sábado, 15 de junho de 2013

IN MEMORIAM TÚLIO ESPANCA – ÉVORA, MAIO DE 2013


Fez no dia 3 de Maio vinte anos que Túlio Espanca deixou fisicamente de conviver connosco. Contudo, a sua Obra e a sua Presença por esta Évora nos alvores do III Milénio, perdura.

Por outro lado, comemorou-se a 8 de Maio o Centenário do seu Nascimento.

Para quem com ele conviveu de perto, a sua memória continua viva.

Para falar um pouco sobre Túlio Espanca, para o apresentar às gerações mais novas e que não tiveram o privilégio de privar com ele, não basta dizer para lerem a sua imensa Obra escrita! É importante falar sobre a sua própria pessoa: sobre a sua postura inconfundível, o seu sorriso, o seu olhar, a sua disponibilidade em ensinar sobre a História de Évora e do Alentejo. Importa falar da sua sensibilidade artística e humana. Falar da sua capacidade de encantar através da palavra e da escrita. Encantar o cidadão comum pela oralidade, assim como encantar o erudito pela sua escrita competente e rebuscada.

Mas afinal quem era Túlio Espanca? Como se formou? Quem o formou? De onde, de que, para quê e para quem falava e escrevia? A quem se dirigia?

São questões que, em parte, todos quantos o conheceram de perto saberão responder. Contudo estão ainda por desocultar muitas facetas daquele que foi, por excelência, o inventariador da História da Arte do Alentejo

Túlio Espanca, se ainda estivesse fisicamente entre nós teria completado no passado dia 8 de Maio 100 anos de idade. O que quer dizer que, durante praticamente os seus oitenta anos de vida atravessou e viveu diferentes tempos históricos, culturais e sociais por que passou a Sociedade Portuguesa. Formou a sua personalidade base durante os conturbados tempos dos finais da 1.ª República. Viveu os dramáticos tempos das duas Guerras Mundiais. Desenvolveu a sua formação intelectual durante todo o período do Estado Novo. Não era, importa dizer, um simpatizante do antigo regime de Salazar, embora parte significativa da sua obra se tivesse desenvolvido nesses tempos difíceis para um homem da sua sensibilidade e postura perante a vida e a sociedade. Viveu intensamente o dia 25 de Abril de 1974, com o reaparecimento da Democracia e da Liberdade em Portugal.

Em Julho de 1940, Túlio Espanca foi nomeado «cicerone» da Comissão Municipal de Turismo de Évora, tinha sido o melhor classificado no curso de «cicerones» organizado no ano anterior pelo Grupo Pro-Évora. A partir desta altura, a presença de Túlio Espanca era praticamente obrigatória em qualquer visita à Cidade de Évora. Não só de eminentes personalidades visitantes da Cidade, como por exemplo, a da Rainha Mãe da Bélgica em Janeiro de 1947, e a do Presidente da República General Francisco Higino Craveiro Lopes a 29 de Junho de 1952.

Em Janeiro de 1943, Túlio Espanca acompanhou, numa visita à Sé e ao Museu Regional, o Director do Museu de Arte Antiga, Dr. João Couto. Anos mais tarde, a 15 de Maio de 1948, e por iniciativa deste, foi lida na Academia Nacional de Belas Artes em Lisboa um trabalho de Túlio Espanca intitulado “Pintores em Évora nos Séculos XVI e XVII”, sendo posteriormente publicado no Boletim “A Cidade de Évora” n.º 15-16 do mesmo ano. Este trabalho e a publicação regular do Boletim “A Cidade de Évora” – de que foi Editor deste o primeiro número até à data da sua morte – foi causa de notoriedade por parte de importantes personalidades ligadas à História e à Arte e que anos mais tarde culminaria com o convite a Túlio Espanca para ser o compilador e organizador dos Inventários Artísticos do Concelho e Distrito de Évora e, já nos anos 80 do Distrito de Beja.

