ADMIRÁVEL MUNDO VELHO
J.A. David de Morais
Quo vadis, Europa?
Para onde vais, Europa?
[NOTAS DE LEITURA PARA A SESSÃO DE LANÇAMENTO REALIZADA NAS INSTALAÇÕES
DA BIBLIOTECA PÚBLICA DE ÉVORA, NO DIA 28 DE JUNHO DE 2012 PELAS 18:30]
Agradecendo
desde já o convite e o desafio para fazer a apresentação deste livro ao muito
estimado amigo Prof. João David Morais e agradecendo igualmente às Edições Colibri
através do seu incansável editor e amigo Dr. Fernando Mão de Ferro, irei de
seguida esboçar algumas considerações sobre a obra agora apresentada a público
na magnífica e inspiradora Sala de Leitura Geral da Biblioteca Pública de
Évora.
Desafio que
aceitei de imediato, o que levou a realizar a minha própria investigação para a
compreensão do que me estava a ser pedido, de modo que eu pudesse de seguida
transmitir o resultado da minha leitura e posteriores reflexões. Assim, muito
do que a seguir é escrito resultou de reflexões e de outras leituras de
aprofundamento de um ou outro assunto referido no livro agora apresentado ao
público em geral.
Principio por
referir que, segundo o Autor, este livro “Admirável Mundo Velho” é uma parábola.
E acrescento
que este livro é um hino ao Alentejo!…
Mas é um livro
que incomoda!...
Faz-nos
reflectir sobre aquilo que andamos – querendo ou não, conscientes ou não – a
construir e a transmitir para as gerações futuras, neste caso de Alentejanos /
Aquentejanos!
Esta obra toca
diversificadas temáticas: desde a ficção científica, à ciência propriamente
dita e à medicina; desde a ecologia, à geografia e à política; desde a
arqueologia, à etnografia e à história; desde a literatura, à poesia e à arte;
desde a filosofia à religião…
É uma obra
que, em última análise, denuncia um estado de coisas, e esperemos que não seja
nem premonitória ou profética, nem escatológica… anunciando o fim dos tempos,
para a civilização e a cultura que hoje conhecemos e vivemos após longos anos
de obscurecimento e ditaduras. Não esqueçamos que o Povo português, desde a sua
génese enquanto Estado europeu independente, somente conheceu e viveu uma
espécie de Democracia, em relativa liberdade, após o 25 de Abril de 1974…
Gostaria em
primeiro lugar de referir o facto de estarmos hoje a viver enquadrados numa
assim chamada civilização do consumo. Estamos instalados no primado do conforto
e do prazer, a que unilateralmente nós, europeus, temos vindo a construir desde
há séculos, em detrimento e com a destruição, de facto, de outras culturas, de
outras civilizações, de outros seres humanos… E muitas vezes (demasiadas, penso
eu) em nome de uma civilização, de uma religião e de princípios tantas vezes
conjunturalmente aceites mas hoje completamente ultrapassados… E lembro as
épocas dos descobrimentos e conquistas, da escravatura, dos colonialismos…
Esta obra literária
agora apresentada é arrojada e corajosa – é um grito de alerta contra todas as
prepotências do passado, do presente e do futuro.
Apresenta-nos
uma descrição idiossincrática do alentejano, em breves traços mas referindo o
profundo e o essencial.
É um grito de
alerta e de revolta contra o aprisionamento das consciências e do
condicionamento e formatação das mentalidades. É um grito contra a
“domesticação” da liberdade, individual e colectiva…
O leitmotiv subjacente a toda a obra,
penso ser o seguinte:
As regiões e as minorias têm direito à
palavra e à autodeterminação. Têm direito a construir o seu futuro, decidido no
presente, em liberdade!
Este é também um
livro que denuncia os erros passados, assim como denuncia a insistência, por
vezes criminosa, dos mesmos erros cometidos no presente… Erros que levam um
povo, através dos seus dirigentes “democraticamente” eleitos, a realizarem e a
assumirem actos de lesa Património…
O egoísmo
agravado do ser humano… a ânsia pelo lucro… a procura desenfreada pelo
prazer... a loucura do poder pelo poder… a usura exacerbada, seja física seja
psicológica, do ser humano, transforma-o num autêntico animal irracional e
desprovido de qualquer sentimento ético ou espiritual… Poderá verdadeiramente
dizer-se que o homem cada vez mais se assume enquanto lobo do homem…
Por vezes para
compreendermos e vivermos harmónica e equilibradamente o presente, teremos de
olhar umas vezes para o passado outras para o futuro. Contudo esse olhar não
poderá ser o mesmo com que diariamente nos confrontamos com o nosso presente.
Esse olhar terá de ser, direi não só mais profundo, mas impregnado de uma outra
qualidade. A sua construção terá de ser formada por ferramentas de intervenção
/ interpretação no/do real. E que elas próprias enformem a própria
sensibilidade humana na compreensão e na construção do real, enumero algumas, a
título de exemplo:
-
a poesia, através de uma prática da
sensibilidade…
-
a analogia, o colocarmo-nos na pele
do outro…
É o que o
Prof. João David Morais magistralmente nos apresenta nesta sua obra – um real
formado pelo passado e pelo devir, que nos ajuda a perspectivar melhor o
presente.
