“Deus inventou o homem para o ouvir contar
contos”.
Ditado
Popular
O conto tradicional, que chegou até
nós hoje, é a forma sobrevivente da narração oral no decorrer da sua mais ou
menos longa vida, transmitido de boca a ouvido.
Tal como afirma Italo Calvino, “Quem
faz o conto é o ouvinte”, na medida em que o transmite, lhe confere existência
e continuidade.
A temática do conto tradicional, do
conto de encantar, do conto do maravilhoso, poderá ser enquadrada por muitas
perspectivas e enfoques científicos. Uns de natureza mais antropológica e
sociológica, outros focando mais a psicologia e a psicanálise, outros ainda podendo
ser abordados através do ponto de vista global da filosofia ou mais
concretamente da filosofia da educação.
A problemática do conto tradicional
agora abordada insere-se numa área em que todas as perspectivas acima referidas
são tocadas de um modo integrado.
Este conjunto de eventos agora
proposto servirá para, a curto prazo, enquadrar um conjunto de
inquéritos–recolha sobre e de contos tradicionais no Concelho de Évora, ao
longo de toda a área geográfica do concelho, rural e urbano. Pensamos assim que
nos permitirão compreender a complexidade do contar e do recontar contos
tradicionais, pelos diferentes actores sociais que hoje habitam o Concelho de
Évora.
Tradicionalmente se o conto não for
ouvido, nem for contado, é esquecido, morre, desaparece. Se o processo contar /
ouvir / contar… for interrompido, esse processo circular de comunicação tradicional
e secular, o conto, resultado e veículo da Tradição, desaparece das nossas
memórias. Para o erudito Professor José Leite de Vasconcelos os contos
tradicionais assemelhavam-se aos “calhaus rolados”, uma vez que os contos têm
de ser contados, têm de ser muito “rolados” para se tornarem perfeitos na sua
narração e sobrevivência enquanto tradição oral.
Nos nossos dias atrevamo-nos a
pesquisar o seguinte, sobre o conto tradicional:
-
quem o conta?
-
como conta?
-
quando conta?
-
porque conta?
-
a quem conta?
A Tradição Oral ou, um pacto através
da palavra – a importância sublime do contar e do escutar… é o desafio que nos
propomos a nós próprios descobrir.
Encontramo-nos hoje a
redescobrir os Contos de Encantar.
Apesar de tudo teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o
conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem
complicações conceptuais nem preocupações didácticas... O acto de contar um
conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um
aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa
de ritual, de místico, de totalizante... Se não, experimentemos, contemos um
conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos
falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a
uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação,
observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta
exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela – ela
lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas
que se formam na sua pequena cabeça.
E conseguiremos reviver o estádio de
infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo
nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada
de adultos, procurando a verdade absoluta
e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do
dia-a-dia?
Tal como diz o Poeta [Beatriz
Serpa Branco -A Face e as Sombras,
Évora,1969 (p.29)]:
não se gastou nem
se perdeu a infância
a nossa infância
ficou junto escondida em qualquer canto da vida
sem mudança igual a ser
como a vida que mora por
dentro do viver
Importante é também esta pequena
reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen [ Cit. por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45)]:
«A infância não é
coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma
recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa
custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! voltar a
captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue
velho: esse terá morrido quando ela o deixou.»
Goethe, um dos grandes poetas da
humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral
Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em
fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:
«O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu
como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo.
Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos.
Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos
não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços
para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a
princesa não casará com esse
miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a
catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente
substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em
conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que
aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração».
[ Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa,
1984 (p. 195).]
Segundo Bruno Bettelheim:
«Os contos de fadas, para além de uma
deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na
estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos
séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.»
E é ainda Bettelheim quem afirma:
«A história de fadas é essa dádiva
de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega
às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a
desembrulhá-lo com felicidade!».
Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice
Vieira, refere:
«Pode haver coisa
mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como
se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem
olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo
que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o
de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.»
Percorramos todos aqueles velhos contos
que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a
parte, se conseguirmos reter em nós o olhar perspicaz e pleno de confiança e
inofensividade da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...
O homem de hoje, tal como o homem de
ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus,
Felicidade, Sentido para a Vida...–, e tem-na procurado desde as mais remotas
idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida que a
Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em
todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma,
há incontáveis séculos, se não milénios, tal como uma avozinha a contar
histórias maravilhosas aos seus netos.
E a criança aqui é um elemento-chave
fundamental, pois tradicionalmente se considera ser preciso possuir o espírito
de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses
mitos.
Fazemos hoje ressurgir os contos de
encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E
contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este
ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo
aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal
como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro
desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens
modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta
aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e
incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da
humanidade?
É muito possível que uma das respostas
nos seja dada mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente
pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se
estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde
impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.
A relação que tradicionalmente se
estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre –
não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais, terá que fluir
sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que
brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E
porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela
disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em
sensibilidade.
O acto de contar um conto nos tempos
remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar
de uma flor ou o colher de um fruto maduro... acontecia e era um momento vivido
como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.
A importância de um Sentido para a Vida
era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.
A
dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa
com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em
comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e
o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a
honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira, a luz e a sombra....
Ao atentarmos à actual sociedade moderna
onde nos inserimos, poderemos ver que ela gera elementos desestruturantes, no
sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as
mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida
veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas
histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como
um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão
– os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa
Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso
SER mais profundo...
Assim, o homem moderno terá de encontrar uma perspectiva diferente sobre os
contos de encantar tradicionais, ou
com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente,
mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há
o outro lado do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir
viver aquém e além da fronteira do
espelho, símbolo do símbolo.
Recordemos Victor Hugo quando afirma
que:
«É no interior de
nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio
encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância
abismal, num círculo estreito, o mundo imenso...».
Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não
obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo
subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde
está oculta a Pedra Filosofal dos
antigos Alquimistas…
E termino a contar um conto de encantar, recriado admiravelmente por Fernando
Pessoa [Poesias , Colecção
‘Poesia’, Lisboa, 1942 (pp.239-241)],
que o denominou EROS E PSIQUE :
Conta a lenda que dormia
Uma
Princesa encantada
A
quem só despertaria
Um
Infante, que viria
De
além do muro da estrada.
Ele
tinha que, tentado,
Vencer
o mal e o bem,
Antes
que, já libertado,
Deixasse
o caminho errado
Por
o que à Princesa vem.
A
Princesa Adormecida,
Se
espera, dormindo espera.
Sonha
em morte a sua vida,
E
orna-lhe a fronte esquecida,
Verde,
uma grinalda de hera.
Longe
o Infante, esforçado,
Sem
saber que intuito tem,
Rompe
o caminho fadado.
Ele
dela é ignorado.
Ela
para ele é ninguém.
Mas
cada um cumpre o Destino–
Ela
dormindo encantada,
Ele
buscando-a sem tino
Pelo
processo divino
Que
faz existir a estrada.
E,
se bem que seja obscuro
Tudo
pela estrada fora,
E
falso, ele vem seguro,
E,
vencendo estrada e muro,
Chega
onde em sono ela mora.
E,
inda tonto do que houvera,
À
cabeça, em maresia,
Ergue
a mão, e encontra hera
E
vê que ele mesmo era
A Princesa que
dormia.»
´
Rui Arimateia
rui.arimateia@gmail.com
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