquele arvoredo que no Outono se despiu das suas frondes e nos dias primaveris se reveste das opulentas galas que lhe sobem das ocultas raízes. A essa história enganosa e ruidosa da superfície opõe-se a verdadeira e silenciosa, a das fermentações profundas, a das raízes invisíveis, a infra-história – zona em que a inteligência, já não a ferocidade, em que a inteligência estimulada por todos os anseios labuta, não pelo domínio do homem sobre o homem, sim pelo domínio do homem sobre a Terra, com toda a fenomenalidade que o envolve e todo o cenário do Cosmos que o defronta. Essa infra-história é que determina a agitação da história aparente. Assim a realidade profunda e invisível do mundo vibratório do átomo determina a aparência enganosa e bela do mundo empírico das sensações. Para os observadores vulgares só existem as cores, os sons, as formas, os contactos, os sabores, o frio e o calor. E nesse palco sensorial decorre a única história ao seu alcance, a dos reis e generais, a das guerras, a dos morticínios e prepotências, uns a mandar e outros a obedecer, história que se anima de muito movimento e colorido, mas que não passa de meia história. Ora, como em boa verdade coexistem os dois mundos, o das sensações de perímetro humano e o da vibração atómica de perímetro universal, assim coexistem os dois planos da história, o da aparência superficial e o da realidade profunda.(…).
 
         Fidelino de Figueiredo, inEntre Dois Universos”, Colecção de Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1959 (págs. 46-48).
 
Passando directamente pelos capítulos da obra agora apresentada, refiro apenas algumas passagens que me pareceram mais significantes e que me suscitaram outras pesquisas e outras reflexões e que agora vos deixo, no sentido de vos aguçar o apetite para a posterior leitura atenta do livro. Vale a pena aprofundar as pistas deixadas pelo Prof. David Morais ao longo destas quase duas centenas de páginas de leitura.

A acção do livro, ficcionada, passa-se em vários locais do Alentejo no ano de 2084. O protagonista da acção é Leonard Klein, arqueólogo, belga, chefe de equipa de investigação das escavações que decorriam a cerca de setenta quilómetros da capital da Sub-Região XII-D, na vila do Almendral. A investigação em curso era patrocinada por fundos da UEFE – União de Estados Federados da Europa. Compondo-se esta Federação de trinta e seis Regiões – a Nova Europa ou Europa das Regiões…

O estudo de investigação levado a cabo por aquela equipa liderada por Leonard tinha como objectivo o contribuir para um melhor conhecimento da problemática ambiental e da história e cultura da Sub-Região.

São interessantes as reflexões sobre o funcionalismo burocrático (ou burrocrático?!...) que a rocambolesca figura de Monsieur Branches nos faz chegar. É focado com clareza o problema do controle da vida social, política e cultural que os poderes dominantes e centralistas impõem aos diferentes grupos sociais através de práticas burocráticas… O autor já no Capítulo II remete-nos para a complexa actividade de apoptose (“morte celular geneticamente programada”), fazendo-nos reflectir sobre os mortos-vivos em que nos poderemos transformar…

No terceiro capítulo o autor apresenta-nos várias problemáticas ao nível do desastre ecológico que se produziu principalmente a partir da exagerada monocultura do eucalipto no Alentejo com a plantação desenfreada de eucaliptos a partir da segunda metade do século XX – “Os bulldozers cilindravam os terrenos – e os políticos e os técnicos cilindravam as leis.” Já na altura se falava nos meios políticos e científicos nacionais e internacionais da anunciada desertificação da Península Ibérica.

 Fala-nos ainda da Serra dos Eremitas, a Serra d’Ossa, e da “Congregação dos Monges de Jesus Cristo da Pobre Vida” que ali fundara, no século XV o famoso Mosteiro de São Paulo.

Coloca ainda o interessante e actualíssimo problema da clonagem animal para serviço da alimentação humana e a ausência de códigos deontológicos para os geneticistas – ficcionando a criação da Ovis capra, alertando: “Os cientistas tinham-se, pois, substituído aos outrora poderosos deuses mitológicos, mas mostravam-se ainda simples aprendizes de feiticeiro…”
 
No Capítulo IV aparece-nos a problemática hoje tão significativa do controle e da manipulação da informação pelos poderes políticos centralizados nos vários governos – informação e desinformação / a detenção “democrática” do poder… Isto no que concerne ao estado em que chegou o nosso planeta em termos de graves e estruturais alterações climáticas – um alerta perante a grave crise ecológica mundial.

No romance é referido o excessivo controle da Federação que nesse ano de 2084 governará a Europa... Controle e centralismo esses que se endurecem mais sobre os estados membros mais pobres…

Associei a este alerta parte de um discurso pronunciado na ONU em Dezembro de 1972, pelo Presidente do Chile eleito democraticamente, Salvador Allende e pouco tempo depois, a 11 de Setembro de 1973, morto durante o golpe militar do ditador Pinochet.