Já nos anos 60, e por proposta do Arquitecto Raul David, Presidente da Comissão Municipal de Turismo, em sessão de Câmara de 1 de Outubro de 1964, organizou-se um ciclo de Visitas Guiadas aos principais monumentos artísticos da cidade e do seu aro suburbano, orientado pelo crítico de arte Túlio Espanca. Este Ciclo de Visitas Guiadas teve uma periodicidade anual praticamente até aos finais dos anos 80, com algumas interrupções, mas sempre muito concorrido por gentes de toda a condição social e intelectual, que acorriam para melhor conhecerem a Cidade através dos olhos e da palavra de Mestre Espanca.

          Túlio Espanca foi um erudito local que teve dois grandes enquadramentos institucionais ao longo da sua carreira: o Grupo Pro-Évora e a Câmara Municipal de Évora, nomeadamente a Comissão Municipal de Turismo, tendo sempre como pano de fundo a investigação sobre Évora e sobre o Alentejo.

Haverá que continuar a estudar e a trabalhar a personalidade e a Obra de Túlio Espanca, figura ímpar da nossa Memória e da nossa História, responsável pela desocultação e posterior publicação e divulgação de incontáveis documentos, de factos históricos, de memórias há muito esquecidas, verdadeiro operário da escrita e co-responsável pela preservação da Cidade de Évora, das suas ambiências histórico-culturais, a par com o Grupo Pro-Évora e com o Município Eborense, cujo corolário foi a Classificação de Évora como Património Mundial pela UNESCO em 25 de Novembro de 1986.

Mas, falemos um pouco mais desta extraordinária personagem.

Túlio Espanca foi uma personalidade ilustríssima da Cultura e da História portuguesas do Século XX,  Túlio Espanca nasceu em Vila Viçosa no dia 8 de Maio de 1913. Vem aos sete anos viver para a Cidade de Évora, que adoptou e pela qual foi adoptado, transformando-se, por assim dizer, no mais cidadão dos cidadãos eborenses.

Homem dos sete ofícios, foi operário corticeiro na Rua das Alcaçarias, foi aprendiz de chapeleiro à Porta Nova, foi aprendiz e mestre de barbeiro na Rua de Aviz e na Praça do Giraldo, foi militar voluntário, foi desenhador durante o tempo da tropa, foi músico na Academia dos Amadores de Música Eborense, foi cicerone dos monumentos de Évora da Comissão Municipal de Turismo, foi historiador – historiógrafo, como ele se apressava a corrigir – foi, enfim o comunicador nato que todos quantos privaram com ele poderão ainda recordar e testemunhar com saudade e alguma nostalgia.

Ninguém como o Senhor Espanca, como nos acostumámos a tratá-lo, sabia sobre Évora e os seus monumentos, sobre as suas gentes e as suas histórias.
           Como exemplo deste seu conhecimento quase enciclopédico sobre Évora, passo a referir uma descrição que, na Conta-Corrente, faz Vergílio Ferreira sobre um episódio passado em Évora, acerca da erudição famosa de Túlio Espanca:
 
            «(...). Há lá em Évora o Sr. Espanca, homem erudito das coisas eborenses que jamais deixou sem resposta uma pergunta que lhe fizéssemos. Um dia, li na Fénix Renascida (4 volumes) do século XVII uma referência aos excelentes vinhos de Évora. Como no meu tempo não havia lá vinhos, caí na imprudência de falar no caso ao Sr. Espanca. O que eu fui dizer. Inundou-me de tal forma sobre os vinhos que ali houve outrora, que ao fim da explicação eu já me sentia quase bêbado. A gente interrogava-o sobre uma pedra mais destacada de uma rua ou viela e ele tinha logo uma informação abundante que metia reis e batalhas e servidores subalternos em torno da pedra em questão. Nós sonhámos o sonho impossível de o encavacarmos com uma pergunta impertinente a que não soubesse responder. Até que um dia o Infante lhe pôs esta questão:
            – Senhor Espanca: qual é a diferença entre as arruelas e os besantes?
            - São duas rodelas, dizia, absolutamente iguais com o feitio de queijinhos de cabra. Espanca encordoou. Não sabia. Foi um dia glorioso para nós. Espanca, afinal, não era em tudo divino. Tinha as suas ignorâncias mortais.»
 
[in VERGÍLIO FERREIRA – conta-corrente 3, Livraria Bertrand, Lisboa,1983 (passagem referente ao ano de 1981 15 de Março (domingo), às págs.277-278).]

