domingo, 4 de outubro de 2009

SOBRE O CONTO DA TRADIÇÃO ORAL I

A acção – fictícia nos dias de hoje – passa-se numa aldeia algures no Alentejo. Contudo poderia ter-se generalizado a uma das muitas aldeias doutras regiões de diferentes países:

– Ó Avó, conte-nos um conto...
– Pois sim, vamos ali para o pé do lume que tem um belo braseiro, e estejam sossegados.
–Ó Avó, conte-nos aquele da Serpente e da Nora – grita a Joana.
– Não! Esse não – replica o João –, antes aquele da Guiomar, a filha do Diabo...
E volta-lhes a Avó, com um sorriso cheio de ternura e um olhar já perdido nos confins da sua infância, época saudosa em que ela, por sua vez, tinha ouvido esses mesmos contos à sua Avó velhinha:
– Pois muito bem, hoje vou contar-lhes o Conto do Soldado Estragado, que vocês nunca ouviram.
– Sim, sim, conte-nos, conte-nos! – gritavam entusiasmados os petizes, antecipando o prazer e os momentos mágicos da narração, que daí a pouco se transformaria numa autêntica viagem imaginária através de reinos longínquos pejados de heróis, cujas façanhas seriam protagonizadas por eles próprios...
E fez-se um silêncio total, em que só se ouvia, para além das respirações ofegantes, o crepitar das chamas... E todo o espaço envolvente era preenchido pela presença da Avó e pelos olhos desmedidamente abertos, e ávidos de palavras, das crianças.
E começa ela, repetindo frases e gestos milenares, reactualizando os sentidos e as realidades desde há muito vividas, sentidas e contadas de geração em geração:
– Era uma vez... e a Comunicação aconteceu...