Gostaria
contudo, de partilhar convosco um texto de Fidelino de Figueiredo, uma das
grandes figuras da cultura, da história e do humanismo lusitano do século XX.
Muitas
vezes, demais talvez, esquecido tal como muitos outros humanistas e filósofos
desta nossa terra lúcida… mas tão abandonada pelas actuais medíocres classes
políticas dirigentes, que não sabem orientar o Povo na direcção da Luz!...
O
problema da História é o facto de ser escrita por quem detém o poder temporal…
Umas vezes (raras!) investido de autoridade outras enganando, burlando e
escamoteando a realidade do que é ao
Povo que em Democracia conferiu essa autoridade ao político, ao que deveria
gerir a res publica de maneira
equilibrada e honesta…
Basta
olharmos com atenção para as nossas democracias para vermos que a coisa não se
passa assim… Existe poder e abuso de poder… e existe poder desprovido de
qualquer autoridade ética e perigosamente de braço dado com a corrupção e a
prepotência política…
Mas,
reflictamos conjuntamente com as palavras de Fidelino de Figueiredo, sobre a história e a infra-história:
(…). A história que se ensina e que
baseia a governação e os comentários jornalísticos, outrora matéria oficial dos
cronistas régios e ainda hoje departamento predilecto da erudição académica,
está para a história integral como a espuma suja da superfície para as
fermentações de um líquido, ou como a queda outonal da folhagem e o seu
apodrecimento sob a chuva para a evolução biológica das plantas: uma parte, e
parte miserável, de um nobre conjunto.
(…). A história integral possui outro
plano oculto, o da subterrânea acção criadora – subterrânea como a das raízes
daquele arvoredo que no Outono se despiu das suas frondes e nos dias primaveris
se reveste das opulentas galas que lhe sobem das ocultas raízes. A essa
história enganosa e ruidosa da superfície opõe-se a verdadeira e silenciosa, a
das fermentações profundas, a das raízes invisíveis, a infra-história – zona em que a inteligência, já não a
ferocidade, em que a inteligência estimulada por todos os anseios labuta, não
pelo domínio do homem sobre o homem, sim pelo domínio do homem sobre a Terra,
com toda a fenomenalidade que o envolve e todo o cenário do Cosmos que o
defronta. Essa infra-história é que determina a agitação da história aparente.
Assim a realidade profunda e invisível do mundo vibratório do átomo determina a
aparência enganosa e bela do mundo empírico das sensações. Para os observadores
vulgares só existem as cores, os sons, as formas, os contactos, os sabores, o
frio e o calor. E nesse palco sensorial decorre a única história ao seu alcance,
a dos reis e generais, a das guerras, a dos morticínios e prepotências, uns a
mandar e outros a obedecer, história que se anima de muito movimento e
colorido, mas que não passa de meia história. Ora, como em boa verdade
coexistem os dois mundos, o das sensações de perímetro humano e o da vibração
atómica de perímetro universal, assim coexistem os dois planos da história, o
da aparência superficial e o da realidade profunda.(…).
Fidelino
de Figueiredo, in “Entre Dois Universos”, Colecção de
Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1959 (págs. 46-48).
Passando
directamente pelos capítulos da obra agora apresentada, refiro apenas algumas
passagens que me pareceram mais significantes e que me suscitaram outras
pesquisas e outras reflexões e que agora vos deixo, no sentido de vos aguçar o
apetite para a posterior leitura atenta do livro. Vale a pena aprofundar as
pistas deixadas pelo Prof. David Morais ao longo destas quase duas centenas de
páginas de leitura.
A acção do
livro, ficcionada, passa-se em vários locais do Alentejo no ano de 2084. O
protagonista da acção é Leonard Klein, arqueólogo, belga, chefe de equipa de
investigação das escavações que decorriam a cerca de setenta quilómetros da
capital da Sub-Região XII-D, na vila do Almendral.
A investigação em curso era patrocinada por fundos da UEFE – União de Estados
Federados da Europa. Compondo-se esta Federação de trinta e seis Regiões – a
Nova Europa ou Europa das Regiões…
O estudo de
investigação levado a cabo por aquela equipa liderada por Leonard tinha como
objectivo o contribuir para um melhor conhecimento da problemática ambiental e
da história e cultura da Sub-Região.
São
interessantes as reflexões sobre o funcionalismo burocrático (ou burrocrático?!...) que a rocambolesca
figura de Monsieur Branches nos faz
chegar. É focado com clareza o problema do controle da vida social, política e
cultural que os poderes dominantes e centralistas impõem aos diferentes grupos
sociais através de práticas burocráticas… O autor já no Capítulo II remete-nos
para a complexa actividade de apoptose (“morte celular geneticamente
programada”), fazendo-nos reflectir sobre os mortos-vivos em que nos poderemos
transformar…
No terceiro
capítulo o autor apresenta-nos várias problemáticas ao nível do desastre ecológico
que se produziu principalmente a partir da exagerada monocultura do eucalipto
no Alentejo com a plantação desenfreada de eucaliptos a partir da segunda
metade do século XX – “Os bulldozers
cilindravam os terrenos – e os políticos e os técnicos cilindravam as leis.” Já na altura se falava nos meios políticos e
científicos nacionais e internacionais da anunciada desertificação da
Península Ibérica.
Fala-nos ainda da Serra dos Eremitas, a Serra
d’Ossa, e da “Congregação dos Monges de Jesus Cristo da Pobre Vida” que ali
fundara, no século XV o famoso Mosteiro de São Paulo.
