domingo, 23 de março de 2014
CORDEL REPENTE E VIOLA EM PORTUGAL COM MESTRE AZULÃO E BEZERRA DO CEARÁ
Meu abraço aos portugueses
Desta cidade
princesa
Évora, um
reduto histórico
Dotada por
natureza
Aonde guarda
e preserva
A Cultura
Portuguesa
Aqui agente
admira
As suas
belezas mil
Terra dum
clima saudável
E de umpovo
gentil
Que valoriza
os poetas
Filhos natos
do Brasil
Portugueses,
Brasileiros,
Unidos
apertam as mãos
Como amigos
patriotas
E fervorosos
cristãos
Numa amizade
mútua
De dois
países irmãos
Aqui não se
vê mendigo
Nem criança
abandonada
Se vê na
face do povo
Felicidade
estampada
Aqui nem uma
pessoa
Diz que já
foi assaltada
Évora cidade
climática
Com pureza e
primasia
No verão seu
clima seco
Aquesse
durante o dia
A noite uma
brisa mansa
Leva o calor
e esfria
Tem jardins
e monumentos
Comigrejas e
mosteiros
Conventos e
faculdades
Que nos
ensinos ordeiros
Dão orgulho
aos portugueses
E delírio
aos brasileiros
Tem dentro
do jardim Público
Um ês
Palácio Real
Suntuoso
monumento
De estrutura
coloçal
A Casa Dom
Manuel
Grande Rei
de Portugal
Um magestoso
Corêto
Bem no
centro do jardim
Com todos
traços Reais
Como quem
nos diz assim
Eu sou uma
obra eterna
Que nunca
mais terei fim
Todos
canteiros floridos
Com cravos,
jasmins e rosas
Exalando
seus perfumes
Essências
deliciosas
Assim
perfumando as môças
Elegantes e
formosas
Seu povo é
muito católico
Amigo e
hospitaleiro
É no mundo
cultural
Preservador
e herdeiro
Amante das
boas obras
E irmão do
brasileiro
Láfomos bem
recebidos
E
recepcionados
Num hotel
granfino e calmo
Ficamos lá
hospedados
Com todas as
regalias
E excelentes
cuidados
Onde as
môças nos trataram
Como
bondosas irmães
E se tornaram
de nós
Admiradoras
fans
Alegrementes
serviam
Nosso café
das manhães
E todos
funcionários
Da Câmara
Municipal
Nos
atenderam felizes
Com atenção
cordial
Sempre
dizendo, bem vindo
Ao nosso
Portugal
Também os
chefes da Câmara
Unidos na
mesma idéia
Fizeram em
nosso favor
Reunião de
Assembléia
Os senhores
Paulo Lima
E Rui
Arimatéia
Paulo e Rui
Arimatéia
Usaram
antecipação
Providênciando
logo
Nossa
remuneração
Nos pagando
antes mesmo
Da nossa
representação
Para à
Cidade de Beja
Também fomos
convidados
Onde catamos
repentes
Entre
artistas animados
Lá fomos por
todos eles
Aplaudidos e
abraçados
Durante toda
a viagem
Entre campos
de oliveiras
Fazendas e
mil pomares
De vinhas e
cerejeiras
Encantados
nos lembramos
Nossas
frutas brasileiras
Um ônibus trouxe
de volta
Nós e
artistas cubanos
Falando das
nossas músicas
Nossos shows
e nossos planos
E
instrumentos diversos
Espanhóis e
Italianos
Teve
artistas portugueses
Repentistas
de primeira
Que cantaram
seus repentes
Do seu
estilo e maneira
Mostrando a
sua cultura
Lá da Ilha
da Madeira
Artistas do
Alentejo
Mostraram a
sua cultura
Onde tocaram
e dançaram
Comarte
nativa e pura
Gente que
conserva a música
E cultiva
agrícultura
Nós fomos
considerados
Lá por todos
portugueses
Como
estrelas brasileiras
Entre espanhóis
e franceses
E com
futuros convites
Pra irmos lá
