Rui
Arimateia
Apresentar
e falar sobre a figura e a Obra de António Telmo é sempre um desafio do “Arco
da Velha”, simultaneamente difícil e estimulante.
Difícil,
devido à complexa idiossincrasia do Autor, estimulante porque a presença de
Telmo continua a inspirar-nos a constantemente re-trabalharmos (e não a repetirmos)
a sua obra em nós e entre nós para que o poder do pensamento criativo aconteça
e transforme e siga livremente para o Astro…
Tal
como afirma António Telmo:
«A terra em que vivemos é apenas um
laboratório; no athanor da humanidade separa-se o subtil do denso. Esta não é a
terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se
perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quanto de bom e de verdadeiro
se pensou e imaginou, e pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e
vai formar a Terra Prometida.»
[A.T., in A Terra Prometida, Edições Zéfiro,
Sintra 2014, pp.17-18].
No que diz respeito à sua personalidade
única, poderemos socorrer-nos de uma auto-apresentação que o próprio António Telmo
escreveu, na Carta-Prefácio ao livro
de Alexandre Teixeira Mendes
[“Barros
Basto – A Miragem Marrana” (p.12)], é muito ao seu jeito:
«Não serve então de prefácio esta
carta? É a obra de um marrano, cheia de paradoxos e de duplicidades, de desvios
súbitos, de contradições, de certezas e de incertezas. (…).»
Daí que ao lermos e tornarmos a ler a
extensa obra que Telmo nos legou, a nossa evolução/criação interior, a nossa
reflexão que pretendemos séria, nos vai permitindo uma compreensão cada vez
mais profunda da dinâmica do pensamento criacionista do Autor. Pois que a
poesia para António Telmo é criacionista; uma vez que cria a realidade de que
fala. E importa reescrever e verbalizar esse pensamento porque, como ele
afirma, “Só há pensamento, pelo menos
pensamento activo, através da palavra”.
Em momentos de profunda crise física
(económica e financeira) e psicológica (carência de valores humanistas), como são
os que nos encontramos a viver, estas Tardes
Télmicas são fundamentais para a conservação e o fortalecimento da Cultura
Portuguesa, da sua Filosofia, da sua Poesia, do seu Humanismo… entre as nossas
comunidades.
É um projecto generoso construído em
comum por homens e por mulheres preocupados com a participação e com a assumpção
da palavra, factores importantes e fundamentais para a coesão e a harmonia,
tanto social como espiritual. Um sentimento forte começa a nascer no mais
profundo de nós próprios quando reflectimos em conjunto estas matérias, e de
facto começamos a sentir que o poder da
palavra (do diálogo, da partilha) cada vez mais terá de se impor perante a palavra do poder…
Diz-nos
António Telmo, numa entrevista a Américo Rodrigues, que:
«(…). Não me considero um mestre.
Eu não considero e qualquer desses que aí estão no livro [António
Telmo e as Gerações Novas] não podem dizer que são meus
discípulos, porque eu ainda não lhes disse que eram, não é? Porque o mestre é
que diz quem é o discípulo.
E
um discípulo não pode escolher um mestre?
Não pode. Podíamos estar sujeitos a
que qualquer cavalheiro dissesse que era discípulo. Agora seguidor, aceito. Eu
gosto muito da expressão “olhar a mesma estrela”. Eu aceito que eles todos
olhem a mesma estrela mas isso não me põe a mim na situação de mestre.
Companheiro mais velho, talvez.»
[António Telmo, in «A Terra Prometida», Ed. Zéfiro,
Sintra, 2014, pág.185.]
E
são sobre as palavras de poesia daquele Companheiro mais velho que gostaria de
tecer algumas breves considerações, tentando continuar a “olhar a mesma estrela” que muitos de nós partilharam e vivenciaram
com António Telmo.