           Folheemos as suas obras e lá veremos referências à Sé e ao Templo Romano, ao Museu e aos Conventos, às Igrejas e Ermidas, aos Palácios e às Casas Senhoriais assim como aos seus recheios artísticos, às Ruas e à Toponímia, mas também aos episódios pitorescos acontecidos ao longo dos anos, descritos nas centenas e centenas de obras e de documentos que ao longo da sua vida consultou, leu e releu, que editou – os Inventários Artísticos de Évora e de Beja, o Boletim "A Cidade de Évora", os "Cadernos de História e Arte Eborense", etc.

 A extensa obra escrita que nos legou é qualquer coisa de fenomenal, de grandioso. Recordemos que as habilitações literárias de base de Túlio Espanca ficavam-se pela antiga 4ª Classe da Instrução Primária do seu tempo de menino. Mas, que lições ele dava a professores universitários que amiúde passavam por Évora aquando das suas pesquisas sobre a História da Arte ou sobre a História de Portugal.
           Como testemunhos registados deste facto atentemos às palavras de Santos Simões num artigo publicado no Boletim “A Cidade de Évora”, sob o título “Alguns Azulejos de Évora”, onde, a certa altura refere, no texto inicial de apresentação do artigo:

«(...).
           Antes de passar à frialdade descritiva desejo patentear aqui o meu mais sincero reconhecimento pelo valioso concurso recebido da Comissão Municipal de Turismo de Évora para a minha investigação, muito principalmente aos Ex.mos Snr. Dr. António Bartolomeu Gromicho – cujo amável acolhimento foi o principal incentivo para o prosseguimento do trabalho – e Snr. Túlio Espanca, companheiro constante e competentissimo piloto nêsse  mare magnum que é a Cidade de Évora.
            Tomar, Outubro  1943.
            João dos Santos Simões»

          [in  «A Cidade de Évora», n.º5, Dezembro de 1943 (pág.4).]

          Recordemos, pela sua singularidade e grande importância cultural, as celebérrimas Visitas Guiadas, realizadas durante décadas aos sábados de tarde, a que ocorriam incontáveis interessados e curiosos, eborenses e não só, que iam literalmente beber as palavras de Mestre Espanca: desde a dona de casa ao senhor professor do liceu, desde o estudante até ao funcionário público…, todos escutávamos com enlevo as vividas descrições do assalto ao castelo de Évora durante a crise de 1383-85, ou então outras descrições que sobre o mesmo período Fernão Lopes nos deixou nas suas Crónicas e que Mestre Espanca tão bem enquadrava e citava, de cor, ou então as vindas da Corte, dos Infantes e da Nobreza para Évora e da sua permanência, ou então falava-nos daquele pormenor da pequena imagem de um Menino Jesus que teria sido oferecido ao Convento do Paraíso por uma dama da alta nobreza que... e ia por aí fora e o tempo passava e passava e quase não dávamos por ele passar, ficava tão só a voz de Espanca e Évora e mais Évora, e História  e Arte...

A propósito das Visitas Guiadas à cidade podemos ler no semanário “A Defesa”, na sua edição de 31 de Maio de 1947, à pág. 4, no artigo de actualidade “Vida Civil – III Curso de Cicerones Eborenses”:

          «(...).
            A lição de amanhã será dada sobre os Loios, S. Antão, Santa Clara e Mercês, pelo sr. Túlio Espanca, informador oficial da Comissão de Turismo e primeiro diplomado do I Curso de Cicerones Eborenses. (...).»

          E, sobre o mesmo assunto, no jornal local diário “Notícias d’Évora”, de 3 de Junho do mesmo ano, à pág.1, inserido no artigo intitulado “III Curso de Cicerones Eborenses”:

            «(...).
            Continuando esta iniciativa do Grupo Pró-Évora, realisou se, no passado domingo, dia 1, a sua 5.ª lição.

Pelas 15 horas, cerca de 60 pessoas, reunidas no adro da Igreja de S. João Evangelista (Loios), visitaram este monumento, acompanhadas pelo sr. Tulio Espanca, que lhes ia fornecendo as necessárias e curiosas explicações.

