“Évora festeja desde há muito o dia de S.
João. Deste antiquíssimo costume permaneceu principalmente a Feira de S. João,
tal como nos habituámos a chamá-la desde o momento em que juntávamos as sílabas
para tentar pelas primeiras vezes, balbuciando, a Comunicação através da
Palavra. Momento tradicionalmente grandioso para as gentes de Évora e dos
arredores, em que se faziam negócios e combinavam contratos; se compravam os
fatos, o calçado, as mantas, as louças, os queijos e até os capotes alentejanos
e as peças de fazenda; se adquiriam por atacado um nunca mais acabar de
produtos para a casa e para o seu gasto durante o ano que agora re-começava...
E para as crianças, as principais atracções eram os carrosséis e os carrinhos
de choque; as farturas ou brenhóis e o algodão doce; eram as barracas de
quinquilharias e de brinquedos; e era o Circo!... O Circo com os palhaços e os leões, os malabaristas
e os equilibristas; eram as cores e a música, eram os cheiros, eram um nunca
mais acabar de sentires e de desejos, de deslumbramento e de espantos... Era a
Feira de São João.” [Rui Arimateia, in
“Diário do Sul”, 24 de Junho de 1997].
1. Curiosidades Históricas –
os antecedentes:
Feira de Santiago – criada no reinado
de D. Afonso III por carta régia, em 5 de Julho de 1275. Tendo sido
transformada em feira franqueada, a 16 de Fevereiro de 1279, por D. Dinis.
No reinado de
D. Afonso V (1438-1481), faz-se público um Regimento que determina «como se devem escrever e assentar os gados
para evitar que sejam levados para Castela». Datado de 1455, esse Regimento
impunha aos lavradores que fizessem
escrever e assentar todo o seu gado, em cada ano no dia de S. João.
No reinado de
D. Manuel I, a 6 de Abril de 1501, este monarca, ouvindo o que a Câmara lhe
manda dizer por João Mendes Cicioso, responde que «ha por bem que façam a eleição dos almotacés por um ano somente e que
começará por S. João de 1501, em diante».
A 22 de Abril
de 1513, o mesmo rei, manda passar um Alvará nesta cidade de Évora,
dirigido ao Juiz, Vereador e Procurador de Évora, afirmando que «por assim sentirmos por bem e por boa
governança da cidade, havemos por bem e nos prás que de S. João em deante em
que os Oficiais novos entrarem nos ofícios desta cidade, fique sempre um dos
Vereadores do ano passado aquele que é mais antigo para servir o ano que vem
como Vereador com os dois que se elejam… no dito dia de S. João que vem , em
deante.»
A
primeira Feira de S. João realizou-se no Rossio de S. Brás no dia 24 de Junho
do ano de 1569.
A 7 de
Novembro de 1574 aparece um Alvará de D. Sebastião (assinado
pelo Cardeal Infante D. Henrique, seu tio), regulamentando a Feira de S. João
no Rossio de S. Brás.
A 31 de Agosto
de 1620, o rei Filipe II, manda de Lisboa um Alvará determinando «que os contratos que a Câmara fizer com os
marchantes, sejam de S. João a S. João e não de Páscoa a Páscoa, como até agora
se faziam.»
Outras Feiras
tiveram lugar ao longo dos tempos no Rossio de São Brás, de que deixamos uma
curta relação:
·
A Feira de Santiago, com notícia desde o reinado
de D. Afonso III, em 1275;
·
A Feira Franqueada de D. Dinis, desde 1286;
·
A Feira dos Pucarinhos ou das Candeias, do
reinado de D. João III, em 1525;
·
A Feira dos Estudantes, do reinado de D.
Sebastião, em 1569;
·
A Feira dos Ramos, desde 1839;
·
A Feira Nova de S. Cipriano, desde 1900.
Como sugestão
para um maior aprofundamento histórico e literário da temática da Feira de São
João de Évora sugiro a consulta do livro “As Feiras de Évora” da autoria do Dr.
Manuel Carvalho Moniz, uma edição da
Câmara Municipal de Évora datada de 1997, na Colecção: “Novos Estudos
Eborenses”, n.º 1.
2. A Feira de São João
de Évora nos alvores do Século XX
Feira
de tendas onde os mercadores e ofícios tinham uma importância fundamental. As
arruadas arrumavam-se pelos ofícios e mesteres tradicionais: cirgueiros, cerieiros,
curtidores de courama, mercadores de panos de cor, oleiros da loiça, ourives do
ouro e da prata, filateiros das fiações, tecelões, caldeireiros, sapateiros,
etc.
