Fez
no dia 3 de Maio vinte anos que Túlio Espanca deixou fisicamente de conviver
connosco. Contudo, a sua Obra e a sua Presença por esta Évora nos alvores do
III Milénio, perdura.
Por
outro lado, comemorou-se a 8 de Maio o Centenário do seu Nascimento.
Para
quem com ele conviveu de perto, a sua memória continua viva.
Para
falar um pouco sobre Túlio Espanca, para o apresentar às gerações mais novas e
que não tiveram o privilégio de privar com ele, não basta dizer para lerem a
sua imensa Obra escrita! É importante falar sobre a sua própria pessoa: sobre a
sua postura inconfundível, o seu sorriso, o seu olhar, a sua disponibilidade em
ensinar sobre a História de Évora e do Alentejo. Importa falar da sua
sensibilidade artística e humana. Falar da sua capacidade de encantar através
da palavra e da escrita. Encantar o cidadão comum pela oralidade, assim como
encantar o erudito pela sua escrita competente e rebuscada.
Mas
afinal quem era Túlio Espanca? Como se formou? Quem o formou? De onde, de que,
para quê e para quem falava e escrevia? A quem se dirigia?
São
questões que, em parte, todos quantos o conheceram de perto saberão responder.
Contudo estão ainda por desocultar muitas facetas daquele que foi, por
excelência, o inventariador da História da Arte do Alentejo
Túlio
Espanca, se ainda estivesse fisicamente entre nós teria completado no passado
dia 8 de Maio 100 anos de idade. O que quer dizer que, durante praticamente os
seus oitenta anos de vida atravessou e viveu diferentes tempos históricos,
culturais e sociais por que passou a Sociedade Portuguesa. Formou a sua
personalidade base durante os conturbados tempos dos finais da 1.ª República.
Viveu os dramáticos tempos das duas Guerras Mundiais. Desenvolveu a sua formação
intelectual durante todo o período do Estado Novo. Não era, importa dizer, um
simpatizante do antigo regime de Salazar, embora parte significativa da sua
obra se tivesse desenvolvido nesses tempos difíceis para um homem da sua
sensibilidade e postura perante a vida e a sociedade. Viveu intensamente o dia
25 de Abril de 1974, com o reaparecimento da Democracia e da Liberdade em
Portugal.
Em
Julho de 1940, Túlio Espanca foi nomeado «cicerone» da Comissão Municipal de
Turismo de Évora, tinha sido o melhor classificado no curso de «cicerones»
organizado no ano anterior pelo Grupo Pro-Évora. A partir desta altura, a
presença de Túlio Espanca era praticamente obrigatória em qualquer visita à
Cidade de Évora. Não só de eminentes personalidades visitantes da Cidade, como
por exemplo, a da Rainha Mãe da Bélgica em Janeiro de 1947, e a do Presidente
da República General Francisco Higino Craveiro Lopes a 29 de Junho de 1952.
Em
Janeiro de 1943, Túlio Espanca acompanhou, numa visita à Sé e ao Museu
Regional, o Director do Museu de Arte Antiga, Dr. João Couto. Anos mais tarde,
a 15 de Maio de 1948, e por iniciativa deste, foi lida na Academia Nacional de
Belas Artes em Lisboa um trabalho de Túlio Espanca intitulado “Pintores em
Évora nos Séculos XVI e XVII”, sendo posteriormente publicado no Boletim “A
Cidade de Évora” n.º 15-16 do mesmo ano. Este trabalho e a publicação regular
do Boletim “A Cidade de Évora” – de que foi Editor deste o primeiro número até
à data da sua morte – foi causa de notoriedade por parte de importantes
personalidades ligadas à História e à Arte e que anos mais tarde culminaria com
o convite a Túlio Espanca para ser o compilador e organizador dos Inventários
Artísticos do Concelho e Distrito de Évora e, já nos anos 80 do Distrito de
Beja.
Já
nos anos 60, e por proposta do Arquitecto Raul David, Presidente da Comissão
Municipal de Turismo, em sessão de Câmara de 1 de Outubro de 1964, organizou-se
um ciclo de Visitas Guiadas aos principais monumentos artísticos da cidade e do
seu aro suburbano, orientado pelo crítico de arte Túlio Espanca. Este Ciclo de
Visitas Guiadas teve uma periodicidade anual praticamente até aos finais dos
anos 80, com algumas interrupções, mas sempre muito concorrido por gentes de
toda a condição social e intelectual, que acorriam para melhor conhecerem a
Cidade através dos olhos e da palavra de Mestre Espanca.