Coloca ainda o
interessante e actualíssimo problema da clonagem animal para serviço da
alimentação humana e a ausência de códigos deontológicos para os geneticistas –
ficcionando a criação da Ovis capra,
alertando: “Os cientistas tinham-se,
pois, substituído aos outrora poderosos deuses mitológicos, mas mostravam-se
ainda simples aprendizes de feiticeiro…”
No Capítulo IV
aparece-nos a problemática hoje tão significativa do controle e da manipulação
da informação pelos poderes políticos centralizados nos vários governos –
informação e desinformação / a detenção “democrática” do poder… Isto no que
concerne ao estado em que chegou o nosso planeta em termos de graves e
estruturais alterações climáticas – um alerta perante a grave crise ecológica
mundial.
No romance é
referido o excessivo controle da Federação que nesse ano de 2084 governará a
Europa... Controle e centralismo esses que se endurecem mais sobre os estados
membros mais pobres…
Associei a
este alerta parte de um discurso pronunciado na ONU em Dezembro de 1972, pelo
Presidente do Chile eleito democraticamente, Salvador Allende e pouco tempo
depois, a 11 de Setembro de 1973, morto durante o golpe militar do ditador
Pinochet.
Dizia Allende:
“O drama da minha pátria é o de
um Vietname silencioso. Não há tropas de ocupação, nem aviões nos céus do
Chile. Mas enfrentamos um bloqueio económico e estamos privados de créditos
pelos organismos de financiamento internacionais. Estamos confrontados com um
verdadeiro conflito entre as multinacionais e os Estados. Estes já não
controlam as suas decisões fundamentais, políticas, económicas e militares, por
causa das multinacionais, que não dependem de nenhum Estado. Elas operam sem
assumir as suas responsabilidades e não são controladas por nenhum parlamento,
nem nenhuma instância representativa do interesse geral. Numa palavra, é a
estrutura política do mundo que está abalada. As grandes empresas
multinacionais prejudicam os interesses dos países em desenvolvimento. As suas
actividades dominadoras e incontroláveis prejudicam também os países
industrializados onde se instalam.”
tares,
por causa das multinacionais, que não dependem de nenhum Estado. Elas operam
sem assumir as suas responsabilidades e não são controladas por nenhum
parlamento, nem nenhuma instância representativa do interesse geral. Numa
palavra, é a estrutura política do mundo que está abalada
Entretanto, no
decorrer do romance, no Alentejo profundo das aldeias e dos campos sem água
sente-se com agravamento crescente os efeitos do vento do diabo, o vento suão.
É citado o
escritor Antunes da Silva cuja obra mais conhecida tem exactamente o nome do
vento, “Suão”. Autor de grande sensibilidade literária, descreve-nos o Alentejo
e os Alentejanos como ninguém mais o consegue fazer.
Diz-nos então ele,
descrevendo este fatídico vento suão:
“Duma outra vez, veja lá bem,
minha senhora, houve uma seca maldita, veio um suão que mirrou as terras e
secou os rios e até as nascentes dos chafarizes. Para se matar a sede tinha o
aguadeiro da vila de ir a duas léguas de distância comprar água a um lavrador
que a tirava de uma contra-mina do tempo dos romanos. Nem calcula o dó de alma
que era ver as crianças a chorar, agarradas às saias das mães, a pedirem água
como se fosse pão, afinal duas coisas que a terra dá com fartura por certas
bandas. Pois veio uma tarde tão quente que as pessoas se queixavam do suão,
mãos agarradas à cabeça, ai! ai!, que eu morro – e a velha fazia gestos e
imitava a dor humana, trágica na sua teatrada picaresca.
Os homens, abrindo os braços
esbraseados de calma, respiravam o ar envenenado, as mulheres murmuravam
palavras que mal se ouviam, e as crianças, moles, deitadas no chão dos
celeiros, no lajedo das casas térreas – sei lá a romaria de quebrantos que o
maldito vento trouxe, esse vento ladrão que rói uma pessoa até ao fim da
paciência… (…).”
Antunes da Silva, SUÃO, Obras de Antunes da Silva, n.º 7, Livros Horizonte, 7.ª
Edição, Lisboa, 1985 [pág.102].
Neologismo que
eu próprio já por diversas vezes havia utilizado e no mesmo contexto que o
autor o emprega – para denunciar uma relação de poder hegemónico da cidade
(neste caso de Lisboa) em relação à província, neste caso o Alentejo.
Em última
análise trata-se de um neologismo ligado infelizmente a aparelhos conceptuais
comprometidos com práticas etnocêntricas e, mais radicalmente falando,
neo-colonialistas!
A perspectiva
distanciadora e ostracizante de Lisboa perante o Além-Tejo, neste caso
concreto, assumindo assim um “nós” (do Tejo para norte) e um “eles”, do Tejo
para sul!... para o “deserto”, como dizia ainda há bem pouco tempo um ministro
de um anterior governo de Lisboa… Mário Lino de nome…
No capítulo VI
é abordado o conceito de “família” para os aquentejanos. São citados alguns
autores passados que trabalharam o Povo e a Terra Alentejana, tais como Brito
Camacho, Silva Picão, José Cutileiro, de épocas diferentes e de abordagens
também diferentes.