outras vêzes
Pois em todo
conteudo
Da nossa
apresentação
Foi feito um
evento histórico
De passado e
tradição
Dos
intelectuais
Que
enobreceram a nação
Guerreiros,
religiosos,
E poderososn
Reais
Que deixaram
grandes nomes
E se
tornaram imortais
De muitos
séculos passados
Dos tempos
medievais
De Pedro
Alvares Cabral
E suas
proesas mil
Atravessando
o Atlântico
E em vinte e
um de abril
Do ano mil e
quinhentos
Aportou no
meu Brasil
Os índios preseciaram
A vinda dos
portugueses
Mas no
Brasil já se achavam
Exploradores
franceses
Que se
debatiam em lutas
Com índios e
holandeses
Esses tais
exploradores
Levavam
muito sutil
Ouro e
pedras preciosas
De grandes
valores mil
E madeira
cor da brasa
Que deu o
nome ao Brasil
Estes e
outros passados
Muitos antes
de Cabral
Itália,
França, Alemanha
E toda
Europa em geral
Descrita por
grandes vultos
De Espanha e
Portugal
Nós os vates
repentistas
Voltamos
regosijados
Pelo o trato
que tivemos
E carinhosos
agrados
Dos bons
irmãos lusitanos
Alegres e
educados
Trouxemos de
Portugal
Uma
excelente impressão
De um povo
generoso
E de um bom
coração
Com todos os
requisitos
Duma
civilização
Um país
organizado
De paz e
tranquilidade
Ordem,
respeito e justiça
Sem violência
e maldade
Trazendo á
sua nação
Progresso e
prosperidade
Portugal
abençoado
Pelo clima e
a beleza
Ruas, praças
e jardins
Tem muito
zelo e limpeza
Mostrando ao
mundo que tem
Civilidade e
riqueza
Aonde nós
recebemos
Zelo cuidado
e carinho
União entre
os artistas
Leais em
todo caminho
Assim foi em
Portugal
O país meu
avosinho
Fim
Autor: José
João dos Santos (Mestre Azulão)
05/06/2001
Programa Cultural do Colóquio Interdisciplinar CULTURAS POPULARES EM PORTUGAL SÉCULOS XIX E XX
ÉVORA, Palácio D. Manuel, 24 de Maio de 2001
Endereço do
Mestre Azulão
Rua Celina
Lima n.º 11 – Engenheiro Pedreira – Japeri – RJ
Estado do
Rio de Janeiro. CEP. 26.381-000
Telefone:
(03121) 2664-2159
Esta
literatura de cordel foi patrocinada pelo o Sr. Prefeito de Japeri, Doutor
Carlos Moraes Costa, numa homenagem a cultura nordestina.
segunda-feira, 17 de março de 2014
Poema Entrelaçado
Évora
branca, marmórea, ebúrnea,
de lírios, nuvens, pombos e cisnes,
camélia, cal, amêndoa e lua,
imaculada...
“Lembrai-vos, porem, Senhora,
do Geraldo Sem Pavor:
- que outros o chamem de bravo,
nós o chamamos traidor.
Chegou-se tão disfarçado,
conquistou nosso favor.
Depois de amante fingido,
tornou-se vil agressor.
Sobre as pedras que estais vendo,
corre uma fita de cor:
corre uma fita encarnada,
sangue mouro, em tanto alvor,
destas cabeças cortadas,
que pesam sobre o valor
do ardiloso comandante,
cruel Geraldo Sem Pavor.
Por mim não diria nada:
mas não hei de chorar por
esta moura, minha filha,
que mal podia supor
ser por ele degolada,
dando-lhe senhas e amor?”
Évora branca, marmórea, ebúrnea,
cera, alabastro, magnólia, jaspe...
Sal das tristezas, coluna de horas
ultrapassadas...
“Lembrai-vos, porém, Senhora,
de Geraldo Sem Pavor!
Vede nestas armas claras
nossas mascaras de dor...”