O Soldado Estragado era um homem que não aprendia nada na tropa, foi sempre militar... E atão, como ele ‘tava sempre na tropa, os outros subiam e abalavam e ele ficava sempre na tropa e ‘tava sempre na mesma – puseram-lhe “o Soldado Estragado”.
Depois, havia um rei – naquele tempo era os reis – e tinha uma filha que todas as noites gastava sete pares de botas com as solas de ferro e ninguém sabia aonde era – isto é uma espécie de um encanto, néi? – ninguém sabia aonde e atão, o qu’é qu’o, o rei, fez?: começou a pôr uma sentinela todas as noites a guardar a filha para saber aonde é que ela gastava aqueles sete pares de botas. Ora!... e adepois quem nã soubesse, no outro dia era morto!
Foi lá um, no outro dia, coitadito!, nã sabia de nada... mataram-no.
Foi outro, mandaram outro!
Chegou lá, no outro dia, os sete pares de botas outra vez só com as empenhas!... Solas já nã tinha... Outro morto!
Mandaram outro. Mas aquele outro, tinha já mais uns galões do que os outros e pensou assim:
– Ora esta! Eu vou ver se o Soldado Estragado quer ir por mim, pode ser que ele saiba...
Foi-lhe dizer e ele nã quis.
– Eu não, não quero... atão os outros – ele era assim muito abrutalhado – vão matá-los e agora vou p’ra lá eu por querer? Eu não!...
No outro dia mandaram-no a ele. Então foi ele, coitado! E pôs-se a pensar no qu’é que havia de fazer à vida, p’ra saber o qu’é que havia de fazer... Ora, abalou... abalou assim pela estrada abaixo, chegou lá a um chafariz assentou-se, muito aborrecido da vida, a pensar o qu’é que havia de fazer... ainda não estava aborrecido de viver...
Apareceu uma velhinha com um chapéu na cabeça:
– Atão soldadinho! O que estás a fazer?
– Ora, estou aqui muito aborrecido...
– Atão?!...
– Atão, a filha do rei todas as noites gasta sete pares de botas com as solas de ferro... e mandam um militar fazer guarda todas as noites, de sentinela, p’ra saber onde ela gasta os sete pares de botas e se não souber é morto. Já mataram três... E agora calhou-me a mim e eu vim-me embora... Agora vou p’ra lá, não sei tal e qual como os outros e o qu’é qu’eu faço?
– Olha filho, tu vás... tu vás saber...
Era Nossa Senhora, aquela velhota.
– Tu vás saber...
– Eu?... Ná!... Eu nã vou...
– Vás! Vás!...Olha, vai e toma lá uma borrachinha, – e deu-lhe uma borrachinha – metes’a aí por dentro do colarinho da camisa. E depois, quando ela te disser assim: – “Soldado, temos d’ir deitar!”–, tu tens já a borrachinha preparada e ela antes de se deitar dá-te uma chávena de chá... E tu nã bebas o chá, mete-o para dentro dessa borracha. E depois, ela diz: – “Soldado, vamos deitar.”, e tu vás-te deitar. E depois vem uma música muito grande... Quando tu ouvires uma grande música, assim um grande barulho dum trem ou coisa assim, tu ‘tás alerta p’ra quando ela sair, tu saíres também. E deu-lhe um saco para ele levar qu’é para trazer as empenhas das botas. – E ela depois, quando vem aquela grande música, corre à cama e dá-te umas espetadelas com um alfinete, e tu aguentas-te... Nã te queixas, fazes que ‘tás a dormir como se tivesses bebido o chá – que era o chá das dormideiras.
Bom, ele assim fez... Lá se fiou nos paleios da velhota, que ele nem sabia que era Nossa Senhora, pois... E foi... Foi lá fazer guarda, e ela, às tantas, disse-lhe assim:
– Então Soldado, são horas de irmos deitar, não?...
– Nã será mal, não, menina princesa, e tal...
Bom, ela então:
– Eu vou fazer o chá.
Foi fazer o chá. Foi-lhe dar uma chávena de chá e ele não o bebeu. Toma! Dentro da borrachinha...
E ela:
– Soldado, temos de ir deitar, não?
– Parece que já vou a estar com sono... Então vá, vamos deitar – disse ele.
Foi-se deitar. E daí a nada, estava assim a fazer que estava a dormir e sempre a pensar, sempre aflito... Quando ele ouve aquele grande barulho e levantou-se logo à coca. Ora... Daí a nada vem ela com um alfenete e, zumba!! duas ou três espetadelas com o alfenete, e ele coitadito até... Mas aguentou-se e nunca disse nada, pra ver se sabia...
Porque o rei dizia que aquele que fosse capaz de saber onde ela gastava os sete pares de botas, casava com ela...
Depois, pegou no saquinho e oh! abre! atrás dela. Porque aquilo estava preparado para ela não o ver... Ela não o via...
Ela amontou-se no trem.
Era ela que era amiga do Diabo Grande e o trem era puxado pelos diabos pequenos. Era tudo diabos.
Bom, passaram ao Jardim do Cobre, e houve uma voz que disse assim:
– Lá vai a Princesa da Austra, com a sua companhia toda atrás! – eram os diabos.
E ele colheu um raminho de cobre e meteu-o dentro da algibeira do casaco.
Passaram ao Jardim da Prata:
– Lá vai a Princesa da Austra, com a sua companhia toda atrás!
E ele colheu um raminho de prata e meteu-o na algibeira.
Passaram ao Jardim do Ouro:
– Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás.
E ele colheu um raminho de ouro. E levou os três raminhos.
Chegou lá e era um salão muito bonito, muito em luxo. Nossa Senhora tinha-lhe dito para ele se sentar num banco qualquer que não havia novidade, qu’ela não o via. E ele pegou no saquinho e sentou-se num banco. E a princesa andou dançando: foram sete voltas e cada uma volta era um par de botas... E ele apanhava as empenhas e metia dentro do saco. Depois, acabou as sete voltas, tocaram a abalar, ele veio para o trem e trouxe o saco com os sete pares de empenhas das botas e trouxe os raminhos na algibeira.
No outro dia, foi tudo fazer a festa ao Soldado Estragado porque naquele dia é que se iriam ver livre dele:
– Eh! Soldado Estragado! Hoje é que é o fim, e tal...
E ele disse:
– Ah! Ah! Os outros ficaram cá e não souberam mas é que eu já sube onde é que ela gastou os sete pares de botas.
– O qu’é que tu sabes, mê mintiroso?! – disse ela logo.