Nos finais do
século XXI, época em que se passa a acção do romance, o Governo cria a Polícia
da Paz para fazer a guerra… e entrar pela via do etnocídio… obrigando muitas
vezes os povos à legítima defesa… Também naquela época a verdade é aquilo que é servido à mesa da Comunicação Social… E esta
só informa aquilo que quer ou aquilo a que é coagida a informar…
Na casa dos
antepassados de Leonard nos subúrbios da cidade de Évora existia uma Dracaena draco – “O dragoeiro ou árvore
do dragão viera da noite dos tempos primordiais, sobrevivendo a todos os
cataclismos geológicos. Dizia a lenda que os deuses da Atlântida o haviam
dotado de propriedades míticas maravilhosas, só conhecida de raros eleitos, e
que descendia da Árvore do Mundo, Árvore Cósmica ou Axis Mundi…”
Na abordagem
do Simbolismo do «centro» lembro-me sempre da obra de Mircea Eliade, que passo
a citar um pequeno excerto:
“Grande número de mitos e de
lendas fazem intervir uma árvore cósmica que simboliza o universo (os sete
ramos correspondem aos sete céus), uma árvore ou uma coluna central que
sustenta o mundo, uma árvore da vida ou uma árvore miraculosa que dá a
imortalidade aos que provam os seus frutos. Cada um destes mitos e destas
lendas verifica a teoria do «centro», no sentido de que a árvore incorpora a
realidade absoluta, a fonte da vida e da sacralidade, e, nesta qualidade, se
acha no centro do mundo. Quer se trate de uma árvore cósmica ou de uma árvore
da vida imortal ou do conhecimento do bem e do mal, o caminho que conduz até
ela é «um caminho difícil», semeado de obstáculos: a árvore acha-se e regiões
inacessíveis e é guardada por monstros. Não é dado a qualquer pessoa chegar até
ela nem, se acaso o conseguir, sair vitorioso do duelo que terá de travar com o
monstro que a guarda. Cabe aos «heróis» vencer estes obstáculos e matar o
monstro que defende as imediações da árvore ou da planta da imortalidade, dos
pomos de ouro, de velo de ouro, etc. (…) o símbolo que incorpora a realidade
absoluta, a sacralidade e a imortalidade é de acesso difícil. Os símbolos desta
espécie situam-se num «centro», quer dizer, estão sempre bem defendidos e o
facto de os atingir equivale a uma iniciação, a uma conquista («heróica» ou
«mística») da imortalidade.”
Aproveito para
lembrar e citar Gaston Bachelard sobre o facto da objectividade científica
exigir distanciamento e questionamento:
“De facto, a objectividade
científica só é possível se abstrairmos primeiro do objecto imediato, se
recusarmos a sedução da primeira escolha, se travarmos e contrariarmos os
pensamentos nascidos da primeira observação. Toda a objectividade, devidamente
verificada, desmente o primeiro contacto com o objecto. Deve em primeiro lugar
criticar tudo: a sensação, o senso comum, até a prática mais vulgar, a
etimologia, enfim, pois o verbo, que é feito para cantar e encantar, raras
vezes corresponde ao pensamento. Em lugar de se extasiar, o pensamento
objectivo deve ironizar. Sem esta vigilância hostil, nunca atingiremos uma
atitude verdadeiramente científica.”
Apresenta-nos o autor, a certa altura, uma máxima sábia, que
importa reter e reflectir: “As florestas precedem os povos; os desertos
seguem-se-lhes”…
Por sua vez, “no Alentejo, os impactos negativos tinham sido catastróficos… zona carente de águas e de chuvas. Contudo, os técnicos e os políticos tinham-se esquecido de começar por fazer o mais elementar em matéria de planeamento nacional: o ordenamento do território.” Plantaram desordenadamente o eucalipto antes de realizarem o necessário ordenamento do território. No meio de tudo isto… os subsídio europeus…
Interessante as diferentes “abordagens ecológicas” que se
fizeram sentir em Portugal durante principalmente após o 25 de Abril de 1974.
Cada uma das abordagens situada em graus diferentes de aprofundamento da
problemática em questão: a Ecologia é uma Ciência; o Ecologismo a sua vulgata;
e a Ecologice, uma pseudociência, contrabandeada e manipulada em geral por
tecnocratas sem qualquer formação básica em ecologia.”
Uma
abordagem séria foi feita logo em 1974, pelo Professor M. Gomes Guerreiro,
docente na então restaurada Universidade de Évora, na sua obra, “O Homem e a
Poluição”, que passo a citar um pequeno trecho:
Quanto mais o homem lutar contra
a Natureza, procurando dominá-la na ânsia de encontrar uma independência num
contexto científico que jamais será definitivo, mais dependente ficará do mundo
exterior, do meio e das forças naturais. (…).
(…) Há que estudar uma rota
segura, mais moral do técnica, e que, além da produtividade dos factores,
procure com prioridade a felicidade do homem como habitante e componente das
comunidades da Terra; não o luxo e o desperdício mas a parcimónia e a poupança,
ou seja a utilização racional dos elementos da biosfera de modo a serem
reciclados e reabsorvidos no fluir do processo vital; não a viagem segundo um
rumo perigoso fixado por um timoneiro que endeusa a tecnologia, mas sim
escolhendo m outro sereno e tranquilo, tendo em vista usufruir e simultaneamente
manter ou aumentar as potencialidades do mundo de que depende a vida da
humanidade e a beleza que a envolve.