Évora, 1953
Cecília Meireles
in “Poesia Completa”
de lírios, nuvens, pombos e cisnes,
camélia, cal, amêndoa e lua,
imaculada...
“Lembrai-vos, porem, Senhora,
do Geraldo Sem Pavor:
- que outros o chamem de bravo,
nós o chamamos traidor.
Chegou-se tão disfarçado,
conquistou nosso favor.
Depois de amante fingido,
tornou-se vil agressor.
Sobre as pedras que estais vendo,
corre uma fita de cor:
corre uma fita encarnada,
sangue mouro, em tanto alvor,
destas cabeças cortadas,
que pesam sobre o valor
do ardiloso comandante,
cruel Geraldo Sem Pavor.
Por mim não diria nada:
mas não hei de chorar por
esta moura, minha filha,
que mal podia supor
ser por ele degolada,
dando-lhe senhas e amor?”
Évora branca, marmórea, ebúrnea,
cera, alabastro, magnólia, jaspe...
Sal das tristezas, coluna de horas
ultrapassadas...
“Lembrai-vos, porém, Senhora,
de Geraldo Sem Pavor!
Vede nestas armas claras
nossas mascaras de dor...”
Évora, 1953
Cecília Meireles
in “Poesia Completa”
domingo, 2 de março de 2014
AS BRINCAS DE ENTRUDO DE ÉVORA EM 2014
NOTÍCIA
SOBRE AS BRINCAS DE ÉVORA
As Brincas do Entrudo de 2014
Neste Entrudo do ano de 2014 só
irá sair para a rua uma Brinca de
Carnaval – a do Bairro de Almeirim / Rancho Folclórico Flor do Alto Alentejo e
irá apresentar-se por diversos locais do Concelho de Évora, principalmente nas
freguesias rurais e quintas ao redor de Évora. Irá também apresentar-se no
Centro Histórico (Praça do Giraldo e Praça de Sertório).
No Sábado, dia 1 de Março,
participou no Festival Entrudanças, em Entradas / Castro Verde, evento cultural
organizado pela Associação PédeXumbo.
Recordemos que...
As
Brincas são das manifestações
tradicionais mais representativas do Carnaval de Évora. Consistem numa
manifestação cultural tradicional, ainda hoje viva, sendo únicas pela forma e
pelo conteúdo, pela originalidade e pela criatividade. São um sub-género da
dramatização popular, musicadas e coreografadas, tendo por base um fundamento constituído por um “corpus”
de décimas, tão características do Alentejo, e um dos pilares das oralidades da
cultura popular alentejana.
Excertos de um
fundamento escrito por Mestre Raimundo, “As Encantadas”...
Foi
assim apresentada a “fórmula” do Mestre iniciar o fundamento no “Grupo das
Encantadas”:
MESTRE
1.ª
Senhor
venho-o cumprimentar
Com a
minha delicadeza
E
pedir-lhe a fineza
Se nos
deixa aqui apresentar
Nada
podemos falar
Sem a
sua autorização
O
Senhor é o patrão
Eu
cumpro o meu dever
Faz
favor de me dizer
Se me
á licença ou não
2.ª
Fico-lhe
grato senhor
Que
atenda o meu pedido
Eu
fico-lhe agradecido
Muito
obrigado pelo favor
Já
tenho a rua ao dispor
Pois
irei o sinal dar
O povo
está a esperar
A
nossa apresentação
Dou-lhe
um aperto de mão
E
vamos já iniciar.
3.ª
A
todos muito boa tarde
A
todos muita saúde
Que
Deus os ajude
Com
sua bondade
Esta
mocidade
Vem
aqui alegremente
Cumprimentar
toda a gente
De
dentro do coração
Peço-lhe
muita atenção
E não
cheguem muito para a frente
4.º
Isto é
um divertimento
Que
nós mandámos fazer
Mas
devem de gostar de vir
Este
nosso entretimento
Não é
um fundamento
Com
toda a perfeição
É a
revolta de uma nação
É a
vida que foi vencida
Com um
filho anda fugida
E
muitos assuntos se verão.
../...