A
movimentação na cidade nesta altura da Feira era enorme: mercadores,
barraqueiros… assim como o policiamento da cidade durante o período de duração
da Feira. Havia comboios especialmente fretados para trazerem pessoas para a Feira
– de Lisboa e das cidades do Alentejo.
Era
uma Feira que se impunha em termos económicos em todo o Sul do país,
principalmente no que diz respeito ao comércio de gados.
A
Feira de S. João era um certame fundamental enquanto instrumento de regulação
dos preços dos produtos agro-pecuários – gado, trigo, farinhas, batata, azeite,
vinho lãs, etc.
Período
igualmente importante para as Estalagens existentes na época e posteriores
Hotéis.
Durante
muitos anos Évora foi a segunda cidade do Reino, daí a importância das feiras
aqui realizadas para a economia da Região e do País.
A
Feira de São João constituía-se enquanto a grande mostra dos produtos e das
riquezas regionais.
Os
dias mais festivos da Feira de S. João serviam como o espelho da moda de então:
as toilettes e o social.
As
cabanas e casas de pasto e os vendedores de droga e de fruta, os queijos e os enchidos. Dentistas e pedicuros.
Todas estas actividades detinham a sua quota-parte na animação económica da
feira.
Eram
utilizadas as carretas e os carros de canudo alentejanos, para o
transporte de mercadorias e das famílias.
A
Feira de S. João enquanto espaço de diversão: as touradas e as cavalhadas; os
Circos, Teatro e os Robertos; as barracas de répteis e outros fenómenos; barracas de jogos pim pam pum; as barracas de fotógrafos e
os Museus Científicos; os Animatógrafos; as Filarmónicas Civis e as Bandas
Militares dos Regimentos. O fogo de artifício.
Contribuía
a Feira igualmente para o desenvolvimento do Teatro e da Música Filarmónica,
pois nesta época muitas Companhias e Bandas Filarmónicas se deslocavam à cidade
para apresentar as suas produções artísticas.
A
própria família real visitou o certame por duas vezes, D. Carlos de Bragança e
D. Amélia de Orleans estiveram na Feira de São João em 1889 e em 1903.
Após
1940 – o folclore e as inaugurações governamentais do Estado Novo marcaram
presença transfigurando o aspecto tradicional da feira de São João.
Re-organizou-se o terrado, apareceram as decorações ao gosto estético da época.
Realizaram-se os cortejos do Trajo dos anos 60, tendo implícita a ideologia“
imperial” do Estado Novo.
Após
o 25 de Abril – o Poder Local Democrático continuou a tradicional Feira de S.
João, modernizando-a, e conferindo-lhe outras valências não só culturais mas
também económicas: os concursos gastronómicos, as propostas socioculturais, o
desenvolvimento tecnológico… Apesar de tudo a Feira de São João continuou como
espaço e tempo catárticos dos cidadãos eborenses, fundamental para o equilíbrio
funcional e emocional da sociedade eborense ao longo do restante ano de
trabalho.
*
*
*
Neste ano de 2013 em que se comemora o Centenário do Nascimento de
Túlio Espanca, não queria deixar de partilhar a vivência deste nosso Amigo e
grande historiador de Évora e do Alentejo, dos seus tempos de juventude. Túlio
Espanca assenta praça como voluntário no Regimento de Artilharia Ligeira n.º1
em Évora no dia 25 de Fevereiro, onde permaneceu como militar até 1933, tendo
sido licenciado como cabo condutor. Apresentamos de seguida o depoimento que Túlio
Espanca deixou escrito nos seus Diários, sobre a Feira de S. João em Évora, decorrendo ano de 1931, nas entradas
referentes aos dias 19, 23 e 24 de Junho:
“No rossio de São Brás, armavam-se já
bastantes barracas, e a animação da tradicional feira de São João principiara.