(…).
Há, por último, que fazer
depender o progresso de uma obrigação social e criar uma filosofia e uma ética
para uso da humanidade de amanhã que valorize mais o homem e o seu bem-estar,
qualquer que seja a sua actividade; uma filosofia e ética que hoje já procuram,
um tanto às cegas, certos grupos de jovens, produto contestatário das
sociedades tecnologicamente da vanguarda, que acima do saber colocam o compreender. (…).
A beleza, a vida e a fraternidade
são inimigas da negligência, da ignorância e do lucro.
Por isso nos parece que o
problema de fundo não será melhorar o tipo de sociedade tecnológica em que
vivemos, remediando ou atenuando a poluição; haverá sim que substituí-lo por um
outro, sem poluentes, baseado em concepções éticas e sociais diferentes,
ajustado ao condicionalismo ecológico do único planeta em que existe vida:
assim será possível uma produção
limpa e contínua de bens e a sua distribuição equitativa; um convívio fácil e
livre entre os homens mais de acordo com a Natureza.”
Mais
recentemente apareceu um conceito muito importante, mais global, ligando
sistemicamente a Ecologia, a Economia e a Política, denominado por
decrescimento, muito trabalhado pelo cientista social francês Serge Latouche, e
que deixo um pequeno apontamento denominado “A revolução do decrescimento”:
“Hoje em dia, mais do que nunca,
o desenvolvimento sacrifica as populações e o seu bem-estar concreto e local no
altar de um bem-estar abstracto e desterritorializado. É claro que este
sacrifício em honra dum povo mítico e desencarnado é feito para benefício dos “empresários
do desenvolvimento” (as empresas multinacionais, os responsáveis políticos, os
tecnocratas e as máfias). O crescimento actual só é rentável na condição de
fazer recair o seu peso e o seu preço sobre a natureza, as gerações futuras, a
saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados e, ainda
mais, sobre os países do Sul. É por isso que se torna necessária uma ruptura.
Todos, ou quase todos, concordam, mas ninguém ousa dar o primeiro passo. Todos
os regimes modernos foram produtivistas: repúblicas, ditaduras e sistemas
totalitários, quer os seus governos fossem de direita ou de esquerda, liberais,
socialistas, populistas, sociais-liberais, sociais-democratas, centristas,
radicais ou comunistas. Todos consideraram o crescimento uma pedra angular do
seu sistema inquestionável. A indispensável mudança de objectivo não se inclui
entre aquelas que uma mera mudança eleitoral possa resolver, instalando um novo
governo ou votando a favor duma nova maioria. O que é necessário é muito mais radical:
nem mais nem menos do que uma revolução cultural, que deverá desembocar numa
refundação da dimensão política.
(…).
O projecto do crescimento é,
portanto, uma utopia, quer dizer, uma fonte de esperança e de sonho.”
Serge Latouche, in “Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno”, Edições 70, Lisboa,
2011.
No
Capítulo VII, o último, acontece no romance o baptizado de Manelito no Monte do
Azinhal. Oportunidade para o autor abordar um tema que lhe é extremamente caro,
o da religiosidade popular.
“- Então, o baptizo é a gente fazer uma festa: comemos e bebemos, e, pronto,
está o baptizo
feito.”
E o autor acrescenta a seguinte reflexão:
“Quanto à forma do
baptizo… Deus e os seus emissários tinham-se esquecido daquele povo, e aquele
povo acabara, também, por se esquecer de Deus. Para eles, bastardos de um Deus
menor, os baptizados e outras celebrações do calendário litúrgico persistiam
apenas como uma antiga tradição – um caldo cultural, um traço mnésico – e como
uma oportunidade para confraternizarem. A sua religiosidade era outra: a
religiosidade popular, que não a institucionalizada.”
À proposta
macrocéfala e consumista dos, “senhores das cidades” interessa sobremaneira a
quantidade, o quantificável e o capitalizável. Os seus olhares são
essencialmente “profanos”, na medida em que a Realidade Terra se encontra para
eles destituída de Mitos, sendo encarada como qualquer coisa “separada” de um
Todo, consumível, onde a produção de bens essenciais se encontra parcelarizada,
onde se perdeu a consciência do Ciclo Natural e Ecológico da Tellus Mater.
Por seu lado,
o camponês “autêntico”, tradicional, enraizado na sua terra, criando e vivendo
os seus mitos e ritos de harmonização, encara-a numa perspectiva do “sagrado”,
no sentido dele próprio se considerar integrado num ciclo vital equilibrado,
onde o homem é consumidor directo dos bens criados. Tradicionalmente este homem
produz antes de consumir, enquanto
que o homem urbano paradoxalmente consome
antes de produzir… Contudo, a sociedade moderna, através das máquinas, dos
super-adubos químicos, dos subsídios a fundo perdido da Comunidade Europeia
para a “modernização” e “integração” do sector agrícola da Europa global… Tudo
isto, conjuntamente com as progressivas desertificações climática e humana dos
campos e aldeias… Tudo isto contribui para que, irreversivelmente, as
sociedades camponesas tradicionais, com todas as suas estruturas simbólicas e
míticas do sagrado telúrico, se percam e cada vez mais sejam relegadas para os
confins dos tempos e das memórias que vão ficando cada vez mais ténues…
Transpondo-nos
agora, e apoiando-nos na lei da analogia, para referências de uma Mitologia
Universal, vemos que os conteúdos e as datas de realização das festas
religiosas da Antiguidade não eram de modo nenhum arbitrários. Ambos se
determinavam em função de acontecimentos celestes. Naquela época o homem não se
considerava em absoluto a medida de todas as coisas. Sabia que a sua vida era
regida, assim como a das plantas e flores, assim como a dos animais, por
“estações”, por ritmos e pulsações, por ciclos de grandeza cósmica, ontem
conhecidos, mas hoje já praticamente esquecidos. A estes ritmos cósmicos
ajustava ele a sua actividade, a sua vida em sociedade.