– Sei que você foi ao Inferno, bailhar com o Diabo Grande e abalou daqui puxada pelos diabos piquenos e passámos ao Jardim do Cobre e houve uma voz que disse: “Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás”, e está aqui um raminho de cobre que eu colhi... Passámos ao Jardim da Prata e houve outra voz que disse: “Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás.”, está aqui um raminho de prata que eu colhi... E passámos ao jardim do Ouro e houve outra voz que disse: “Lá vai a Princesa da Austra com a sua companhia toda atrás.”, e aqui está outro raminho de ouro que eu colhi... E lá, você deu sete voltas em volta da sala a bailhar com o Diabo Grande, cada uma volta foi um par de botas, estão aqui as empenhas delas...
E ela encantou-se...
Nã queria casar com ele e por isso encantou-se e disse:
– Só peço ao mê pai que me ponha uma sentinela na capela todas as noites.
E atão ela desapareceu, encantou-se!...
Foi uma sentinela p’rá capela nessa noite... e no outro dia não estava lá. No outro dia foi outra e no outro dia não estava lá...Três! Foram três!...
Havia lá um que lhe calhou, e foi então ter com o Soldado Estragado, p’ra ele ir por ele, p’ra desempenhar o papel dele... O outro pagou-lhe bem, já nã sei aquanto é que era... era lá do tempo dos reis, ou nã sei quê... E atão ele foi. Mas começou com medo de nã ser capaz de desempenhar o papel como tinha sido na outra e abalou pela tal dita estrada outra vez e foi para o tal chafariz... Assentou-se, nã via a velhota e assentou-se lá a pensar...
Apareceu a velhota ao fim de um bocado.
– Atão soldadinho, atão?!...
– Ai! Deixe-me lá!...
– Atão como é que te vistes com a princesa?
– Bem. Mas atão e agora?... Agora que ela pediu uma sentinela ao pai dela, e todas as noites lá vai estar um e no outro dia de manhã já lá nã está!...
– Atão, ela come-os!... – Disse a velhota.
Pior ele ficou...
– Ah! Mas atão agora é qu’eu lá nã vou...
– Vás sim. Tu vás lá.
– Eu nã vou...
Ela lá lhe começou a dizer:
– Vás... Olha, vás p’ra lá e pões-te atrás do altar... E ela aparece à meia-noite a bradar à sentinela mas tu nã respondas!... E nã queiras saber, deixa que ela depois abala...
Bom, ele foi... Lá foi de sentinela e assim que marcou a meia-noite, aparece ela...
– Oh! Sentinela!!... Oh! Sentinela!!... – Dentro da tal capelita.
E ele, nada...
E ela novamente:
– Oh! Sentinela!!... Oh! Sentinela!!...
E ele nada...
E ela, por fim, disse:
– Mal haja os favores que o meu pai me faz... – E nisto desapareceu, abalou.
E ele ficou.
No outro dia, foram ver, lá estava o Soldado Estragado... o Soldado Estragado nã teve prejuízo...
Ora, calhou outro ir p’ra lá, desapareceu outra vez, no outro dia...
No outro dia calhou outro, foi logo ter com o Soldado Estragado, a pagar-lhe bem, e ele foi outra vez pela tal estrada abaixo, p’ró tal chafariz. Chegou lá, apareceu a tal velhota:
– Atão soldado, atão como é que te destes?
– Ah! Eu dê-me bem! Ela por aí andou às trombadas... – Dizia ele.
– Atão agora vás lá outra vez.
– Eh! Nã vou... Já tenho medo.
– Nã tenhas medo... Vás e agora pões-te atrás da pia da água benta e nã queiras saber, deixa-a gritar... Nã lhe digas nada.
Bom, lá o convenceu, com muita conversa e ele atão lá foi... Foi lá p’ró pé da pia da água benta e apareceu ela outra vez à meia-noite, a gritar à sentinela. E ele, nada... E ela lá andou aos gritos, aos gritos como da outra vez e ele nã acudiu e ela disse:
– Mal haja os favores que o meu pai me faz... – E abalou outra vez.
No outro dia lá estava o Soldado Estragado.
No outro dia calhou a outro e esse foi logo ter com ele, já nã esperou então mais demasias... Já via que só o Soldado Estragado é que era capaz de desempenhar o papel... Foi logo ter com ele.
Ele, abalou outra vez pela tal estrada abaixo, lá ter com a tal velhota outra vez. Lá ao tal chafariz, depois aparecia a velha...
– Atão e que tal?...
– Eh! Agora é qu’eu já lá nã vou.
– Vás, vás! Agora é a última vez.
– Nã vou, qu’ela agora já dava urros e batia ali quase ao pé dos meus pés e dizia assim muitas brutidades...
– Não... Tu vás! Tu agora vás e pões-te a fazer que estás a dizer missa... Pões-te ao altar, vestes a opa do padre e pões-te ao altar a fazer que dizes missa, e ela, aparece-te a bradar e tu nã respondas...
Ele foi, pôs-se lá, e ela andou a gritar, a gritar à sentinela e ele nã lhe respondeu e ela correu p’ra ele e agarrou-se a ele e disse-lhe:
– Ai! Soldado Estragado! Sempre me ganháste...
Porque aquele que descobrisse é que casava com ela... Sempre foi ele que a descobriu e sempre foi ele que casou com ela... Ela já nã pôde abalar porque ficou desencantada. No outro dia o Soldado Estragado casou com a Princesa desencantada e assim acabou este conto.

Este conto da tradição oral popular foi recolhido na Freguesia de S. Sebastião da Giesteira, Concelho de Évora, no Inverno de 1983, no decorrer de uma sessão do Curso de Alfabetização de Adultos que na época decorria na aldeia. Foi contado pela Senhora Jerónima, trabalhadora rural, há muitos anos residente nesta aldeia; por sua vez terá ouvido o conto a um seu antigo manageiro. Na transcrição para a linguagem escrita, procurou-se que a oralidade fosse minimamente respeitada, tendo em vista o reconhecimento da sua musicalidade e do seu expressionismo próprios.
Conto com características narrativas mistas pertencentes ao maravilhoso cristão com elementos arcaicos da tradição pagã, versões fragmentadas deste conto foram publicadas por José Leite de Vasconcellos. [in «Contos Populares e Lendas», I: Conto n.º 320-’A Princesa que rompia sete sapatos numa noite’ (pág.636); Conto n.º 321-’A Princesa de Áustria e o Zé Pequeno’ (pág.638); Conto n.º 322-’Os Sapatinhos de Ferro’ (pág.640).]

Rui Arimateia

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