Dizia Allende:

“O drama da minha pátria é o de um Vietname silencioso. Não há tropas de ocupação, nem aviões nos céus do Chile. Mas enfrentamos um bloqueio económico e estamos privados de créditos pelos organismos de financiamento internacionais. Estamos confrontados com um verdadeiro conflito entre as multinacionais e os Estados. Estes já não controlam as suas decisões fundamentais, políticas, económicas e militares, por causa das multinacionais, que não dependem de nenhum Estado. Elas operam sem assumir as suas responsabilidades e não são controladas por nenhum parlamento, nem nenhuma instância representativa do interesse geral. Numa palavra, é a estrutura política do mundo que está abalada. As grandes empresas multinacionais prejudicam os interesses dos países em desenvolvimento. As suas actividades dominadoras e incontroláveis prejudicam também os países industrializados onde se instalam.”

tares, por causa das multinacionais, que não dependem de nenhum Estado. Elas operam sem assumir as suas responsabilidades e não são controladas por nenhum parlamento, nem nenhuma instância representativa do interesse geral. Numa palavra, é a estrutura política do mundo que está abalada

Entretanto, no decorrer do romance, no Alentejo profundo das aldeias e dos campos sem água sente-se com agravamento crescente os efeitos do vento do diabo, o vento suão.

É citado o escritor Antunes da Silva cuja obra mais conhecida tem exactamente o nome do vento, “Suão”. Autor de grande sensibilidade literária, descreve-nos o Alentejo e os Alentejanos como ninguém mais o consegue fazer.

Diz-nos então ele, descrevendo este fatídico vento suão:
 
“Duma outra vez, veja lá bem, minha senhora, houve uma seca maldita, veio um suão que mirrou as terras e secou os rios e até as nascentes dos chafarizes. Para se matar a sede tinha o aguadeiro da vila de ir a duas léguas de distância comprar água a um lavrador que a tirava de uma contra-mina do tempo dos romanos. Nem calcula o dó de alma que era ver as crianças a chorar, agarradas às saias das mães, a pedirem água como se fosse pão, afinal duas coisas que a terra dá com fartura por certas bandas. Pois veio uma tarde tão quente que as pessoas se queixavam do suão, mãos agarradas à cabeça, ai! ai!, que eu morro – e a velha fazia gestos e imitava a dor humana, trágica na sua teatrada picaresca.

Os homens, abrindo os braços esbraseados de calma, respiravam o ar envenenado, as mulheres murmuravam palavras que mal se ouviam, e as crianças, moles, deitadas no chão dos celeiros, no lajedo das casas térreas – sei lá a romaria de quebrantos que o maldito vento trouxe, esse vento ladrão que rói uma pessoa até ao fim da paciência… (…).”
 
Antunes da Silva, SUÃO, Obras de Antunes da Silva, n.º 7, Livros Horizonte, 7.ª Edição, Lisboa, 1985 [pág.102].  

            No Capítulo V aparece a expressão Aquentejanos para nomear os habitantes do Alentejo, como contraposição à expressão vulgar de Alentejanos… Diz o autor a certa altura que “… alentejano era a visão de quem governa a partir de Lisboa. Os nativos, porém, viam-se como indivíduos de aquém-Tejo, logo, entendiam que eram aquentejanos.”
 
Neologismo que eu próprio já por diversas vezes havia utilizado e no mesmo contexto que o autor o emprega – para denunciar uma relação de poder hegemónico da cidade (neste caso de Lisboa) em relação à província, neste caso o Alentejo.

Em última análise trata-se de um neologismo ligado infelizmente a aparelhos conceptuais comprometidos com práticas etnocêntricas e, mais radicalmente falando, neo-colonialistas!

A perspectiva distanciadora e ostracizante de Lisboa perante o Além-Tejo, neste caso concreto, assumindo assim um “nós” (do Tejo para norte) e um “eles”, do Tejo para sul!... para o “deserto”, como dizia ainda há bem pouco tempo um ministro de um anterior governo de Lisboa… Mário Lino de nome…

No capítulo VI é abordado o conceito de “família” para os aquentejanos. São citados alguns autores passados que trabalharam o Povo e a Terra Alentejana, tais como Brito Camacho, Silva Picão, José Cutileiro, de épocas diferentes e de abordagens também diferentes.
 
Nos finais do século XXI, época em que se passa a acção do romance, o Governo cria a Polícia da Paz para fazer a guerra… e entrar pela via do etnocídio… obrigando muitas vezes os povos à legítima defesa… Também naquela época a verdade é aquilo que é servido à mesa da Comunicação Social… E esta só informa aquilo que quer ou aquilo a que é coagida a informar…
 
Na casa dos antepassados de Leonard nos subúrbios da cidade de Évora existia uma Dracaena draco – “O dragoeiro ou árvore do dragão viera da noite dos tempos primordiais, sobrevivendo a todos os cataclismos geológicos. Dizia a lenda que os deuses da Atlântida o haviam dotado de propriedades míticas maravilhosas, só conhecida de raros eleitos, e que descendia da Árvore do Mundo, Árvore Cósmica ou Axis Mundi…”  
 
Na abordagem do Simbolismo do «centro» lembro-me sempre da obra de Mircea Eliade, que passo a citar um pequeno excerto:
 