Percorridas as dependências e o claustro do antigo convento, os assistentes deslocaram se depois, á Igreja de St.º Antão, longamente pormenorizada e admirada.

Seguiram-se as antigas igrejas de Santa Clara e das Mercês, terminando a lição junto do Palácio de D. Manuel, no Jardim Público.

Todos os presentes se confessaram encantados, com o que, de curioso e interessante, lhes fora dado a admirar, nesta larga visita de estudo e prazer espiritual, pela arte e valores que a revestiram de princípio ao fim, uma profusão de apontamentos em datas e referências históricas, reveladoras do profundo conhecimento, saber e competência do sr. Túlio Espanca.
           (...).»

          Túlio Espanca esteve ligado, desde a sua génese, aos famosos ciclos de visitas guiadas á cidade, foi ele o garante da continuidade das visitas que chegaram até aos anos 80, com uma frescura e uma eloquência que  a todos encantava e a todos instruía de modo exemplar.

A própria edilidade recebeu no seu quadro de funcionários Túlio Espanca, compreendendo na altura o importante papel cívico e educativo que representava esta iniciativa, instituindo os ciclos de visitas guiadas pelo historiógrafo, conforme se pode confirmar por notícia impressa no Boletim Oficial da Comissão Municipal de Turismo “A Cidade de Évora”, n.º 47, às págs. 227-228 e intitulado “As Visitas Guiadas e a Cidade de Évora”:

         «(...).
Segundo proposta do arquitecto Raul David, Presidente da Comissão de Turismo, em sessão camarária de 1 de Outubro de 1964, imediatamente patrocinada pela edilidade Municipal de Évora, realizou-se, com início em Outubro de 1964 e conclusão em Junho de ano seguinte, um curso livre de história local, constituído por um ciclo de 26 Visitas Guiadas aos principais monumentos artísticos da cidade e do seu aro suburbano, que foi orientado pelo crítico de Arte Túlio Espanca.»

        Poderá muito justamente dizer-se que Túlio Espanca foi o Autor que mais contribuiu para a divulgação do Património Cultural de Évora e do Alentejo, e consequentemente para a Classificação desta Cidade como Património Mundial, pela UNESCO, em 25 de Novembro de 1986.

       A par de ilustres figuras tais como Joaquim Augusto Câmara Manuel, Armando Nobre de Gusmão, Jerónimo de Alcântara Guerreiro, Júlio César Baptista, José Filipe Mendeiros, Mário Tavares Chicó, João António Rosa, Manuel Carvalho Moniz, António Silva Godinho, Celestino David, Henrique da Silva Louro, António Bartolomeu Gromicho e muitos outros que seria fastidioso citar, Túlio Espanca destacou-se como sendo um erudito local, seu contemporâneo, e que desempenhou um papel fundamental na procura e na caracterização de uma imagem para Évora e para o Alentejo, nomeadamente a partir dos anos de 1940, altura em que inicia o trabalho como guia intérprete na Comissão Municipal de Turismo, e altura em que trabalha os Arquivos Históricos da Câmara Municipal de Évora, realizando um hercúleo trabalho de sistematização, leitura e inventariação de documentos históricos que lhe viriam a permitir compreender e trabalhar na sua globalidade a História da Cidade.

Refere-se-lhe o Prof. Dr. Vítor Serrão:

«Túlio Espanca foi um dos grandes historiadores da arte portuguesa de sempre, o nosso mais acertado inventariante do acervo patrimonial, e grande homem dos valores do espírito e da cultura viva.»
          [in “A Cidade de Évora”, II Série, N.º1, 1994-95, pág. 39.]

 Contudo o seu interesse pela História e pela Arte aparece muito cedo, nomeadamente através da influência de seu tio paterno João Maria Espanca, negociador de antiguidades em Vila Viçosa e que frequentemente lhe emprestaria livros sobretudo de Arte e de História.

         Como já atrás foi dito, o interesse de Túlio Espanca pela História e Arte Eborenses não se inicia com a sua frequência do I Curso de Cicerones organizado pelo Grupo Pro-Évora no ano de 1939.