Neste capítulo o autor aborda os aspectos mais filosóficos, mesmo iniciáticos, da procura humana.
É abordada a problemática do Mistério do Amor e da Morte… e a
sobrevivência ao longo de milhares de gerações dos assim denominados Mistérios
Antigos.
João David
Morais, coloca no romance a já atrás citada e misteriosa árvore mitológica – a Dracaena draco, ou dragoeiro, ou árvore
do dragão, considerada pelos botânicos a espécie viva mais antiga do reino
vegetal e que terá sobrevivido a todos os cataclismos da Terra. Ela encerra em
si própria um mistério… E propõe ainda uma relação estabelecida entre o pintor
flamengo H. Bosch e toda a simbologia e poder desta árvore misteriosa. Será
então obrigatório estudarmos a obra de Hieronymus Bosch, nomeadamente o quadro O Jardim das Delícias onde o pintor nos
oferece a representação pictórica do dragoeiro como árvore da vida…
A Árvore da
Vida produz uma resina vermelha, o sangue-de-drago ou dragão, cujas
propriedades Hieronymus Bosch descobriu ao aprofundar a revolução da pintura a
óleo… Teria sido Bosch que, ao aplicar na pintura o sangue-de-drago a quente e
ao respirar os seus eflúvios, se apercebera da sua insuspeitada capacidade de
produzir visões extra-sensoriais…
Alguns
investigadores sustentam que o pintor flamengo teria visto a Árvore primeva numa viagem “xamânica”, sob o efeito do
sangue-de-drago, a essência da Arbor
Vitae…
O dragoeiro:
árvore primordial, a Arbor Vitae ou Lignum Vitae: a mítica Árvore da Vida. O
dragoeiro é uma árvore lendária que, segundo alguns, povoava os bosques da
Atlântida…
E acrescento
que nos Antigos Mistérios da
Humanidade, através de uma abordagem muito particular da alegoria e do símbolo,
os desejos mais íntimos que a Humanidade tem expressado ao longo de toda a sua
História e Evolução: a conquista do Paraíso Perdido, ou do Jardim do Éden ou
das Hespérides, ou de Agartha ou de Shambbalah, ou das Ilhas Encobertas ou
do palácio do Rei Pescador, ou do Castelo do Graal, etc., consoante as
diferentes culturas ou civilizações. Todavia, no fundo, trata-se de conseguir
uma mutação qualitativa da consciência do homem com o fim de conseguir viver
uma União com o Todo – tal qual a Parábola Bíblica do regresso a casa do Filho Pródigo –, pois o Homem sempre
viveu integrado no Todo, contudo, paradoxalmente procura-O à sua volta.
Tal como o
peixinho que, no mar alto, pergunta à mãe:
– Oh, Mãe! O que é o Mar?
E a Mãe, com aquela
ternura e sensibilidade que só uma Mãe sabe mostrar no relacionamento profundo
com um filho, olha-o, sorri muito suavemente e responde-lhe:
– Olha, meu filho, tu
estás no mar, tu bebes o Mar, tu respiras o mar, tu és o Mar!...
Trata-se,
enfim, de alcançar o Tesouro que se encontra oculto na gruta profunda do nosso
coração ou no centro labiríntico do nosso Ser, bem defendido pelo mítico
Minotauro das lendas helénicas... Deixemos Teseu e Ariadne dominarem o
Minotauro do Labirinto e, com o auxílio do novelo de fio, saírem vitoriosos
para a Luz do dia...
No final o
AMOR mata a morte…
Diz-nos então
Eliade:
“(…). Ora, a aparição da Vida é, para o homem religioso, o mistério central do Mundo. (…). A vida humana não é sentida como uma breve aparição no Tempo, entre dois Nadas; é precedida de uma preexistência e prolonga-se numa pós-existência.(…).
Tudo isto está aliás cifrado nos
ritmos cósmicos: não há mais do que decifrar o que o Cosmos “diz” pelos seus
múltiplos modos de ser, para compreender o mistério da Vida. Ora, uma coisa
parece evidente: que o Cosmos é um organismo vivo, que se renova
periodicamente. O mistério da inesgotável aparição da Vida é solidário do
renovamento rítmico do Cosmos. É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob
a forma de uma árvore gigante: o modo de ser do Cosmos e em primeiro lugar a
sua capacidade de se regenerar, sem fim é expressa simbolicamente pela vida da
Árvore.