Os esqueletos do Cine-Teatro Rentini, companhia extravagante de comedias
lofuquistas, e do velho barracão dos Três Irmãos Unidos, cujos fantoches eram
os mais afamados que corriam de terra em terra. Rufando incessantemente e
acompanhado pelos sons guturais dum realejo roufenho, mostrava-se ao começo do
campo, uma escusa barraca com pequena esplanada na frente, onde se empoleirava
um homensinho de grandes guias, bradando em altos gritos a propaganda de sua
casa de clichés de cristal, num elenco formidável, mostrando as colossais
caçadas ao leão africano, ao tigre indiano, ao elefante de Ceylão, à pantera do
Senegal, ao ypophotamo, ao urso polar, etc., etc.; as grandes viagens de Cristóvão
Colombo e a descoberta da América, a celebre travessia do Atlântico pelos
arrojados aviadores Coutinho e Cabral, a terrível batalha de Marne etc.
Cervejarias modernas, tombolas, quinquelharias, apareciam continuadamente nas
ruas da feira, assim como jogos diversos, da argola, da bola nos palhaços,
roleta, tiro ao pucarinho, ao alvo, ao canhão, ao pombo, às surpresas.
Carrousseis, defrontavam-se dois abaixo do monumento aos Mortos, de troupes
muito extravagantes.
Dia 23. Fui escalado para ordenança de ronda à
feira, da tarde à uma hora da madrugada, sendo oficial da mesma, o aspirante
Carrilho.
Dia 24. Entrei de cabo da guarda à cavalariça. São
João em Évora.
A feira animava-se: chegavam os circos Excelsior e Mexicano,
representando este as feras amestradas e ilariantes clowes; a sensação do homem
mais pequeno do mundo, o basar das surpresas universais etc, mas eu
(fatalidade) continuava em serviço no quartel, sem poder sair.”
*
* *
Pela
sua actualidade de análise e de linguagem será interessante a leitura de um
artigo publicado em 1901 na Revista “Serões”,
publicada na capital, e intitulado:
A FEIRA DE EVORA
“Com o volver dos tempos as feiras vão
perdendo a sua antiga importância económica. É natural a evolução. Nos
organismos sociais como nos vivos, os órgãos sofrem as modificações
correlativas à intensidade dos eu exercício, desenvolvendo-se ou atrofiando-se
consoante o predomínio da função que desempenham; outras vezes por adaptações
sucessivas aos meios novos de existência, de sua natureza também variáveis, os
órgãos transformam-se tão profundamente que na aparência se torna difícil
estabelecer-lhes a derivação. As feiras obedeceram às leis gerais. A mais
simples observação descobre a verdade banal do conceito. Em passadas épocas,
quando a carência ou a dificuldade de comunicações e de transportes interrompia
a circulação necessária dos produtos agrícolas e industriais, onerava de
despesas e riscos a deslocação, quando a intensidade do movimento comercial não
atingia a aceleração febril que hoje o domina, quando a especulação inteligente
e produtiva não acendia disputas de concorrência tão calorosas como as que
actualmente aquecem a vida económica universal, nem se feriam batalhas de tão
numerosos combatentes a disputar primazias ou preponderâncias decisivas na
conquista das riquezas, como as que a cada momento agora abalam o mundo dos
negócios; era evidente que as feiras representavam uma acção muito importante
na economia, eram órgãos de principalíssimas funções. Claro está também que a
meio tão diverso do antigo, a nova condições e circunstâncias, as feiras
transformaram-se radicalmente, multiplicaram-se, generalizaram-se nos mercados
especiais, de periódicas que eram tornaram-se permanentes. E, curioso aspecto
de regressão atávica, tendo principiado por serem festas, adquirindo depois
conjuntamente as funções utilitárias de mercados, vão hoje outra vez
restringindo-se à sua primitiva feição espectaculosa, à medida que perdem a
importância comercial. Junto dos grandes centros de população a mudança é
completa, embora as feiras vão lutando sempre pela vida, buscando alento na
tradição, que nos mecanismos sociais representa o benefício de volante,
vencedor dos pontos mortos e regularizador do movimento. Basta recordar para
confirmação do asserto as diversas fases por que foram passando nestes últimos
vinte ou trinta anos as memoráveis feiras de Belém ou do Campo Grande em volta
de Lisboa. E ainda, esta regressão tão característica é que mesmo na história
das exposições internacionais ou universais, desde a primeira de Londres à mais
recente de Paris, essas grandes feiras da indústria e do comércio modernos, se
reconhece o caminhar apressado para a festa espectaculosa e deslumbradora que a
crítica económica aprecia severamente; porque na verdade, em obediência às leis
gerais da vida, as exposições também se diluíram, se parcelaram, se
subdividiram e se tornaram permanentes no mercado universal.