“Grande número de mitos e de lendas fazem intervir uma árvore cósmica que simboliza o universo (os sete ramos correspondem aos sete céus), uma árvore ou uma coluna central que sustenta o mundo, uma árvore da vida ou uma árvore miraculosa que dá a imortalidade aos que provam os seus frutos. Cada um destes mitos e destas lendas verifica a teoria do «centro», no sentido de que a árvore incorpora a realidade absoluta, a fonte da vida e da sacralidade, e, nesta qualidade, se acha no centro do mundo. Quer se trate de uma árvore cósmica ou de uma árvore da vida imortal ou do conhecimento do bem e do mal, o caminho que conduz até ela é «um caminho difícil», semeado de obstáculos: a árvore acha-se e regiões inacessíveis e é guardada por monstros. Não é dado a qualquer pessoa chegar até ela nem, se acaso o conseguir, sair vitorioso do duelo que terá de travar com o monstro que a guarda. Cabe aos «heróis» vencer estes obstáculos e matar o monstro que defende as imediações da árvore ou da planta da imortalidade, dos pomos de ouro, de velo de ouro, etc. (…) o símbolo que incorpora a realidade absoluta, a sacralidade e a imortalidade é de acesso difícil. Os símbolos desta espécie situam-se num «centro», quer dizer, estão sempre bem defendidos e o facto de os atingir equivale a uma iniciação, a uma conquista («heróica» ou «mística») da imortalidade.”

            Mircea Eliade, “Tratado de História das Religiões”, Colecção Coordenadas, N.º4, Edições Cosmos, Lisboa, 1977 [449-450].

             E refere a certo passo João David Morais, pela boca do protagonista da ficção que “A Ciência é uma vereda sinuosa, ao longo da qual se deve caminhar cautelosamente, lançando primeiro pontes de dúvidas para, por fim, se procurar chegar a uma possível certeza, muitas vezes transitória…” 

Aproveito para lembrar e citar Gaston Bachelard sobre o facto da objectividade científica exigir distanciamento e questionamento:
  
“De facto, a objectividade científica só é possível se abstrairmos primeiro do objecto imediato, se recusarmos a sedução da primeira escolha, se travarmos e contrariarmos os pensamentos nascidos da primeira observação. Toda a objectividade, devidamente verificada, desmente o primeiro contacto com o objecto. Deve em primeiro lugar criticar tudo: a sensação, o senso comum, até a prática mais vulgar, a etimologia, enfim, pois o verbo, que é feito para cantar e encantar, raras vezes corresponde ao pensamento. Em lugar de se extasiar, o pensamento objectivo deve ironizar. Sem esta vigilância hostil, nunca atingiremos uma atitude verdadeiramente científica.”

            Gaston Bachelard, A Psicanálise do Fogo, Col. Ómega, Ed. Estúdio Cor, Lisboa, 1972 [pp. 9-10].

             Neste capítulo sexto é-nos apresentada a proposta do relatório final da pesquisa no terreno de Leonard e Magda. O corpus da obra: “Causas Determinantes do Processo de Desertificação” [da Sub-Região XII-D] – 1. Causas naturais; 2. Causas antropogenéticas (a) causas globais e b) causas regionais).

          Algumas explicações são adiantadas, sobre a degradação do meio ambiente e a desertificação desta região, tendo estas ocorrido devido a uma multiplicidade de causas, que entre si interagiam, potenciando-se… Existiram causas de desertificação de origem antropogenética (actividade humana) de dimensões globais: poluição atmosférica, efeito estufa (dióxido de carbono). Foram também identificadas causas de carácter regional, tais como o abate indiscriminado dos montados de azinho [floresta tradicional mediterrânica] para produção de carvão; a monocultura cerealífera; as culturas arvenses em solos de aptidão agrícola marginal; o pastoreio excessivo; a monocultura desregrada do eucalipto; os incêndios florestais…
 
Apresenta-nos o autor, a certa altura, uma máxima sábia, que importa reter e reflectir: “As florestas precedem os povos; os desertos seguem-se-lhes”…

           Um tema importante também abordado foi o da plantação do Eucalyptus e a sua proliferação em Portugal, na região Sul, entre os anos de 1985 e 1995. Tendo sido o segundo maior produtor mundial de pasta de papel de eucalipto… Portugal era um grande eucaliptal à beira-mar plantado…
 
           Por sua vez, “no Alentejo, os impactos negativos tinham sido catastróficos… zona carente de águas e de chuvas. Contudo, os técnicos e os políticos tinham-se esquecido de começar por fazer o mais elementar em matéria de planeamento nacional: o ordenamento do território.” Plantaram desordenadamente o eucalipto antes de realizarem o necessário ordenamento do território. No meio de tudo isto… os subsídio europeus…
 
Interessante as diferentes “abordagens ecológicas” que se fizeram sentir em Portugal durante principalmente após o 25 de Abril de 1974. Cada uma das abordagens situada em graus diferentes de aprofundamento da problemática em questão: a Ecologia é uma Ciência; o Ecologismo a sua vulgata; e a Ecologice, uma pseudociência, contrabandeada e manipulada em geral por tecnocratas sem qualquer formação básica em ecologia.”