(…). É a visão religiosa da Vida
que permite o “decifrar” outras significações no ritmo da vegetação, e em
primeiro lugar as ideias de regeneração, de eterna juventude, de saúde, de
imortalidade; a ideia religiosa da realidade absoluta é simbolicamente
expressa, entre tantas outras imagens, pela figura de um “fruto miraculoso” que
confere ao mesmo tempo a imortalidade, a omnisciência e a omnipotência, fruto
que é susceptível de transformar os homens em Deuses.
A imagem da Árvore não foi
escolhida unicamente para simbolizar o Cosmos, mas também para exprimir a Vida,
a juventude, a imortalidade, a sapiência. (…). Por outras palavras, a Árvore
conseguiu exprimir tudo o que o homem religioso considera real e sagrado por
excelência, tudo o que ele sabe que os Deuses possuem pela sua própria
natureza, e que só é raramente acessível aos indivíduos privilegiados, os
Heróis e os semi-Deuses. É por isso que os mitos da busca da imortalidade ou de
juventude ostentam uma Árvore de frutos de ouro ou de folhagem miraculosa,
Árvore que se encontra «num país longínquo» (na realidade – no outro mundo) e
que é defendida por monstros, (grifos, dragões, serpentes). (…).”
Constatou ele
que:
O tríptico do
Jardim das Delícias de H. Bosch era um hino de louvor ao maravilhoso, ao
fantástico e ao simbólico – uma síntese da anima
mundi… O quadro era uma síntese do Ser e do Saber. A Fonte da Vida estava
no alto ao centro… e a Árvore da Vida encontrava-se em baixo, à esquerda.
E a Árvore da
Vida e o Cristo-Deus, sendo dois, eram na verdade apenas um só, porque ambos
eram o princípio da Vida.
E Adão e Eva,
sendo dois, eram, na sua essência, apenas “uma só carne”, logo também uma só Vida.
A cadeia do
saber iniciático e tradicional encontra-se mergulhada nos arquétipos do
passado, ou do eterno presente? O princípio e o fim fundindo-se e
transmutando-se na alquimia da Vida, numa génese única do Ser. A Egrégora
Eterna…. A Iniciação Solar...
Já Fernando
Pessoa nos descreveu através da sua poesia intemporal e de forma magnífica a
INICIAÇÃO
“Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ...
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ...
Neófito, não há morte.”
Fernando Pessoa, Poesias, Colecção Poesia, Edições Ática, Lisboa,1942 [pp. 235-6].
Dizia o protagonista
a certa altura do romance que na Vila de Almendral: “Nos fins-de-semana, era vulgar ouvirem-se, pela noite dentro, os belos
e dolentes corais que os nativos entoavam na locanda, como que carpindo as suas
mais íntimas mágoas. O canto tradicional, sonoro, grave e arrastado, espelhava
então uma dolência profunda: era a natureza introvertida daquele povo que se
exteriorizava e, também, a nostalgia de um passado que já tinha sido mais
ridente que os tempos actuais, preenchidos agora por privações e atribulações
de vária ordem.”
Não me inveja de quem tem
carros, parelhas
e montes
só me enleva
quem bebe
água em todas as
fontes.
O alentejano ao ouvir as modas está simultaneamente a
escutar o outro e a aprender com ele; e quando canta está a partilhar, está a
ensinar. Através do seu cante o alentejano está a ser ele próprio e está a
interpretar aquela voz que lhe chega das entranhas da sua terra-mãe, terra onde
vive e onde trabalha e onde canta.
Nos dias que correm é cada vez mais necessário que cada
um de nós queira e consiga “beber água em todas as fontes” para que as
diferenças de todos possam ser compreendidas e aceites por todos. Para que
aquilo que diferencia os homens uns dos outros seja um factor de aproximação e
não um factor de desavença e de desentendimento.
O ser humano é uno e indivisível tal como a própria Vida.
Às vezes é alentejano ou beirão; é cristão ou muçulmano; é judeu ou hindu; é
preto ou é branco… No fundo a essência vital que anima os corpos dos homens é a
mesma e eles estarão “condenados” a entenderem-se e a interagirem como irmãos
se quiserem que a Civilização continue e evolua equilibradamente ao som
da Música das Estrelas que nos envolve e que nos inspira a brotarmos para fora
das nossas almas de alentejanos e de cidadãos do mundo aquele grito, aquele
cante, que tanto nos diz e tanto nos encanta…
Entrámos e
instalámo-nos no Século XXI da Era Cristã, num mundo paradoxalmente marcado
pela barbárie e pela selvajaria humanas, diria antes sub-humanas, e onde estas
tristes mas factuais realidades são moda, basta olhar a televisão, a net, os
jornais…
Nos dias de
hoje, mais do que nunca, temos de olhar e repensar a essência da natureza
humana. Esta encontra-se a ceder aos mais baixos instintos de animalidade, onde
a emoção e o mental inferior se desenvolvem perigosamente, pondo em causa uma
evolução harmónica, equilibrada e espiritual. A grande tentação das hegemonias
e dos imperialismos, olhados pessoal ou colectivamente, quaisquer que sejam as
suas colorações – religiosas, económicas, culturais, civilizacionais –,
conduzem a Humanidade a cometer autênticos genocídios e inclusivamente
deteriorando irreversivelmente a própria vida natural do planeta.
Choques de
culturas, choque de civilizações, choque de religiões, aliados à intolerância,
ao despotismo e à prepotência, que caracterizam e normalizam a acção humana,
são o apanágio do homem contemporâneo onde quer que ele se encontre.