Túlio Espanca deixou-nos uma colecção de memórias manuscritas, assim como um conjunto de criações literárias da época da sua juventude, escritas entre os finais dos anos 20 e os anos 40, altura em que iniciou a sua actividade profissional como Guia Intérprete da Comissão Municipal de Turismo.     

Temos notícia dele próprio “editar” originais, manuscritos e desenhados, que partilhava com os amigos e camaradas de brincadeiras e aventuras, onde o texto e os desenhos se articulavam com um estilo dinâmico e revelador de leituras que exigiam uma preocupação não meramente de passatempo mas de instrução e aprendizagem.

Túlio Espanca deixou escrito nos seus "Diários", importantes referências para conhecermos o ambiente sociocultural de Évora da primeira metade do século XX. Refiramos a existência de diversos cadernos datados entre 1930 e 1940, onde nos descreve as suas aventuras juvenis; onde nos faz descrições de Évora e dos seus monumentos; onde nos apresenta em traços vividos as principais manifestações cívicas, públicas, militares e políticas do seu tempo. Faz-nos igualmente o retracto das suas relações familiares; dos seus namoricos; dos desportos e jogos que praticava; das suas viagens; descreve-nos os cinemas e os teatros, as festas e as romarias que presenciava e frequentava; fala-nos da sua vida como militar voluntário e como músico amador na Escola dos Amadores de Música Eborense. Tempos de intensa relação de sociabilidade.

Interessante será termos em conta algumas passagens dos escritos que Túlio Espanca nos deixou nos seus “Diários”:

 A 22 de Julho de 1931, durante a sua passagem pelo Serviço Militar, como voluntário, refere: «Estive a terças (leite) o que me poz em maior estado de debilidade. Deram entrada na mesma enfermaria dois doentes do meu regimento. / Sob a dolorosa estadia neste execrando hospital escrevi uma curta narrativa mais realista e empolgante do que socialmente verídica; encontrando-se incluída na Cartuxa Silenciosa ou Misterios dum Convento...»  
 
Apontamentos referentes aos dias 26 e 28 de Maio de 1935, aquando de umas festas realizadas na Escola Primária de S. Mamede: «Evocar páginas de S. Mamede, é sentir a nostalgia aguda da saudade invadir o meu coração e minh’alma. / Amo tanto as lembranças infantis que vertiginosas perpassam em cavalgadas de sonho ante a minha memoria... hó amo tanto a época inegualável da Escola!.»  Túlio Espanca foi extremamente motivado pelos seus tempos de Escola, daí que nunca tenha deixado de escrever, de ler, de exercitar a palavra escrita até ao extremo de, nos primeiros cadernos dos seus “Diários”, ele escrever uma primeira passagem a lápis e posteriormente passar todo o texto a tinta, e são centenas de páginas manuscritas.
 
No dia 16 de Dezembro de 1935, a propósito das suas influências literárias, Túlio Espanca escreve: «Muito jovem ainda, naquéla infancia que as leituras romanêscas de Conan-Coyle, Arnoud Galopim ou Michél Zévaco,  nos prendem completamente, nos ofuscam os sentidos e o nosso maior prazêr é antegosar a imitação dos heróis semi-deuses d’aquelas obras, tentei rivalizar Passavant, Francinett ou Sherlok Holmes, realisando apuradas peregrinações sob aguaceiros medonhos, incursões nocturnas em locais perigosissimos, penetrações em Conventos, egrejas, fortes, escaladas arriscadas e lutas titanicas para o triunfo coroar de glória a missão que propuzéra cumprir. /  Almas românticas existem poucas e, eu, sonhador plumitico [quereria Túlio Espanca dizer platónico?], adorador coerente do bélo, da virtude, da natureza inteira, como protésto de dedicação amiga, aos leais companheiros que me auxiliaram nesta historia salutar e culta “o têrmo será ambiguo, contudo é a expressão pura da verdade”, aqui lhes deixo tributado o meu reconhecimento.
                                                    Túlio Espanca»
 