Não
queria deixar de felicitar a querida Amiga, a Escritora e Poeta Risoleta Pedro,
cujo trabalho de compilação e de apresentação dos poemas, agora reunidos neste
VI livro das Obras Completas de António Telmo, foi extraordinário e
esclarecedor para quem se quiser debruçar mais aprofundadamente sobre os textos
poéticos de Telmo.
Não
queria também deixar de agradecer o convite que me foi feito pelo Amigo Pedro
Martins para fazer esta pequena apresentação, dando-me a oportunidade de a
partilhar com os presentes. E a todos os Amigos e Amigas do Projecto António Telmo que, continuando
a trabalhar e a publicar a Obra de António Telmo, estão a contribuir
decisivamente para o tornar imorredouro…
Sendo
estas sessões também para nos reaproximarmos da obra de António Telmo,
recorrerei à sua palavra sempre que a mesma for esclarecedora, sempre que nos
dê mais claridade, sobre algum assunto mais complexo, dúbio ou esotérico
apresentado nos poemas.
Elegi
meia dúzia de poemas. Os que pela sua leitura, e neste momento, me tocaram mais
fundo e que suscitaram uma ou outra reflexão.
Então,
e para “entrar a matar”, recordemos que, para António Telmo,
«As ideias são comunicadas pelos
anjos! Só que há quem as pense e quem as não pense. O pensamento é que é
nosso. [pág.
57]
(…)
Acho que a poesia não tem intenções
porque a poesia é também o resultado da colaboração do homem com o anjo. Claro
que eu não digo que o anjo é que escreve os poemas, é o homem que escreve os
poemas ajudado pelo génio! O génio era esse anjo que a gente vê nas “Mil e uma
Noites”, os génios que são educados.
(…).» [págs.183-4]
[António Telmo, in A
Terra Prometida, Edições Zéfiro, Sintra 2014, pp.183-4].
Após
esta consideração, indicarei então alguns dos poemas que me tocaram e que me
fizeram alargar a consciência para outra Poeta, Beatriz Serpa Branco, cujas
palavras considero estarem em perfeita sintonia com António Telmo e que
inclusivamente se conheceram e trocaram publicações nos idos anos de 1982, em
Évora.
Confesso
que me diverti imenso a ler a poesia agora reunida de António Telmo e, sem
esforço, ler as frases, olhar as palavras, sentir e desocultar os sentidos
esotéricos e exotéricos das construções poéticas. Contudo obra inacabada,
continuamente retrabalhada… sempre que me apropriar
de um poema e lhe fizer uma nova leitura.
Dionísio,
poema da juventude, em que António Telmo faz desocultar a relação entre o
menino e sua mãe, num jogo onde a vida e morte nos alertam para o tempo mítico
da criança. Obrigou-me a olhar para o tempo mítico da minha infância.
Para António
Telmo – criança é o ser que cresce, o adulto em devir; a criança, através da
educação deverá atingir o estado adulto com uma inofensividade (ahimsa, conceito espiritual que os
orientais tanto prezam) que a tornará um “príncipe,
isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu
perfeito símbolo.”
Tal como o Infante
do poema Eros e Psique de Fernando
Pessoa:
“(…).
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.”
A Inofensividade é um estádio de evolução psicológica
e espiritual que acontece após a fase de inocência da criança; é um estádio em
que a reflexão e o autoconhecimento constroem um homem novo. Nos contos do
maravilhoso, o Príncipe e ou a Princesa, no início da saga encontram-se
normalmente num estádio de graça onde a inocência impera! Através das provas
físicas e psicológicas, através da experiência perigosa de contacto com o mundo
real, vão adquirir força, beleza e sabedoria interiores suficientes para
assumirem a transformação/crescimento do Ser e, através da escolha e do livre
arbítrio transmutam a inocência (estádio inconsciente) em inofensividade
(estádio consciente). O autoconhecimento tem aqui um papel fundamental.