Todavia como preenchem funções
indispensáveis, as feiras subsistem onde ainda as necessidades comerciais e o
maior ou menor desenvolvimento do meio económico exigem o exercício daqueles
órgãos. No nosso país ainda há anualmente feiras duma importância considerável,
embora atenuada em comparação com períodos anteriores. Andam quase sempre
ligadas às comemorações religiosas que constituíam em antigos tempos o
calendário do povo, mnemónica tradicional de fácil uso; realizam-se por isso,
conforme as localidades e segundo os objectos especiais a que se dedicam, pelas
festas do Espírito Santo, pelo S. João, pelo S. Mateus, ou pelo S. Miguel, em
elucidativa correlação dos trabalhos da lavoura com as épocas do ano, em
enumeração cronológica ou em compreensivo registo de contratos e de
vencimentos.
Entre as feiras
actuais, a de Évora pelo S. João é ainda uma das mais importantes do país, não
obstante a diversão casual e festiva substituir já em grande parte a actividade
de transacções que outrora nela se realizavam. Feira de lãs, reguladora de
preços para a estação; feira de gado e de artigos de lavoura; enorme mercado de
utensílios domésticos e de fornecimentos caseiros; exibição característica,
pitoresca de costumes alentejanos, de aspectos de vida provincial, tão
fortemente acentuada no nosso país, e tão desastradamente comprimida pela
centralização administrativa, absorvente, niveladora, geométrica na disposição,
nos preceitos e nos processos.
A feira chama à cidade
uma concorrência extraordinária, curiosa capital das regiões de além rio, do
sul do país, como o Porto é do norte, e anima a vida normalmente concentrada,
monótona, pouco exterior das suas ruas e das suas praças, tão pouco
denunciadoras da riqueza que ela encerra ou representa. No vasto rossio
alinham-se as barracas e as fileiras abundantemente fornecidas dos diversos
objectos para venda. Ao fundo, junto da orla do arvoredo acumulam-se num ele-mêle
indescritível os carros, os animais, e os homens, onde vivem durante os dias de
feira, porque o carro alentejano com sua cobertura característica de lona
branca, para defesa das ardências do sol no estio e dos ventos gelados no
inverno, constante confirmação da ciência pelo uso, das teorias da reflexão e
da emissão do calor segundo as cores pela experiência dos séculos, o carro
serve de casa, de leito, de hospedaria volante nas longas jornadas através das
extensas charnecas da província. Mais além agrupam-se os animais para venda, as
muares e os burros, os bois e os cavalos, das raças próprias da região ou
mescladas das importadas de Espanha. Aqui lavradores entendidos, alquiladores
de profissão examinam atentamente, debatem, numa técnica de difícil compreensão
para profanos, as qualidades e os méritos duma bela parelha de muares
resistentes, ou dum cavalo do tipo Alter ou do tipo luso-andaluz na sua
variedade alentejana, elegante e graciosa à vista apesar das modificações que
tem experimentado na grossura dos membros, crinas abundantes, finas, ondeadas,
orelhas espertas, estreitas, bem plantadas na cabeça seca e longa. Acolá, sob a
tenda formada com o auxílio do carro que se transformou em loja de bebidas,
senão em casa de pasto, fecham-se transacções avultadas, contam-se maços de
notas, onde há anos se ouvia em contagem rápida o metálico som do ouro em
libras a transbordar de bolsas de couro bem providas. Lá em cima, regulam-se as
compras de lãs dos barros, avalia-se o rendimento utilizável na indústria,
separam-se as categorias de aplicação. Além, naquele terreiro, apresentam-se os
sofredores, e sóbrios burros, resignados apesar da sua teimosia, aptos para
todos os serviços de lavoura, prestáveis a todos os transportes.