            Uma abordagem séria foi feita logo em 1974, pelo Professor M. Gomes Guerreiro, docente na então restaurada Universidade de Évora, na sua obra, “O Homem e a Poluição”, que passo a citar um pequeno trecho:

            “Na realidade, o aumento das produções exigidas pelo consumo crescente e perdulário do homem obriga ao uso imoderado de uma tecnologia que, embora orgulhosamente se considere auto-suficiente, acaba por deteriorar os factores em jogo e aumentar, de modo alarmante, a regressão dos sistemas ecológicos da biosfera. (…).

Quanto mais o homem lutar contra a Natureza, procurando dominá-la na ânsia de encontrar uma independência num contexto científico que jamais será definitivo, mais dependente ficará do mundo exterior, do meio e das forças naturais. (…).

(…) Há que estudar uma rota segura, mais moral do técnica, e que, além da produtividade dos factores, procure com prioridade a felicidade do homem como habitante e componente das comunidades da Terra; não o luxo e o desperdício mas a parcimónia e a poupança, ou seja a utilização racional dos elementos da biosfera de modo a serem reciclados e reabsorvidos no fluir do processo vital; não a viagem segundo um rumo perigoso fixado por um timoneiro que endeusa a tecnologia, mas sim escolhendo m outro sereno e tranquilo, tendo em vista usufruir e simultaneamente manter ou aumentar as potencialidades do mundo de que depende a vida da humanidade e a beleza que a envolve.

(…).

Há, por último, que fazer depender o progresso de uma obrigação social e criar uma filosofia e uma ética para uso da humanidade de amanhã que valorize mais o homem e o seu bem-estar, qualquer que seja a sua actividade; uma filosofia e ética que hoje já procuram, um tanto às cegas, certos grupos de jovens, produto contestatário das sociedades tecnologicamente da vanguarda, que acima do saber colocam o compreender. (…).

A beleza, a vida e a fraternidade são inimigas da negligência, da ignorância e do lucro.

Por isso nos parece que o problema de fundo não será melhorar o tipo de sociedade tecnológica em que vivemos, remediando ou atenuando a poluição; haverá sim que substituí-lo por um outro, sem poluentes, baseado em concepções éticas e sociais diferentes, ajustado ao condicionalismo ecológico do único planeta em que existe vida: assim será possível uma produção limpa e contínua de bens e a sua distribuição equitativa; um convívio fácil e livre entre os homens mais de acordo com a Natureza.”

                     M. Gomes Guerreiro, “O Homem e a Poluição”, Instituto Universitário de Évora, 1974 [pp. 17,22,23,24].
 
Mais recentemente apareceu um conceito muito importante, mais global, ligando sistemicamente a Ecologia, a Economia e a Política, denominado por decrescimento, muito trabalhado pelo cientista social francês Serge Latouche, e que deixo um pequeno apontamento denominado “A revolução do decrescimento”:
 
“Hoje em dia, mais do que nunca, o desenvolvimento sacrifica as populações e o seu bem-estar concreto e local no altar de um bem-estar abstracto e desterritorializado. É claro que este sacrifício em honra dum povo mítico e desencarnado é feito para benefício dos “empresários do desenvolvimento” (as empresas multinacionais, os responsáveis políticos, os tecnocratas e as máfias). O crescimento actual só é rentável na condição de fazer recair o seu peso e o seu preço sobre a natureza, as gerações futuras, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados e, ainda mais, sobre os países do Sul. É por isso que se torna necessária uma ruptura. Todos, ou quase todos, concordam, mas ninguém ousa dar o primeiro passo. Todos os regimes modernos foram produtivistas: repúblicas, ditaduras e sistemas totalitários, quer os seus governos fossem de direita ou de esquerda, liberais, socialistas, populistas, sociais-liberais, sociais-democratas, centristas, radicais ou comunistas. Todos consideraram o crescimento uma pedra angular do seu sistema inquestionável. A indispensável mudança de objectivo não se inclui entre aquelas que uma mera mudança eleitoral possa resolver, instalando um novo governo ou votando a favor duma nova maioria. O que é necessário é muito mais radical: nem mais nem menos do que uma revolução cultural, que deverá desembocar numa refundação da dimensão política.

(…).

O projecto do crescimento é, portanto, uma utopia, quer dizer, uma fonte de esperança e de sonho.”
 
Serge Latouche, in “Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno”, Edições 70, Lisboa, 2011.

 
            No Capítulo VII, o último, acontece no romance o baptizado de Manelito no Monte do Azinhal. Oportunidade para o autor abordar um tema que lhe é extremamente caro, o da religiosidade popular.

             E põe nas palavras dos festejantes alentejanos daquela época futura uma concepção de baptizado que não é desconhecida no nosso Alentejo popular e camponês:

“- Então, o baptizo é a gente fazer uma festa: comemos e bebemos, e, pronto, está o baptizo feito.”

E o autor acrescenta a seguinte reflexão: 

“Quanto à forma do baptizo… Deus e os seus emissários tinham-se esquecido daquele povo, e aquele povo acabara, também, por se esquecer de Deus. Para eles, bastardos de um Deus menor, os baptizados e outras celebrações do calendário litúrgico persistiam apenas como uma antiga tradição – um caldo cultural, um traço mnésico – e como uma oportunidade para confraternizarem. A sua religiosidade era outra: a religiosidade popular, que não a institucionalizada.”

            A propósito, gostaria de colocar algumas reflexões sobre a problemática da religiosidade popular.