Túlio Espanca foi um
erudito local que teve dois grandes enquadramentos institucionais ao longo da
sua carreira: o Grupo Pro-Évora e a Câmara Municipal de Évora, nomeadamente a
Comissão Municipal de Turismo, tendo sempre como pano de fundo a investigação
sobre Évora e sobre o Alentejo.
Haverá
que continuar a estudar e a trabalhar a personalidade e a Obra de Túlio
Espanca, figura ímpar da nossa Memória e da nossa História, responsável pela
desocultação e posterior publicação e divulgação de incontáveis documentos, de
factos históricos, de memórias há muito esquecidas, verdadeiro operário da
escrita e co-responsável pela preservação da Cidade de Évora, das suas
ambiências histórico-culturais, a par com o Grupo Pro-Évora e com o Município
Eborense, cujo corolário foi a Classificação de Évora como Património Mundial
pela UNESCO em 25 de Novembro de 1986.
Mas,
falemos um pouco mais desta extraordinária personagem.
Túlio
Espanca foi uma personalidade ilustríssima da Cultura e da História portuguesas
do Século XX, Túlio Espanca nasceu em
Vila Viçosa no dia 8 de Maio de 1913. Vem aos sete anos viver para a Cidade de
Évora, que adoptou e pela qual foi adoptado, transformando-se, por assim dizer,
no mais cidadão dos cidadãos eborenses.
Homem
dos sete ofícios, foi operário corticeiro na Rua das Alcaçarias, foi aprendiz
de chapeleiro à Porta Nova, foi aprendiz e mestre de barbeiro na Rua de Aviz e
na Praça do Giraldo, foi militar voluntário, foi desenhador durante o tempo da
tropa, foi músico na Academia dos Amadores de Música Eborense, foi cicerone dos
monumentos de Évora da Comissão Municipal de Turismo, foi historiador –
historiógrafo, como ele se apressava a corrigir – foi, enfim o comunicador nato
que todos quantos privaram com ele poderão ainda recordar e testemunhar com
saudade e alguma nostalgia.
Ninguém
como o Senhor Espanca, como nos acostumámos a tratá-lo, sabia sobre Évora e os
seus monumentos, sobre as suas gentes e as suas histórias.
Como
exemplo deste seu conhecimento quase enciclopédico sobre Évora, passo a referir
uma descrição que, na Conta-Corrente, faz Vergílio Ferreira sobre um
episódio passado em Évora, acerca da erudição famosa de Túlio Espanca:
«(...).
Há lá em Évora o Sr. Espanca, homem erudito das coisas eborenses que jamais
deixou sem resposta uma pergunta que lhe fizéssemos. Um dia, li na Fénix
Renascida (4 volumes) do século XVII uma referência aos excelentes vinhos de
Évora. Como no meu tempo não havia lá vinhos, caí na imprudência de falar no
caso ao Sr. Espanca. O que eu fui dizer. Inundou-me de tal forma sobre os
vinhos que ali houve outrora, que ao fim da explicação eu já me sentia quase
bêbado. A gente interrogava-o sobre uma pedra mais destacada de uma rua ou
viela e ele tinha logo uma informação abundante que metia reis e batalhas e
servidores subalternos em torno da pedra em questão. Nós sonhámos o sonho
impossível de o encavacarmos com uma pergunta impertinente a que não soubesse
responder. Até que um dia o Infante lhe pôs esta questão:
– Senhor Espanca: qual é a diferença
entre as arruelas e os besantes?- São duas rodelas, dizia, absolutamente iguais com o feitio de queijinhos de cabra. Espanca encordoou. Não sabia. Foi um dia glorioso para nós. Espanca, afinal, não era em tudo divino. Tinha as suas ignorâncias mortais.»
[in VERGÍLIO FERREIRA – conta-corrente 3, Livraria Bertrand, Lisboa,1983 (passagem
referente ao ano de 1981 – 15
de Março (domingo), às
págs.277-278).]
«(...).
Antes
de passar à frialdade descritiva desejo patentear aqui o meu mais sincero
reconhecimento pelo valioso concurso recebido da Comissão Municipal de Turismo
de Évora para a minha investigação, muito principalmente aos Ex.mos
Snr. Dr. António Bartolomeu Gromicho – cujo amável acolhimento foi o principal
incentivo para o prosseguimento do trabalho – e Snr. Túlio Espanca, companheiro
constante e competentissimo piloto nêsse
mare
magnum que é a Cidade de Évora.Tomar, Outubro 1943.
João dos Santos Simões»
[in «A Cidade de Évora», n.º5, Dezembro de 1943
(pág.4).]