Assim se vai passando em revista na vasta
feira d’Évora toda a casta de animais agrícolas e todos dos produtos que dos
montes e as herdades do distrito, e mesmo da região sul, acodem àquele
tradicional mercado, conjuntamente com os pandeiros e adufes onde em
acompanhamento monótono de reminiscências mouriscas se percute o ritmo das
canções campesinas ao S. João, dolentes e arrastadas; e destes variados
aspectos se dá ideia geral nas fotografias documentais que acompanham estas
linhas descritivas.” [in “Serões”, s/a, Revista mensal ilustrada, Vol. 1, Nº 4, Lisboa,
Julho de 1901, págs. 251-253]
3. A Etnografia e a Feira
de São João de Évora
De trabalho anterior de minha autoria,
publicado no “Diário do Sul” na edição
do dia 24 de Junho de 1997, retiro alguns excertos sobre o “São João de Évora e a Tradição”:
«…/…
Passando muito
rapidamente pela tradição etnográfica portuguesa, verificamos que as Festas de
São João constituem tradicionalmente a reminiscência de antiquíssimo rito
pagão, muito anterior ao cristianismo que, tal como muitos outros, a Igreja
assimilou à sua própria liturgia – constituem aquelas festas, na verdade, a
adaptação cristã do longínquo culto do fogo através do qual os povos primitivos
acompanhavam e celebravam a evolução solar ao longo das estações do ano. Neste
caso, assinalavam com enormes fogueiras a passagem do solstício de Verão, em
que o Sol atinge o seu máximo esplendor, e daí que o São João se celebre a 24
de Junho, com a abundância de fogueiras e folguedos à sua volta.
Podemos ler no jornal eborense “Sul”, datado de 22 de Junho de
1882:
«Diz a
tradicção que o santo popular costumava festejar o seu dia com tal
estrondo, com tão ruidosas festas, que d’ahi procediam as trovoadas, que n’essa
epocha do anno nos atormentavam os ouvidos. Deus, para pôr termo a taes
excessos, condemnou-o a dormir durante os dias 23, 24 e 25, de modo que S. João
não póde festejar o seu anniversario.
Allusivas ao somno, que a tradição
menciona, conhecemos algumas quadras:
Se
S. João bem soubera
quando
era o seu dia,
viria
do céu á terra
com
prazer e alegria.
Desperta,
João, desperta
que
já chegou o teu dia;
vem
ver como te festejam
com
prazer e alegria.
S.
João adormeceu
nas
escadinhas do côro;
deram
as freiras com elle
depenicaram-no
todo.
Embora esteja condemnado a esse somno de
tres dias, S. João não deixa de revolucionar, especialmente, as cabeças das
raparigas, que na proxima noite de sexta-feira tentam a sorte, para ver se hão
de morrer solteiras ou casadas.
Estas experimentam a alcachofra, aquellas a
gema do ovo lançada no copo da agua; umas deixam ao sereno a bacia em que
mergulharam as sortes onde estão escriptos os nomes dos mais queridos do seu
coração, outras lançam á meia noite do alto das escadas o velho sapato que, se
chega ao patamar, lhes dá a triste noticia de que hão de morrer solteiras, e, se fica parado em qualquer
degrau, lhes annuncia quantos annos hão de esperar pelo matrimonio.
A noite d’amanhã é, pois, anciosamente
esperada pelas que desejam saber se o escolhido do seu coração ainda estará
muito tempo sem lhes pertencer.
Até á meia noite, hora destinada para se
effectuarem taes crendices, reina o delirio dos bailes e dos descantes em volta
da fogueira: e, depois d’uma pequena paragem, proseguem até manhã clara, para á
noite reviver com o mesmo enthusiasmo.»
Sobre as festividades
do São João de Évora, refere-nos o Professor José Leite de Vasconcellos, por ocasião de uma sua visita à cidade,
na companhia de Gabriel Pereira no ano de 1888 [José Leite de
Vasconcellos – Ensaios Ethnographicos,
Vol.IV, Livraria Classica Editora, Lisboa, 1910, págs. 317-320]:
«(...).
Á hora marcada, no dia 23 de Junho,
embarcámos no Terreiro do Paço (...). Em breve cortavamos, no mais agradável
convivio, as agoas mansas do Tejo, para logo em seguida entrarmos no comboio do
Barreiro, que, através de extensas planicies, charnecas e vinhas, nos conduziu
sem incidente a Évora.
Das janellas do vagão avistavam-se ás vezes
na orla extrema do horizonte fogueiras a arder. Eram as manifestações populares
em honra do Precursor do Messias.
Quando os Moiros na
Moirama
Festejam a S. João,
no
dizer da trova, não admira que nas nossas populações esteja vivo o sentimento
de respeito e veneração a elle, embora esta festa não seja de origem catholica,
e se filie em velhos cultos naturalisticos: poucas festas tem mesmo
significação tão bem conhecida e estudada.
Chegámos de noite. Na estação havia
extraordinaria agglomeração de gente á espera de forasteiros que, como nós, iam
á feira de S. João. (...).
Parte da feira tinha assento diante d’este
templo [ermida
de S. Brás].