À proposta macrocéfala e consumista dos, “senhores das cidades” interessa sobremaneira a quantidade, o quantificável e o capitalizável. Os seus olhares são essencialmente “profanos”, na medida em que a Realidade Terra se encontra para eles destituída de Mitos, sendo encarada como qualquer coisa “separada” de um Todo, consumível, onde a produção de bens essenciais se encontra parcelarizada, onde se perdeu a consciência do Ciclo Natural e Ecológico da Tellus Mater.

Por seu lado, o camponês “autêntico”, tradicional, enraizado na sua terra, criando e vivendo os seus mitos e ritos de harmonização, encara-a numa perspectiva do “sagrado”, no sentido dele próprio se considerar integrado num ciclo vital equilibrado, onde o homem é consumidor directo dos bens criados. Tradicionalmente este homem produz antes de consumir, enquanto que o homem urbano paradoxalmente consome antes de produzir… Contudo, a sociedade moderna, através das máquinas, dos super-adubos químicos, dos subsídios a fundo perdido da Comunidade Europeia para a “modernização” e “integração” do sector agrícola da Europa global… Tudo isto, conjuntamente com as progressivas desertificações climática e humana dos campos e aldeias… Tudo isto contribui para que, irreversivelmente, as sociedades camponesas tradicionais, com todas as suas estruturas simbólicas e míticas do sagrado telúrico, se percam e cada vez mais sejam relegadas para os confins dos tempos e das memórias que vão ficando cada vez mais ténues…

Transpondo-nos agora, e apoiando-nos na lei da analogia, para referências de uma Mitologia Universal, vemos que os conteúdos e as datas de realização das festas religiosas da Antiguidade não eram de modo nenhum arbitrários. Ambos se determinavam em função de acontecimentos celestes. Naquela época o homem não se considerava em absoluto a medida de todas as coisas. Sabia que a sua vida era regida, assim como a das plantas e flores, assim como a dos animais, por “estações”, por ritmos e pulsações, por ciclos de grandeza cósmica, ontem conhecidos, mas hoje já praticamente esquecidos. A estes ritmos cósmicos ajustava ele a sua actividade, a sua vida em sociedade.

           Através do banquete do baptizo chega até nós a descrição da grande riqueza da gastronomia tradicional aquentejana… A dieta tradicional do alentejano com muitos produtos e hábitos cárneos… porco, borrego. Como contraposição e alternativa verdadeiramente natural à globalização da fast food como a comida de plástico dos MacDonald’s e McGrill’s e dos alimentos transgénicos [a partir de culturas geneticamente modificadas].

           Neste capítulo o autor aborda os aspectos mais filosóficos, mesmo iniciáticos, da procura humana.

É abordada a problemática do Mistério do Amor e da Morte… e a sobrevivência ao longo de milhares de gerações dos assim denominados Mistérios Antigos.
 
João David Morais, coloca no romance a já atrás citada e misteriosa árvore mitológica – a Dracaena draco, ou dragoeiro, ou árvore do dragão, considerada pelos botânicos a espécie viva mais antiga do reino vegetal e que terá sobrevivido a todos os cataclismos da Terra. Ela encerra em si própria um mistério… E propõe ainda uma relação estabelecida entre o pintor flamengo H. Bosch e toda a simbologia e poder desta árvore misteriosa. Será então obrigatório estudarmos a obra de Hieronymus Bosch, nomeadamente o quadro O Jardim das Delícias onde o pintor nos oferece a representação pictórica do dragoeiro como árvore da vida…

A Árvore da Vida produz uma resina vermelha, o sangue-de-drago ou dragão, cujas propriedades Hieronymus Bosch descobriu ao aprofundar a revolução da pintura a óleo… Teria sido Bosch que, ao aplicar na pintura o sangue-de-drago a quente e ao respirar os seus eflúvios, se apercebera da sua insuspeitada capacidade de produzir visões extra-sensoriais…

Alguns investigadores sustentam que o pintor flamengo teria visto a Árvore primeva numa viagem “xamânica”, sob o efeito do sangue-de-drago, a essência da Arbor Vitae

O dragoeiro: árvore primordial, a Arbor Vitae ou Lignum Vitae: a mítica Árvore da Vida. O dragoeiro é uma árvore lendária que, segundo alguns, povoava os bosques da Atlântida…

 Mais uma vez teremos de nos perguntar se a razão última dos Mistérios não será a procura e a compreensão do desconhecido?

E acrescento que nos Antigos Mistérios da Humanidade, através de uma abordagem muito particular da alegoria e do símbolo, os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua História e Evolução: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta.
 
Tal como o peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:

            – Oh, Mãe! O que é o Mar?

            E a Mãe, com aquela ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:

            – Olha, meu filho, tu estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...

             União com o Todo ou com o Amado, que os místicos ibéricos como São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila tão bem souberam cantar nos seus poemas e nos seus escritos de religião, e por vezes tão incompreendidos e até mesmo rejeitados e perseguidos pela dogmática superstrutura católica da sua época.

            Trata-se, enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio, saírem vitoriosos para a Luz do dia...

