quinta-feira, 8 de outubro de 2009

SOBRE O CONTO DA TRADIÇÃO ORAL III

Nesta nossa moderna sociedade de consumo, acorrentado pelo egoísmo, e sobrevalorizando o pequenino eu omnidevorador, o homem comum organizou o quotidiano a seu modo e à sua medida, à medida dos seus interesses, aprisionou-o com sistemas de valores, com tradições, com ideologias, escamoteando a Realidade do que É. Contrapôs a tradição-ideologia à Tradição-Sabedoria, paradigma e essência dos Contos da Tradição Oral de todas as Culturas e de todas as épocas. Pois que, enquanto que a primeira tem como objectivos pragmáticos a apropriação do outro; a segunda aponta para a Libertação do Eu e do Outro, baseada na Sageza das Idades, sem idade, sem tempo, sem lugar...

Eis uma pequena história paradigmática:

Um Santo Homem, percorrendo os Caminhos do Mundo, encontrou-se casualmente com o Diabo. Este dava mostras de estar bastante satisfeito ao observar um outro homem que pulava e gesticulava de alegria.
Chegando o Santo junto do Diabo, perguntou-lhe a razão do seu regozijo. E este respondeu-lhe:
– É que aquele homem acaba de encontrar a Verdade!
– Sim? – retorquiu-lhe o Santo.
– Mas não contribuirá esse achado para enfraquecer o Mal e a Ignorância, o Erro e a Guerra, o Sofrimento e o Ódio, sobre a Terra?! E como poderás estar tu, Senhor da Ilusão, tão contente com o achado?
– Não te preocupes com isso! – respondeu-lhe o Diabo.
–É que eu vou ajudá-lo a organizá-la!!!...

Olhando esta imensa complexidade que é o mundo em que vivemos, tendo em conta os inúmeros factores subjectivos, todavia reais, que nos rodeiam e nos condicionam: a Cultura e os aspectos da nossa própria idiossincrasia; a História e os movimentos sociais; a Economia e a luta pela sobrevivência; a Natureza e a adaptação ao meio físico; etc. Perante todos estes factores, e muitos outros se poderiam nomear, a Vida humana é uma verdadeira aventura. Mas é essa Vida, esse Quotidiano que nos faz continuamente despertar para o facto de estarmos vivos e em relação. Encarar o Quotidiano como um autêntico Mestre é para nós, detentores de eu, um autêntico desafio. A despersonalização, a ausência de egoísmo, poderão fazer nascer aquela disponibilidade e aquela humildade que se encontram na origem da Atitude Religiosa. Atitude que nos permite abraçar e abarcar o Mundo do Real e fazer-nos compreender o Eterno Presente, o total entendimento dos Mistérios e a sua cabal realização pelo Homem... Alguns contos da tradição oral desvelam um pouco a real possibilidade que o homem possui dentro de si para viver uma relação de autêntica disponibilidade para o mundo e para o outro.

Em face das mais atrás referidas realidades dicotómicas de apropriação do mundo, é fundamental estarmos conscientes das relações de poder exercidas pelo urbano face ao rural, da cidade face à aldeia, isto para apresentar um exemplo corrente nos nossos dias do exercício, de facto, do etnocentrismo sócio-cultural.
É importante termos em conta as diferentes Identidades Culturais que frequentemente se complementam de modo harmonioso.
É urgente consciencializarmos a riqueza das relações humanas, da linguagem e das práticas autenticamente tradicionais... a fim de que se torne emergente uma autêntica coesão social entre as diferentes propostas e práticas culturais. Porque são estas diferenças e esta complexidade de relações que torna a Cultura tão rica e tão importante para o bem estar social dos grupos humanos.
É indispensável nós não esquecermos de que todos os homens e mulheres são sujeitos com um DIREITO inalienável à PALAVRA, em LIBERDADE.

Termino com um pequeno excerto de Rainer Maria Rilke e sem mais comentários pelo facto do mesmo ser bastante significativo e gerador de reflexão:

«Eu acabo de pronunciar a palavra Liberdade. Parece-me que nós adultos, vivemos num mundo onde não existe nenhuma liberdade. A liberdade é uma lei em movimento que cresce e se desenvolve com a alma do homem. As nossas leis já não são mais as nossas. Ficaram para trás enquanto que a vida corria... Conservámo-las por avareza, por ambição, por egoísmo. Mas antes de mais: por medo. Não as quisemos ter connosco, sobre as vagas, na tempestade ou em pleno naufrágio. Elas devem estar em segurança. E como as deixámos assim ao abrigo de qualquer perigo, sobre a margem, elas petrificaram-se. E eis a causa da nossa angústia: que tenhamos leis em pedra.» [“Samskola”, in «Oeuvres 1 – prose», 1966 (pág.265).]

Rui Arimateia

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