(...).
Por todos os lados se erguiam barracas de
panno com botequins improvisados, tendas de quinquilharias, lojas de dôce, - e
se ouvia algazarra enorme e confusa, em que o habitante do extremo Sul do reino
misturava a sua algaravia com as pragas rudes do calão dos Ciganos.
(...).
Depois atravessámos ruas tortas e
estreitas, apesar de uma d’ellas se denominar pomposamente Rua Ancha, passámos
debaixo de arcadas, silenciosas como claustros, e installámo-nos por fim em
casa de Gabriel Pereira(...).
Apesar de ser vespera de uma grande feira
de anno e noite de S. João, o casamenteiro das velhas e gracioso galanteador
das moças, no interior de Evora não se percebia o menor ruido (...).
A minha illusão desvaneceu-se de pressa,
porque, quando eu me preparava para dormir, começaram a passar na rua bandos de
raparigas, que cantavam ao som de adufes, em toada monotona e prolongada:
S. João perdeu a
capa
No caminho do
estudo...
Ajuntem-se as moças todas,
Façam-lhe uma de
velludo.
S. João, vós sois
ôrives,
Porque é que não
trabalhaes?
Quem me dera ser
thesôro
Do dinhêro que
gánhaes.
Esta toada, com o seu quê de mourisco,
divergia muito das do Norte e centro do reino (Porto, Beira), que são mais
alegres e mais vivas. Por fim tudo cahiu em silencio (...).
Refiramos
ainda algumas tradições curiosas recontadas por José Leite de Vasconcellos de Norte a Sul do País [José Leite de Vasconcellos,
in “Etnografia Portuguesa - Tentame de Sistematização”, Vol.VIII,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1982, págs.378-425]:
“O Sol, ao nascer, na manhã de S. João, vem a dançar... dá três
voltas... ou sete voltas...
Que festa haverá aí
tão popular como a do São João? – “‘Té os moiros da Moirama/ Festejam a S.
João.” (Do «Romanceiro» de Almeida Garrett).
A noite de São João é
a noite das fantasias e do amor: as feiticeiras vão na casquinha de um ovo para
a Índia; as mouras encantadas saem dos penedos e das fontes, e estendem os seus
tesouros por sobre a relva verde à luz da lua...
Tudo nessa noite é
reboliço e vida, tudo é juventude e amor...
Ao saltarem as
fogueiras, nove vezes, com um ramo na mão, diz-se: – “Viva São João/Nosso
Senhor nos dê muito pão!”, ou, saltam as moças nove vezes a fogueira e dizem de
cada vez: – “Em louvor de São João/Que me dê um homem rijo e são!”, e ainda,
pega-se numa bacia com água muito clara, passa-se nove vezes sobre a fogueira e
depois miram-se na água; se virem a cara, chegam ao resto do ano, se não, não.
Pelo São João as moças
saberiam o nome do futuro marido... queimavam alcachofras e ervas pincheiras ou
deitavam ovos em água para saberem o futuro...
Por outro lado, as
moiras encantadas aparecem cá fora, saídas das fontes e das grutas, são
espíritos das Naturezas, despertados em época tão santa e especial - quando os
frutos começam a aparecer.”
Rocha Peixoto, outro eminente etnógrafo português, vê na crença das
mouras encantadas, que nesta noite aparecem associadas à água a mostrarem
tesouros escondidos, persistências da “simbólica
do Sol renascendo da Terra e triunfando do Inverno; encanto: a luz dominada
pela sombra; meadas de ouro: a vitória plena da luz.” [Rocha Peixoto, in “Etnografia
Portuguesa”, Col.’Portugal de Perto’, nº20, Publicações Dom Quixote, Lisboa,
1990, págs.57-64].
…/…».
4. A Tradição do São
João
As
festividades de São João Baptista e de S. João Evangelista, respectivamente a
24 Junho e a 27 de Dezembro são coincidentes com os solstícios. Assim,
periodicamente, somos levados a reflectir na importância simbólica e espiritual
do fenómeno solsticial, inserido este no período de um ano e directamente
relacionado com o posicionamento do Sol face à Terra, ou vice-versa. Com
efeito, no Solstício de Inverno inicia-se a fase ascendente do ciclo anual;
marcando o Solstício de Verão o início da fase ascendente. No simbolismo
greco-romano têm o nome de portas
solsticiais e são representadas pelas duas faces de Janus, que por sua vez, deram origem aos dois São João, de Inverno
e de Verão. A porta invernal introduz
a fase luminosa do ciclo enquanto que a porta
estival está relacionada com o, a partir desse momento, progressivo
obscurecimento.