No final o AMOR mata a morte…

             O fenómeno mitológico da Árvore da Vida foi abordado magistralmente por Mircea Eliade. A Árvore da Vida simboliza em especial a sabedoria: a sabedoria profunda e hermética.

Diz-nos então Eliade:

          “(…). Ora, a aparição da Vida é, para o homem religioso, o mistério central do Mundo. (…). A vida humana não é sentida como uma breve aparição no Tempo, entre dois Nadas; é precedida de uma preexistência e prolonga-se numa pós-existência.(…).

Tudo isto está aliás cifrado nos ritmos cósmicos: não há mais do que decifrar o que o Cosmos “diz” pelos seus múltiplos modos de ser, para compreender o mistério da Vida. Ora, uma coisa parece evidente: que o Cosmos é um organismo vivo, que se renova periodicamente. O mistério da inesgotável aparição da Vida é solidário do renovamento rítmico do Cosmos. É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a forma de uma árvore gigante: o modo de ser do Cosmos e em primeiro lugar a sua capacidade de se regenerar, sem fim é expressa simbolicamente pela vida da Árvore.

(…). É a visão religiosa da Vida que permite o “decifrar” outras significações no ritmo da vegetação, e em primeiro lugar as ideias de regeneração, de eterna juventude, de saúde, de imortalidade; a ideia religiosa da realidade absoluta é simbolicamente expressa, entre tantas outras imagens, pela figura de um “fruto miraculoso” que confere ao mesmo tempo a imortalidade, a omnisciência e a omnipotência, fruto que é susceptível de transformar os homens em Deuses.

A imagem da Árvore não foi escolhida unicamente para simbolizar o Cosmos, mas também para exprimir a Vida, a juventude, a imortalidade, a sapiência. (…). Por outras palavras, a Árvore conseguiu exprimir tudo o que o homem religioso considera real e sagrado por excelência, tudo o que ele sabe que os Deuses possuem pela sua própria natureza, e que só é raramente acessível aos indivíduos privilegiados, os Heróis e os semi-Deuses. É por isso que os mitos da busca da imortalidade ou de juventude ostentam uma Árvore de frutos de ouro ou de folhagem miraculosa, Árvore que se encontra «num país longínquo» (na realidade – no outro mundo) e que é defendida por monstros, (grifos, dragões, serpentes). (…).”

 Mircea Eliade, “O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões”, Col. Vida e Cultura, N.º 62, Edição Livros do Brasil. Lisboa, s/d. [pp. 156-158].

           No meio de toda filosofia esotérica e iniciática, por vezes o protagonista, Leonard, vai abruptamente encarar a realidade, até porque se encontra em perigo e em risco de vida…. E é obrigado a encarar aquela Região do Sul da Europa, aquele antigo país de nome Portugal, país de “brandos costumes”… país minado por políticos volúveis, arrogantes e corruptos… Fraude atrás de fraude, corrupção atrás de corrupção… Não só no presente-futuro do livro mas acompanhando as pesquisas históricas de Leonard, que forçosamente teve de pesquisar para terminar a sua tese, olhar para um passado não muito diferente.

Constatou ele que:

           (…) de dois em dois ou de três em três mandatos legislativos, os dois principais partidos trocavam os papéis que lhes cabia representar, de “poder” e “contrapoder” – (chamavam-lhe “alternância democrática”, porém, o povo, em seu juízo modesto mas sagaz, achava que era sempre “mais do mesmo”). Ora, quando era o partido de ideologia social-democrata a mandar, assistia-se a uma pilhagem organizada; e quando era o partido de ideologia socialista a instalar-se no governo, assistia-se a uma pilhagem desorganizada. Assim, o desgoverno total da coisa pública e a cedência aos interesses dos grandes empresários (…) tinham levado o país a resvalar para o caos no espaço urbano e no litoral; ao assalto imobiliário a zonas naturais classificadas (…); à apropriação espúria de subsídios da Federação (…); à impunidade dos crimes de colarinho branco; à desertificação humana e ambiental da Zona Sul (…).”

           No final do livro acontece a morte/suicídio de Leonard… “Contra a amnésia colectiva: pelo direito à memória”… “Nós somos eternos, porque somos feitos de poeira cósmica. E quando, dentro de cinco mil milhões de anos, o Sol entrar em colapso e a seguir explodir, pulverizando todo o sistema solar, então os nossos átomos serão de novo reintegrados no espaço sideral a que pertencemos.”

           Já nos antigos pergaminhos das antiquíssimas filosofias iniciáticas da Humanidade estava escrito que “Ascender à liberdade absoluta implica aceitar a morte física”.

O tríptico do Jardim das Delícias de H. Bosch era um hino de louvor ao maravilhoso, ao fantástico e ao simbólico – uma síntese da anima mundi… O quadro era uma síntese do Ser e do Saber. A Fonte da Vida estava no alto ao centro… e a Árvore da Vida encontrava-se em baixo, à esquerda.

E a Árvore da Vida e o Cristo-Deus, sendo dois, eram na verdade apenas um só, porque ambos eram o princípio da Vida.

E Adão e Eva, sendo dois, eram, na sua essência, apenas “uma só carne”, logo também uma só Vida.

