CIDADE BRANCA
Évora é uma cidade branca como uma
ermida. Convergem para ela os caminhos da planície como o rasto da esperança
dos homens. E como a uma ermida, o que a habita é o silêncio dos séculos, do
descampado em redor. Conheço, dos seus espectros, a vertigem das eras, a noite
medieva, mora ainda nas ruas que se escondem pelos cantos, nas pedras cor do
tempo ouço um atropelo de vozes seculares. Vozes de populaça, gritos de
condenados, ecos de reis, senhores, estrépito de guerras, ódios e sonhos, sob a
imobilidade dos mesmos astros. Como um cofre do tempo, irrealizado e absoluto,
a cidade ignora a exactidão do presente, conhece apenas o alarme da memória. As
casas novas têm todas a mesma idade de séculos. E quando se sai da cidade, a
planície prolonga, até a um limite irreal, esta voz de infinitude. Assim, é
sobretudo de noite que a cidade se me revela. Nas ruas ermas, os candeeiros
meditam sobre velhos espectros, velam o rasto do mundo desaparecido, essa
ausência que se sente em tudo o que foi tocado pelo homem e lhe retém o calor
da vida. Mas porque esta cidade não confraterniza connosco, porque a habitamos
como quem passa, como provisoriamente se habita uma estalagem, porque somos
nela intrusos, eu reconheço-lhe a verdadeira face, não à luz da evidência
diurna, mas a uma obscura luz de eternidade. Lembro-me perfeitamente, meu
amigo, de quando pela primeira vez vi o Templo de Diana. Era Setembro, eu vinha
fazer exames, conhecia o templo dos livros, das fotografias. Ignoro ainda se o
monumento se alinha entre as belas obras de arte, essas perante as quais
estamos todos autorizados a comover-nos. Ignoro-o, porque hoje sei que o
milagre pode surgir quando menos o suspeitamos: uma frase musical de um tocador
ambulante, o assobio de quem passa, um talo de erva que irrompe de uma juntura
de pedras, podem alvoroçar-nos como a mais pura e evidente aparição da beleza.
Subi a rua que vai da Praça, mal reparei então na Sé, obscurecida a um canto,
cheguei enfim à acrópole onde se ergue o Templo. Catorze colunas nuas levantavam-se
para os astros banhadas da lua quente que iluminava o largo. Viam-se as
estrelas por entre elas, o espaço habitava a sua irrealidade, irradiava essa
mão de pedra à sua infinitude. Suspenso de memória e de uma obscura
interrogação, ali fiquei algum tempo, tocado dessa indistinta surpresa que é o
halo do limiar da vida, a anunciação das origens. Tenho visitado o Templo a
outras horas de lua; mas jamais o alarme me visitou assim puro e fulminante,
talvez porque o sabê-lo, o procurá-lo, lhe velava um pouco a face – talvez
porque ele só reconhece a verdade de quem não está prevenido, de quem vem
desarmado dos combates diurnos.
Vergílio Ferreira, in “Carta ao Futuro”, Ed. Vértice,
Coimbra, 1958
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