Continuando a falar sobre as
Brincas...
As
mensagens da brinca abalam de facto as
estruturas sociais mais sólidas: a família, a autoridade, a igreja, o poder
instituído, a moralidade e os bons costumes.
Se
o fundamento, na brinca, representa a narração de uma situação normal (normalizada) que caracteriza toda uma
ordem quotidiana, a principal figura da brinca
- o
Palhaço/o Faz-Tudo - personifica a desordem, o caos, o
diabo, a loucura, em suma, a ausência de ordem, de lei, de respeito, realizando
ele, no decorrer de toda a dramatização, a inversão total dos valores
veiculados pelos seus restantes companheiros, que fazem os possíveis e os
impossíveis para o ignorar -
ele, para eles, não existe...
Deste
modo, será legítimo afirmar que o Faz-tudo
põe em causa tudo, inclusive a própria brinca
e o seu fundamento.
É
exactamente por este emaranhado de situações, mais ou menos complexas, que só
faz verdadeiro sentido nós encararmos a brinca
no contexto mais amplo do próprio Carnaval, inserido este no calendário das
principais Festas Cíclicas (Agrárias) Anuais. Não o Carnaval domesticado, legitimado, vendido, bem educado, isto é, o Carnaval citadino
e urbano, mas sim aquele tempo de festa, de jogo, onde a transgressão, a loucura,
o imoral deveriam ter sido, em eras
passadas, os únicos valores, ou melhor, anti-valores
aceites num tempo e num espaço de renovação, de exaustão do velho e do gasto, para que o novo (ou
renovado) pudesse emergir, ressuscitar, germinar com o aparecimento da
Primavera. Daí o denominar-se, tradicionalmente, desde tempos imemoriais, de Entrudo
(Entrada) esta época de caos e desordem
que antecedia paradigmaticamente a génese da organização natural e humana.
Entrudo para uns e Carnaval para
outros...
O
tempo do Carnaval era tradicionalmente tempo de festa, de jogo, onde a
«transgressão», a «loucura», o «imoral» e a «paródia» deveriam ter sido, em
eras remotas, os únicos valores aceites de um tempo de renovação, de exaustão
do «velho» e do «gasto» para que o «novo» pudesse ressuscitar, germinar com a
Primavera. Talvez daí o facto de se chamar, desde tempos imemoriais, de Entrudo
(Entrada) a esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a
génese cíclica da transformação natural e da organização social.
Notícias antigas sobre as
Brincas de Carnaval de Évora...
O Carnaval
Acerca das festas
e divertimentos carnavalescos, publicou hontem o governador civil do districto
d’Évora, sr. dr. Domingos Rosado, um edital que contem as seguintes
disposições:
(…).
3.ª – As danças,
revistas, ou quaesquer grupos de mascaras nas ruas e logars públicos só podem
ser consentidas quando vão munidas de licença da autoridade policial, e sempre
de forma que não impeçam o transito e o socego publico.
(…).
Notícias de Évora, n.º 6951 de 28 de Fevereiro
de 1924 (à pág. 2)
Ainda o Carnaval
nas quintas do Louredo e Espinheiro
Com grande animação,
realisaram ali as festas nos 3 dias de Carnaval, uma sociedade de rapazes,
organizando umas danças, em que se apresentaram decentemente, sendo os
promotores das danças, os srs. Jasuino Carrageta e Joaquim da Cândida e outras
sociedades. Houve opiniões da maioria, que as danças mais aplaudidas foram as
do sr. Jasuino Carrajeta.
Felicitamos as
sociedades do Louredo e Espinheiro.
Notícias de Évora, n.º 6962 de 14 de Março de
1924 (à pág.1)
O que eram as Brincas...
Tradicionalmente,
as Brincas eram constituídas somente
por homens, travestindo-se, se necessário, para o desenrolar do fundamento, numa média de quinze a
vinte: um mestre, dois ou três
palhaços (os faz-tudos), meia dúzia
de músicos, onde a bateria (bombo e
caixa) e a concertina têm um papel fundamental, um porta-estandarte e os
restantes figurantes para a execução/representação do fundamento.