A cadeia do saber iniciático e tradicional encontra-se mergulhada nos arquétipos do passado, ou do eterno presente? O princípio e o fim fundindo-se e transmutando-se na alquimia da Vida, numa génese única do Ser. A Egrégora Eterna…. A Iniciação Solar...
 
Já Fernando Pessoa nos descreveu através da sua poesia intemporal e de forma magnífica a

   
INICIAÇÃO

 
 “Não dormes sob os ciprestes,

 Pois não há sono no mundo.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

  O corpo é a sombra das vestes
  Que encobrem teu ser profundo.

                         Vem a noite, que é a morte
                         E a sombra acabou sem ser.
                        Vais na noite só recorte,
                        Igual a ti sem querer.

 
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
 
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

                      Por fim, na funda caverna,
                      Os Deuses despem-te mais.
                     Teu corpo cessa, alma externa,
                     Mas vês que são teus iguais.

                        ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
 
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Neófito, não há morte.”
 
                       Fernando Pessoa, Poesias, Colecção Poesia, Edições Ática, Lisboa,1942 [pp. 235-6].
 
Dizia o protagonista a certa altura do romance que na Vila de Almendral: “Nos fins-de-semana, era vulgar ouvirem-se, pela noite dentro, os belos e dolentes corais que os nativos entoavam na locanda, como que carpindo as suas mais íntimas mágoas. O canto tradicional, sonoro, grave e arrastado, espelhava então uma dolência profunda: era a natureza introvertida daquele povo que se exteriorizava e, também, a nostalgia de um passado que já tinha sido mais ridente que os tempos actuais, preenchidos agora por privações e atribulações de vária ordem.”

          O nosso Cante Alentejano mergulha directamente na Sabedoria das Idades quando se escutam os versos:

            o me inveja de quem tem

carros, parelhas e montes

só me enleva quem bebe

água em todas as fontes.

 
            O cancioneiro tradicional e popular alentejano contém em si vestígios da sageza das idades… aquela sabedoria oculta, subterrânea, que nos diz que todos os homens são irmãos, que todos detêm um saber que está para além da propriedade material das coisas, dos objectos. E todos poderão partilhar a sua riqueza espiritual colocando-se cada qual disponível para ouvir o outro, aprender com o outro.

O alentejano ao ouvir as modas está simultaneamente a escutar o outro e a aprender com ele; e quando canta está a partilhar, está a ensinar. Através do seu cante o alentejano está a ser ele próprio e está a interpretar aquela voz que lhe chega das entranhas da sua terra-mãe, terra onde vive e onde trabalha e onde canta.

Nos dias que correm é cada vez mais necessário que cada um de nós queira e consiga “beber água em todas as fontes” para que as diferenças de todos possam ser compreendidas e aceites por todos. Para que aquilo que diferencia os homens uns dos outros seja um factor de aproximação e não um factor de desavença e de desentendimento.

O ser humano é uno e indivisível tal como a própria Vida. Às vezes é alentejano ou beirão; é cristão ou muçulmano; é judeu ou hindu; é preto ou é branco… No fundo a essência vital que anima os corpos dos homens é a mesma e eles estarão “condenados” a entenderem-se e a interagirem como irmãos se quiserem que a Civilização continue e evolua equilibradamente ao som da Música das Estrelas que nos envolve e que nos inspira a brotarmos para fora das nossas almas de alentejanos e de cidadãos do mundo aquele grito, aquele cante, que tanto nos diz e tanto nos encanta…

Entrámos e instalámo-nos no Século XXI da Era Cristã, num mundo paradoxalmente marcado pela barbárie e pela selvajaria humanas, diria antes sub-humanas, e onde estas tristes mas factuais realidades são moda, basta olhar a televisão, a net, os jornais…

Nos dias de hoje, mais do que nunca, temos de olhar e repensar a essência da natureza humana. Esta encontra-se a ceder aos mais baixos instintos de animalidade, onde a emoção e o mental inferior se desenvolvem perigosamente, pondo em causa uma evolução harmónica, equilibrada e espiritual. A grande tentação das hegemonias e dos imperialismos, olhados pessoal ou colectivamente, quaisquer que sejam as suas colorações – religiosas, económicas, culturais, civilizacionais –, conduzem a Humanidade a cometer autênticos genocídios e inclusivamente deteriorando irreversivelmente a própria vida natural do planeta.

Choques de culturas, choque de civilizações, choque de religiões, aliados à intolerância, ao despotismo e à prepotência, que caracterizam e normalizam a acção humana, são o apanágio do homem contemporâneo onde quer que ele se encontre. 

A pegada humana está a marcar indelevelmente o solo fértil de Gaia. O planeta está a sofrer uma imensa e arriscada provação. Falando metaforicamente, um Dragão Negro está a possuir e a dominar as mentes, as consciências e, o que é mais grave, o coração dos homens, transformando os valores de uma cidadania partilhada em práticas de predação, de horror e de insensibilidade.

Nunca as palavras Fraternidade, Religião e Amor, estiveram tão vazias de sentidos e de sentir. O primado do ter sobrepõe-se irremediavelmente ao primado do Ser.