A propósito das Visitas Guiadas à cidade podemos
ler no semanário “A Defesa”, na sua edição de 31 de Maio de 1947, à pág. 4, no
artigo de actualidade “Vida Civil – III Curso de Cicerones Eborenses”:
Pelas
15 horas, cerca de 60 pessoas, reunidas no adro da Igreja de S. João
Evangelista (Loios), visitaram este monumento, acompanhadas pelo sr. Tulio
Espanca, que lhes ia fornecendo as necessárias e curiosas explicações.
Percorridas
as dependências e o claustro do antigo convento, os assistentes deslocaram se
depois, á Igreja de St.º Antão, longamente pormenorizada e admirada.
Seguiram-se as
antigas igrejas de Santa Clara e das Mercês, terminando a lição junto do
Palácio de D. Manuel, no Jardim Público.
Todos
os presentes se confessaram encantados, com o que, de curioso e interessante,
lhes fora dado a admirar, nesta larga visita de estudo e prazer espiritual,
pela arte e valores que a revestiram de princípio ao fim, uma profusão de
apontamentos em datas e referências históricas, reveladoras do profundo
conhecimento, saber e competência do sr. Túlio Espanca.
(...).»
A
própria edilidade recebeu no seu quadro de funcionários Túlio Espanca,
compreendendo na altura o importante papel cívico e educativo que representava
esta iniciativa, instituindo os ciclos de visitas guiadas pelo historiógrafo,
conforme se pode confirmar por notícia impressa no Boletim Oficial da Comissão
Municipal de Turismo “A Cidade de Évora”, n.º 47, às págs. 227-228 e intitulado
“As Visitas Guiadas e a Cidade de Évora”:
A par de ilustres
figuras tais como Joaquim Augusto Câmara Manuel, Armando Nobre de Gusmão,
Jerónimo de Alcântara Guerreiro, Júlio César Baptista, José Filipe Mendeiros,
Mário Tavares Chicó, João António Rosa, Manuel Carvalho Moniz, António Silva
Godinho, Celestino David, Henrique da Silva Louro, António Bartolomeu Gromicho
e muitos outros que seria fastidioso citar, Túlio Espanca destacou-se como
sendo um erudito local, seu contemporâneo, e que desempenhou um papel
fundamental na procura e na caracterização de uma imagem para Évora e para o Alentejo,
nomeadamente a partir dos anos de 1940, altura em que inicia o trabalho como
guia intérprete na Comissão Municipal de Turismo, e altura em que trabalha os
Arquivos Históricos da Câmara Municipal de Évora, realizando um hercúleo
trabalho de sistematização, leitura e inventariação de documentos históricos
que lhe viriam a permitir compreender e trabalhar na sua globalidade a História
da Cidade.
Refere-se-lhe
o Prof. Dr. Vítor Serrão:
«Túlio Espanca foi
um dos grandes historiadores da arte portuguesa de sempre, o nosso mais
acertado inventariante do acervo patrimonial, e grande homem dos valores do
espírito e da cultura viva.»
Túlio
Espanca deixou-nos uma colecção de memórias manuscritas, assim como um conjunto
de criações literárias da época da sua juventude, escritas entre os finais dos
anos 20 e os anos 40, altura em que iniciou a sua actividade profissional como
Guia Intérprete da Comissão Municipal de Turismo.
Temos
notícia dele próprio “editar” originais, manuscritos e desenhados, que
partilhava com os amigos e camaradas de brincadeiras e aventuras, onde o texto
e os desenhos se articulavam com um estilo dinâmico e revelador de leituras que
exigiam uma preocupação não meramente de passatempo mas de instrução e
aprendizagem.
Túlio
Espanca deixou escrito nos seus "Diários", importantes referências
para conhecermos o ambiente sociocultural de Évora da primeira metade do século
XX. Refiramos a existência de diversos cadernos datados entre 1930 e 1940, onde
nos descreve as suas aventuras juvenis; onde nos faz descrições de Évora e dos
seus monumentos; onde nos apresenta em traços vividos as principais
manifestações cívicas, públicas, militares e políticas do seu tempo. Faz-nos
igualmente o retracto das suas relações familiares; dos seus namoricos; dos
desportos e jogos que praticava; das suas viagens; descreve-nos os cinemas e os
teatros, as festas e as romarias que presenciava e frequentava; fala-nos da sua
vida como militar voluntário e como músico amador na Escola dos Amadores de
Música Eborense. Tempos de intensa relação de sociabilidade.