Convém
clarificar que se denomina brinca o
grupo de homens ou rapazes que se organizam anualmente (ciclicamente) para a
construção e execução de uma dramatização popular durante a época festiva do
Carnaval. No entanto, poderá igualmente entender-se por brinca toda a acção dramatizada (o fundamento), musicada (a contradança, a valsa, a canção, etc.) e
coreografada (as diferentes formações que têm lugar ao longo de toda a acção:
as rodas, etc.). que esse grupo
assume nas várias representações que realiza.
No
que diz respeito ao fundamento, em
termos formais é constituído por décimas de versos rimados. É a alma da brinca.
O
fundamento, apresenta um enredo, com princípio, meio e fim,
podendo este focar diferentes realidades sócio-culturais e históricas.
Diversificada poderá ser a temática desse enredo: episódios da Bíblia, da
História de Portugal, da realidade social alentejana, da guerra, contos
populares tradicionais, do comum quotidiano, entre outros.
Évora, 2 de Março de 2014
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Contar e recontar o conto tradicional
“Deus inventou o homem para o ouvir contar
contos”.
Ditado
Popular
O conto tradicional, que chegou até
nós hoje, é a forma sobrevivente da narração oral no decorrer da sua mais ou
menos longa vida, transmitido de boca a ouvido.
Tal como afirma Italo Calvino, “Quem
faz o conto é o ouvinte”, na medida em que o transmite, lhe confere existência
e continuidade.
A temática do conto tradicional, do
conto de encantar, do conto do maravilhoso, poderá ser enquadrada por muitas
perspectivas e enfoques científicos. Uns de natureza mais antropológica e
sociológica, outros focando mais a psicologia e a psicanálise, outros ainda podendo
ser abordados através do ponto de vista global da filosofia ou mais
concretamente da filosofia da educação.
A problemática do conto tradicional
agora abordada insere-se numa área em que todas as perspectivas acima referidas
são tocadas de um modo integrado.
Este conjunto de eventos agora
proposto servirá para, a curto prazo, enquadrar um conjunto de
inquéritos–recolha sobre e de contos tradicionais no Concelho de Évora, ao
longo de toda a área geográfica do concelho, rural e urbano. Pensamos assim que
nos permitirão compreender a complexidade do contar e do recontar contos
tradicionais, pelos diferentes actores sociais que hoje habitam o Concelho de
Évora.
Tradicionalmente se o conto não for
ouvido, nem for contado, é esquecido, morre, desaparece. Se o processo contar /
ouvir / contar… for interrompido, esse processo circular de comunicação tradicional
e secular, o conto, resultado e veículo da Tradição, desaparece das nossas
memórias. Para o erudito Professor José Leite de Vasconcelos os contos
tradicionais assemelhavam-se aos “calhaus rolados”, uma vez que os contos têm
de ser contados, têm de ser muito “rolados” para se tornarem perfeitos na sua
narração e sobrevivência enquanto tradição oral.
Nos nossos dias atrevamo-nos a
pesquisar o seguinte, sobre o conto tradicional:
-
quem o conta?
-
como conta?
-
quando conta?
-
porque conta?
-
a quem conta?
A Tradição Oral ou, um pacto através
da palavra – a importância sublime do contar e do escutar… é o desafio que nos
propomos a nós próprios descobrir.
Encontramo-nos hoje a
redescobrir os Contos de Encantar.
Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o
conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem
complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um
conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um
aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa
de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um
conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos
falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a
uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação,
observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta
exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela – ela
lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas
que se formam na sua pequena cabeça.
E conseguiremos reviver o estádio de
infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo
nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada
de adultos, procurando a verdade absoluta
e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do
dia-a-dia?