Lágrimas, terror, sofrimento chegam constantemente aos nossos sentidos através dos mass-media. Infelizmente temos a capacidade tecnológica de presenciar a(s) guerra(s) em directo. A grande quantidade de informação manipulada, distorcida e censurada, entorpece-nos o sentir. Olhamos, vemos, ouvimos, tomamos partido, mas falta responder à grande questão: como actuar? Como agir, enquanto indivíduos racionais e conscientes, perante este caótico estado de coisas? Perante estas “normalizadas” atrocidades de lesa humanidade, destituídas de qualquer ética?

Imaginemos, através de uma imaginação criadora, que contemplamos a Terra dos altos céus: de imediato sentimos na nossa carne a agonia dos seres vivos! A Terra encontra-se coberta de feridas, cheia de cicatrizes, sangrentas, latejantes... causa de sofrimentos desmedidos...

Por certo que igualmente se recordarão das tão simples e tão belas palavras de Jesus inscritas no Evangelho segundo São João (XV-12) – “Eis o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.” Fazer a guerra à Humanidade é fazer a guerra a Cristo, é recusar, repudiar e espezinhar a Sua palavra, o Seu exemplo, a Sua memória.

Lembremo-nos da grande verdade de que, não importa quão vasta a escuridão, quão vasta a noite, contudo uma pequena chama de vela detém essa grande escuridão. Na sua insignificância é invencível porque é Luz.

Que cada um de nós mantenha acesa a sua pequena chama. Cada qual, por si, pode tão só significar uma fraca luz, contudo a natureza de todas as chamas é a mesma, é Una. E todas juntas, na sua Unidade Essencial, firmemente dirigidas e erigidas aos céus ensombrados pelas densas nuvens negras do ódio e da ignorância, poderão, a pouco e pouco, afastar as trevas e fazer surgir mais uma vez e sempre a Grande Chama Universal, corporalizada pelo Sol a que os antigos denominavam por Cristo Solar ou Logos Solar...

Mais Fraternidade, mais Compaixão e mais Amor são precisos para que essa Chama Universal se manifeste e realmente se torne uma Realidade viva e verdadeiramente transformante e transformadora nos corações e nas consciências da Humanidade que é Una!

Temos dentro de nós próprios, enquanto seres humanos, a possibilidade de sintetizarmos, de compreendermos e de reproduzirmos o Kaos e ou o Cosmos.

Olhando esta imensa complexidade que é o mundo em que  vivemos, tendo em conta os inúmeros factores subjectivos, todavia reais, que nos rodeiam e nos condicionam: a Cultura e os aspectos da nossa própria idiossincrasia; a História e os movimentos sociais; a Economia e a luta pela sobrevivência; a Natureza e a adaptação ao meio físico; etc. Perante todos estes factores, e muitos outros se poderiam nomear, a Vida humana é uma verdadeira aventura. Mas é essa Vida, esse Quotidiano que nos faz continuamente despertar para o facto de estarmos vivos e em relação. Encarar o Quotidiano como um autêntico Mestre é para nós, detentores de eu, um autêntico desafio. A despersonalização, a ausência de egoísmo, poderão fazer nascer aquela disponibilidade e aquela humildade que se encontram na origem da Atitude Religiosa. Atitude que nos permite abraçar e abarcar o Mundo do Real e fazer-nos compreender o Eterno Presente, o total entendimento dos Mistérios e a sua cabal realização pelo Homem...

            Em face das mais atrás referidas realidades dicotómicas de apropriação do mundo, é fundamental estarmos conscientes das relações de poder exercidas pelo urbano face ao rural, da cidade face à aldeia, isto para  apresentar um exemplo corrente nos nossos dias do exercício, de facto, do etnocentrismo sócio-cultural.

            É importante termos em conta as diferentes Identidades Culturais que frequentemente se complementam de modo harmonioso.

            É urgente consciencializarmos a riqueza das relações humanas, da linguagem e das práticas autenticamente tradicionais... a fim de que se torne emergente uma autêntica coesão social entre as diferentes propostas e práticas culturais. Porque são estas diferenças e esta complexidade de relações que torna a Cultura tão rica e tão importante para o bem-estar social dos grupos humanos.

            É indispensável nós não esquecermos de que todos os homens e mulheres são sujeitos com um DIREITO inalienável à PALAVRA, em LIBERDADE.

           Termino com um pequeno excerto de Rainer Maria Rilke e sem mais comentários pelo facto do mesmo ser bastante significativo e gerador de reflexão:

         «Eu acabo de pronunciar a palavra Liberdade. Parece-me que nós adultos, vivemos num mundo onde não existe nenhuma liberdade. A liberdade é uma lei em movimento que cresce e se desenvolve com a alma do homem. As nossas leis já não são mais as nossas. Ficaram para trás enquanto que a vida corria... Conservámo-las por avareza, por ambição, por egoísmo. Mas antes de mais: por medo. Não as quisemos ter connosco, sobre as vagas, na tempestade ou em pleno naufrágio. Elas devem estar em segurança. E como as deixámos assim ao abrigo de qualquer perigo, sobre a margem, elas petrificaram-se. E eis a causa da nossa angústia: que tenhamos leis em pedra.» 

        Rainer Maria Rilke, “Samskola”, in «Oeuvres 1 – prose», 1966 (pág.265).
 
Rui Arimateia
Évora, 28 de Junho de 2012

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