Interessante
será termos em conta algumas passagens dos escritos que Túlio Espanca nos
deixou nos seus “Diários”:
Apontamentos
referentes aos dias 26 e 28 de Maio de 1935, aquando de umas festas realizadas
na Escola Primária de S. Mamede: «Evocar páginas de
S. Mamede, é sentir a nostalgia aguda da saudade invadir o meu coração e minh’alma.
/ Amo tanto as lembranças infantis que vertiginosas perpassam em cavalgadas de
sonho ante a minha memoria... hó amo tanto a época inegualável da Escola!.»
Túlio Espanca foi extremamente motivado pelos seus tempos de Escola, daí
que nunca tenha deixado de escrever, de ler, de exercitar a palavra escrita até
ao extremo de, nos primeiros cadernos dos seus “Diários”, ele escrever uma
primeira passagem a lápis e posteriormente passar todo o texto a tinta, e são
centenas de páginas manuscritas.
No
dia 16 de Dezembro de 1935, a propósito das suas influências literárias, Túlio
Espanca escreve: «Muito jovem ainda, naquéla infancia
que as leituras romanêscas de Conan-Coyle, Arnoud Galopim ou Michél
Zévaco, nos prendem completamente, nos
ofuscam os sentidos e o nosso maior prazêr é antegosar a imitação dos heróis
semi-deuses d’aquelas obras, tentei rivalizar Passavant, Francinett ou Sherlok
Holmes, realisando apuradas peregrinações sob aguaceiros medonhos, incursões
nocturnas em locais perigosissimos, penetrações em Conventos, egrejas, fortes,
escaladas arriscadas e lutas titanicas para o triunfo coroar de glória a missão
que propuzéra cumprir. / Almas
românticas existem poucas e, eu, sonhador plumitico [quereria Túlio Espanca dizer platónico?], adorador coerente do bélo, da virtude, da
natureza inteira, como protésto de dedicação amiga, aos leais companheiros que
me auxiliaram nesta historia salutar e culta “o têrmo será ambiguo, contudo é a
expressão pura da verdade”, aqui lhes deixo tributado o meu reconhecimento.
Túlio Espanca»
Finalmente,
uma última referência, que pela sua singularidade vale a pena anotar, de
Novembro de 1930, escreve Túlio Espanca no seu Diário: «DIA
23. Das duas horas em deante, eu,
José Fontes e Socrates, andamos vesitando uma parte da cidade nobre, como as
edificações romanas do roqueiro palacio dos Bastos; o portico renascença
adaptado ao ‘Conventinho’; a entrada do patio de S. Miguel, com as trese
arruelas brasonadas; a profanada ermida dos ‘Cavaleiros d’Evora’; as traseiras
da admiravel catedral, com a testeira da ábside em marmore, aquitectada pelo
prussiano J. F. Luduvicius, no pomposo reinado de D. João V; a sugestionante frontespício
da universidade henriquina, rodeada de claustros marmoreos; as vetustas ruelas
da idade-media que se mostram timidas e romanticas; acompanhando-mos depois, a
estrada de circunvalação, até o Rossio, ao local que antigamente denominavam do
‘Outeiro da Corredoura’. Aí, em casas novas, mas já velhas pela miseria
expoente do sofrimento, da egnomia, exprime-se o caracter dos extigmas da desolação.
Barracas entelhadas com velhas latas, ocultam o interior, duma luta simbolica
dos miseros que vivem á margem da vida. Farrapos imundos, encobrem a nudes
descarnada de mulheres mendigas, no tudismo da escoria, na união das almas. Aí
morre-se egnobilmente, atrosmente, enquanto que, a verdadeira cidade dos
monumentos, se bamboleia arrogante, na admiração dos forasteiros, que só isso
vêem e nada mais!.»
É este aspecto humano que reencontramos, ao longo
das leituras dos diários e memórias manuscritos, o saudoso e amigo Túlio
Espanca.
Olhando a sua extensíssima obra percebemos que a palavra escrita é um continuum na vida de Túlio Espanca.
A
palavra escrita ordena, memoriza e expressa o pensamento. Túlio Espanca modelou
o seu próprio pensamento, orientando-o para as temáticas do seu interesse – a
História da Arte, Évora e o Alentejo –, escrevendo as memórias do seu
quotidiano. Através da escrita tentou compreender e dominar a realidade que o
cercava. Através da escrita tomou consciência da própria realidade,
registando-a e simultaneamente transformando-a. Com esta prática tornou-se
aquilo que sempre disse que era, assumidamente: historiógrafo.
Recordar
Túlio Espanca é dar-lhe vida. Ler a sua Obra é preservar uma Memória que
pertence a todos nós eborenses e amantes da História de Évora e do Alentejo.
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