A pegada
humana está a marcar indelevelmente o solo fértil de Gaia. O planeta está a
sofrer uma imensa e arriscada provação. Falando metaforicamente, um Dragão
Negro está a possuir e a dominar as mentes, as consciências e, o que é mais
grave, o coração dos homens, transformando os valores de uma cidadania
partilhada em práticas de predação, de horror e de insensibilidade.
Nunca as
palavras Fraternidade, Religião e Amor, estiveram tão vazias de sentidos e de
sentir. O primado do ter sobrepõe-se irremediavelmente ao primado do Ser.
Lágrimas,
terror, sofrimento chegam constantemente aos nossos sentidos através dos mass-media. Infelizmente temos a
capacidade tecnológica de presenciar a(s) guerra(s) em directo. A grande
quantidade de informação manipulada, distorcida e censurada, entorpece-nos o
sentir. Olhamos, vemos, ouvimos, tomamos partido, mas falta responder à grande
questão: como actuar? Como agir, enquanto indivíduos racionais e conscientes,
perante este caótico estado de coisas? Perante estas “normalizadas” atrocidades
de lesa humanidade, destituídas de qualquer ética?
Imaginemos,
através de uma imaginação criadora, que contemplamos a Terra dos altos céus: de
imediato sentimos na nossa carne a agonia dos seres vivos! A Terra encontra-se
coberta de feridas, cheia de cicatrizes, sangrentas, latejantes... causa de
sofrimentos desmedidos...
Por certo que
igualmente se recordarão das tão simples e tão belas palavras de Jesus
inscritas no Evangelho segundo São João (XV-12) – “Eis o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.” Fazer
a guerra à Humanidade é fazer a guerra a Cristo, é recusar, repudiar e espezinhar
a Sua palavra, o Seu exemplo, a Sua memória.
Lembremo-nos
da grande verdade de que, não importa quão vasta a escuridão, quão vasta a
noite, contudo uma pequena chama de vela detém essa grande escuridão. Na sua
insignificância é invencível porque é Luz.
Que cada um de
nós mantenha acesa a sua pequena chama. Cada qual, por si, pode tão só
significar uma fraca luz, contudo a natureza de todas as chamas é a mesma, é
Una. E todas juntas, na sua Unidade Essencial, firmemente dirigidas e erigidas
aos céus ensombrados pelas densas nuvens negras do ódio e da ignorância,
poderão, a pouco e pouco, afastar as trevas e fazer surgir mais uma vez e
sempre a Grande Chama Universal, corporalizada pelo Sol a que os antigos
denominavam por Cristo Solar ou Logos Solar...
Mais Fraternidade,
mais Compaixão e mais Amor são precisos para que essa Chama Universal se
manifeste e realmente se torne uma Realidade viva e verdadeiramente
transformante e transformadora nos corações e nas consciências da Humanidade
que é Una!
Temos dentro
de nós próprios, enquanto seres humanos, a possibilidade de sintetizarmos, de
compreendermos e de reproduzirmos o Kaos e ou o Cosmos.
Olhando esta
imensa complexidade que é o mundo em que
vivemos, tendo em conta os inúmeros factores subjectivos, todavia reais,
que nos rodeiam e nos condicionam: a Cultura e os aspectos da nossa própria
idiossincrasia; a História e os movimentos sociais; a Economia e a luta pela
sobrevivência; a Natureza e a adaptação ao meio físico; etc. Perante todos
estes factores, e muitos outros se poderiam nomear, a Vida humana é uma
verdadeira aventura. Mas é essa Vida, esse Quotidiano que nos faz continuamente
despertar para o facto de estarmos vivos e em relação. Encarar o Quotidiano
como um autêntico Mestre é para nós, detentores de eu, um autêntico desafio. A despersonalização, a ausência de
egoísmo, poderão fazer nascer aquela disponibilidade e aquela humildade que se
encontram na origem da Atitude Religiosa.
Atitude que nos permite abraçar e abarcar o Mundo do Real e fazer-nos compreender
o Eterno Presente, o total
entendimento dos Mistérios e a sua
cabal realização pelo Homem...
Em
face das mais atrás referidas realidades dicotómicas de apropriação do mundo, é
fundamental estarmos conscientes das relações de poder exercidas pelo urbano
face ao rural, da cidade face à aldeia, isto para apresentar um exemplo corrente nos nossos
dias do exercício, de facto, do etnocentrismo sócio-cultural.
É
importante termos em conta as diferentes Identidades Culturais que
frequentemente se complementam de modo harmonioso.
É
urgente consciencializarmos a riqueza das relações humanas, da linguagem e das
práticas autenticamente tradicionais... a fim de que se torne emergente uma
autêntica coesão social entre as diferentes propostas e práticas culturais.
Porque são estas diferenças e esta complexidade de relações que torna a Cultura
tão rica e tão importante para o bem-estar social dos grupos humanos.
É
indispensável nós não esquecermos de que todos os homens e mulheres são
sujeitos com um DIREITO inalienável à PALAVRA, em LIBERDADE.
Termino
com um pequeno excerto de Rainer Maria Rilke e sem mais comentários pelo facto
do mesmo ser bastante significativo e gerador de reflexão:
Rainer Maria Rilke, “Samskola”, in «Oeuvres 1
– prose», 1966 (pág.265).
Rui Arimateia
Évora, 28 de Junho de 2012
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