Tal como diz o Poeta [Beatriz
Serpa Branco -A Face e as Sombras,
Évora,1969 (p.29)]:
não se gastou nem
se perdeu a infância
a nossa infância
ficou junto escondida em qualquer canto da vida
sem mudança igual a ser
como a vida que mora por
dentro do viver
Importante é também esta pequena
reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen [ Cit. por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45)]:
«A infância não é
coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma
recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa
custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! voltar a
captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue
velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»
Goethe, um dos grandes poetas da
humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral
Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em
fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:
«O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu
como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo.
Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos.
Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos
não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços
para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a
princesa não casará com esse
miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a
catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente
substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em
conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que
aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração».
[ Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa,
1984 (p. 195).]
Segundo Bruno Bettelheim:
«Os contos de fadas, para além de uma
deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na
estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos
séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»
E é ainda Bettelheim quem afirma:
«A história de fadas é essa dádiva
de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega
às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a
desembrulhá-lo com felicidade!».
Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice
Vieira, refere:
«Pode haver coisa
mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como
se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem
olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo
que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o
de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»
Percorramos todos aqueles velhos contos
que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a
parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e
inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
O homem de hoje, tal como o homem de
ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus,
Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas
idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida que a
Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em
todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma,
há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar
histórias maravilhosas aos seus netos.
E a criança aqui é um elemento-chave
fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito
de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses
mitos.
Fazemos hoje ressurgir os contos de
encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E
contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este
ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo
aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal
como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro
desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens
modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta
aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e
incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da
humanidade?
É muito possível que uma das respostas
nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente
pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se
estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde
impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
A relação que tradicionalmente se
estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre –
não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir
sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que
brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E
porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela
disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em
sensibilidade.
O acto de contar um conto nos tempos
remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar
de uma flor ou o colher de um fruto maduro... acontecia e era um momento vivido
como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
A importância de um Sentido para a Vida
era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
A
dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa
com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em
comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e
o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a
honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira, a luz e a sombra....
Ao atentarmos à actual sociedade moderna
onde nos inserimos, poderemos ver que ela gera elementos desestruturantes, no
sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as
mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida
veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas
histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como
um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão
– os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa
Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso
SER mais profundo...
Assim, o homem moderno terá de encontrar uma perspectiva diferente sobre os
contos de encantar tradicionais, ou
com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente,
mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há
o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir
viver aquém e além da fronteira do
espelho, símbolo do símbolo.
Recordemos Victor Hugo quando afirma
que:
«É no interior de
nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio
encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância
abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».
Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não
obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo
subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde
está oculta a Pedra Filosofal dos
antigos Alquimistas…
E termino a contar um conto de encantar, recriado admiravelmente por Fernando
Pessoa [Poesias , Colecção
‘Poesia’, Lisboa, 1942 (pp.239-241)],
que o denominou EROS E PSIQUE :
Conta a lenda que dormia
Uma
Princesa encantada
A
quem só despertaria
Um
Infante, que viria
De
além do muro da estrada.
Ele
tinha que, tentado,
Vencer
o mal e o bem,
Antes
que, já libertado,
Deixasse
o caminho errado
Por
o que à Princesa vem.
A
Princesa Adormecida,
Se
espera, dormindo espera.
Sonha
em morte a sua vida,
E
orna-lhe a fronte esquecida,
Verde,
uma grinalda de hera.
Longe
o Infante, esforçado,
Sem
saber que intuito tem,
Rompe
o caminho fadado.
Ele
dela é ignorado.
Ela
para ele é ninguém.
Mas
cada um cumpre o Destino–
Ela
dormindo encantada,
Ele
buscando-a sem tino
Pelo
processo divino
Que
faz existir a estrada.
E,
se bem que seja obscuro
Tudo
pela estrada fora,
E
falso, ele vem seguro,
E,
vencendo estrada e muro,
Chega
onde em sono ela mora.
E,
inda tonto do que houvera,
À
cabeça, em maresia,
Ergue
a mão, e encontra hera
E
vê que ele mesmo era
A Princesa que
dormia.»
´
Rui Arimateia
rui.arimateia@gmail.com
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