Finalmente, uma última referência, que pela sua singularidade vale a pena anotar, de Novembro de 1930, escreve Túlio Espanca no seu Diário: «DIA 23. Das duas horas em deante, eu, José Fontes e Socrates, andamos vesitando uma parte da cidade nobre, como as edificações romanas do roqueiro palacio dos Bastos; o portico renascença adaptado ao ‘Conventinho’; a entrada do patio de S. Miguel, com as trese arruelas brasonadas; a profanada ermida dos ‘Cavaleiros d’Evora’; as traseiras da admiravel catedral, com a testeira da ábside em marmore, aquitectada pelo prussiano J. F. Luduvicius, no pomposo reinado de D. João V; a sugestionante frontespício da universidade henriquina, rodeada de claustros marmoreos; as vetustas ruelas da idade-media que se mostram timidas e romanticas; acompanhando-mos depois, a estrada de circunvalação, até o Rossio, ao local que antigamente denominavam do ‘Outeiro da Corredoura’. Aí, em casas novas, mas já velhas pela miseria expoente do sofrimento, da egnomia, exprime-se o caracter dos extigmas da desolação. Barracas entelhadas com velhas latas, ocultam o interior, duma luta simbolica dos miseros que vivem á margem da vida. Farrapos imundos, encobrem a nudes descarnada de mulheres mendigas, no tudismo da escoria, na união das almas. Aí morre-se egnobilmente, atrosmente, enquanto que, a verdadeira cidade dos monumentos, se bamboleia arrogante, na admiração dos forasteiros, que só isso vêem e nada mais!.»

 Ao ouvir-se ler este texto parece que o achamos em contradição com o que nos habituámos a ouvir a Túlio Espanca nas suas conferências, palestras, visitas de estudo aos e sobre os monumentos de Évora. Sente-se uma escrita de revolta e simultaneamente de denúncia, descrevendo, por assim dizer, uma imagem negra de Évora. Olhando não só o monumento mas olhando e mostrando preocupação por uma situação de injustiça social.

         É este aspecto humano que reencontramos, ao longo das leituras dos diários e memórias manuscritos, o saudoso e amigo Túlio Espanca.

         São depoimentos escritos por um jovem, na altura dos escritos com a idade compreendida entre os 17 e os 22 anos, possuidor de reduzidíssimos estudos académicos, demonstra um aturado trabalho de leituras e de um exercício da escrita. É extremamente interessante acompanhar a evolução da linguagem escrita do autor, de ano para ano, vendo nós a progressiva complexificação do pensamento e da escrita a par de um gradual desaparecimento de erros ortográficos e de palavras inventadas e por vezes sem nexo.

         Em 1990, como corolário de toda uma investigação e publicação de índole científica, finalmente Túlio Espanca é reconhecido pelas hierarquias académicas e o Senado da Universidade de Évora confere-lhe o título de Doutor Honoris Causa  no dia 31 de Outubro, anteriormente os seus dotes de investigador tinham sido já reconhecidos pela Academia Portuguesa da História, pela Fundação F.V.S. de Hamburgo (Prémio Europeu da Conservação dos Monumentos Históricos, em Maio de 1982),  pela Academia Nacional de Belas Artes (atribuição da Medalha de Mérito em Dezembro de 1982), pela Câmara Municipal de Évora (atribuição da Medalha de Ouro da Cidade em Novembro de 1982) e pela Presidência da República Portuguesa (atribuição do Grau de Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da  Espada em Novembro de 1982).
 
           Olhando a sua extensíssima obra percebemos que a palavra escrita é um continuum na vida de Túlio Espanca.

A palavra escrita ordena, memoriza e expressa o pensamento. Túlio Espanca modelou o seu próprio pensamento, orientando-o para as temáticas do seu interesse – a História da Arte, Évora e o Alentejo –, escrevendo as memórias do seu quotidiano. Através da escrita tentou compreender e dominar a realidade que o cercava. Através da escrita tomou consciência da própria realidade, registando-a e simultaneamente transformando-a. Com esta prática tornou-se aquilo que sempre disse que era, assumidamente: historiógrafo.
 
Recordar Túlio Espanca é dar-lhe vida. Ler a sua Obra é preservar uma Memória que pertence a todos nós eborenses e amantes da História de Évora e do Alentejo.
  
         Mestre Túlio Espanca, obrigado e... até Sempre!

                                                                                             Rui Arimateia
                                                                                                                      Évora,  Maio de 2013.

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