Realidade
Natural que se faz sentir com toda a certeza desde os primórdios da Criação,
foi contudo aproveitada pelos Homens Sages para fazer transportar para as
vivências da Humanidade outras Realidades, qualitativamente superiores, estas
de cariz mais Espiritual e ligadas às tradições dos Mistérios.
Nada
melhor que o simbolismo de Janus – o deus
das duas caras – para que pudesse ser transmitido aos homens o conceito de princípio permanente, pois que, este
deus de cara dupla simbolizava o Uno Imanifestado que ligava o passado e o
futuro no Único e Eterno Presente.
Os
antigos iniciados dos Mistérios
romanos faziam representar Janus com
duas caras, uma, jovem, simbolizando o ano crescente, a outra, velha, símbolo
do ano moribundo. Contudo, porque símbolo do Sol, Janus não passava de uma realidade virtual, pois a Realidade
Última, perene e inefável, teria que ser apreendida para além da manifestação
dualística e exterior.
As
festas ritualísticas dos dois São João, como em certa medida toda a celebração
litúrgica, repousam pois sobre o seguinte postulado: o tempo cósmico e humano
está sujeito à regeneração perene, sendo este vai-vem rítmico dos solstícios
como que uma imagem e um reflexo sensível e natural desta lei universal.
Muito
mais se poderia dizer e especular e argumentar, sobre as diferentes iniciações
mistéricas, perante as diversas culturas e épocas, sobre superstições e
realidades, sobre costumes bizarros e cultos atávicos, contudo, gostaria tão só
referir alguns conceitos e realidades energéticas, porque ao meditá-los sinto a
possibilidade de transformação de mim próprio, via um autoconhecimento que se
pretende cada vez mais profundo.
O
SOL, a primeira realidade fundamental e elemento chave das Festas de S. João. Os
solstícios são dois momentos cruciais no Ciclo da Natureza e do Ano. Realidades
ligadas à transformação, à purificação, à mudança, ao crescimento e à colheita,
à luz que combate as trevas - física, psicológica e espiritualmente. Manifestação
de Arquétipo Universal.
O
FOGO, realidade ligada desde o primeiro momento com a criação, a manutenção da
Vida e a Iniciação aos Mistérios da Humanidade. Associada à Terceira Pessoa da
Trindade da Tradição Cristã - o Espírito Santo, mas indissociável a esta
Tradição está também o Cristo e o Baptismo pelo Fogo. Manifestação de Arquétipo.
A
FESTA, novamente a Iniciação aos Mistérios. A importância da dramatização dos
Rituais. A Consagração do Sol, do Fogo, da Natureza, do Cristo - enquanto
Realidades Cósmicas. Vêm também as
Fogueiras, a Magia Naturalista das Mouras e das Fontes, os Encantamentos e a
Adivinhação, a Poesia, a Aldeia e o Paganismo. Manifestações de Arquétipos.
Espiritualmente,
todas as Realidades Arquetípicas, quando vividas com autenticidade, amor,
tolerância, são Verdadeiras.
A cadeia do
saber mistérico, iniciático e tradicional, encontra-se mergulhada nos
arquétipos eterno presente. O princípio e o fim fundindo-se e transmutando-se
na alquimia da Vida, numa génese única do Ser. A Egrégora Eterna…. A Iniciação
Solar... Tão bem transmutada e transmitida através do simbolismo perene de São
João e das suas festividades milenares.
Tenhamos
então e em conta as palavras de Mestre Jesus, chegadas até nós pela palavra de
S. João Evangelista no Evangelho Segundo
São João, XV,12-17, essência última da mensagem mais profunda da Religião
Cristã:
«Este é o meu
mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior
amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos. Vós sois meus amigos, se
fizerdes o que eu vos ordenei. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe
o que faz o seu senhor: chamei-vos amigos, porque vos manifestei tudo o que
ouvi de meu Pai. Não fostes vós que escolhestes a mim; fui eu que escolhi a vós
e vos constituí, para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja
duradouro, a fim de que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo
conceda. Isto eu vos ordeno: que vos ameis uns aos outros.»
PAX
PROFUNDA
Rui
Arimateia
rui.arimateia@gmail.com
Évora,
Junho de 2013
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