Apresento-vos então um poema de Beatriz Serpa Branco,
em casa de quem tive o prazer de conhecer António Telmo na Primavera de 1982, retirado
do seu livro de poemas “A face e as
sombras” [Colecção Daimon, Évora, 1959]:
“o menino é um recém-chegado de
outros mundos.
anunciador de uma distância íntima.
de onde nascer
é revelar
sinal de uma viagem a um viver
separado.
memória. vaga memória. de brisas
além da terra
em mares de aprofundar.
ele é o Anjo enviado de nossos reinos
secretos. a este
mundo de fora onde depois da infância nos encontrámos
habitando. sem saber de outro
lugar.
mas o menino é de longe. a Boa Nova
soada de praias
além do mar.
rosto voltado aos cantos da
distância.
olhos despertos ao acenar do longe.
de onde vieste e ainda lembras sem
saber lembrar?
eco de mundos de silêncio o teu
silêncio. menino
de silêncio olhando.
presença de um Real chamando.
além das vozes. das coisas. e dos
gestos.”
Narciso,
poema também da época da juventude de António Telmo. Utiliza neste seu muito
longo poema, uma riqueza de metáforas e mais metáforas. Para António Telmo, e segundo
António Cândido Franco, “a arte poética é
o exercício da metáfora”.
A
metáfora da água que António Telmo utiliza generosamente neste extenso poema, e
ao longo de toda a sua obra poética, remete-me para uma quadra do cancioneiro
popular alentejano dotada de uma profundidade de significado que importa ter em
conta nas nossas pesquisas sobre a criação poética portuguesa, a saber:
Não me
inveja de quem tem
carros,
parelhas e montes
só me enleva
quem bebe
água em
todas as fontes.
A água em todas
as fontes terá de ser bebida para que o Amor aconteça… para que o Amor
prevaleça…
O cante alentejano, através do seu
cancioneiro tradicional, contém em si vestígios de uma muito antiga sageza, sem idade… Uma sabedoria oculta,
subterrânea, ancestral, que nos diz que todos os homens são irmãos, que todos
detêm um saber que está para além da propriedade material das coisas, dos
objectos. Como consequência directa, todos poderão partilhar e simultaneamente
usufruir as riquezas espirituais comuns, colocando-se cada qual disponível para
ouvir o outro e partilhar com ele.
Nos dias que correm é cada vez mais necessário que
cada um de nós queira e consiga “beber água em todas as fontes” para que as
diferenças de todos possam ser compreendidas e aceites por todos. Para que
aquilo que diferencia os homens uns dos outros seja um factor de aproximação e
não um factor de desavença e de desentendimento.
Terra escura de carne dolorida, poema em que António Telmo
continua a cantar a água e o sol…
Refere a certa altura o canto
do rouxinol, De lunar sentimento embriegado, talvez porque sinta em si próprio o tempo sem tempo.
Na nossa notável tradição
galaico-portugueza relembremos a poesia de Afonso X, o Sábio, nomeadamente as suas “Cantigas de Santa Maria”. Ora
justamente uma dessas Cantigas (a CIII) canta-nos a história de “Como Santa
Maria fez estar o monge trezentos anos ao canto da passarinha, porque lhe pedia
que lhe mostrasse qual era o bem que avian os que eran en paraiso”.
Reza assim:
“Certo
monge rogava a Deus em instantes súplicas, que lhe desse em vida uma pequenina
amostra dos gozos do paraíso. Eis senão quando um dia chegou aos seus ouvidos o
canto dum passarinho, mas tão suave e melodioso que, no desejo de mais perto o
ouvir, saiu do seu convento e foi prostrar-se junto do sítio onde a avezinha
estava poisada. Sempre enlevado, ali se quedou algum tempo, segundo ele
pensava, até que o alado cantor se afastou, dando fim aos seus trinados. O bom
do monge voltou então ao cenóbio, mas grande foi a sua admiração, quando viu o
exterior mudado, e maior ainda, ao saber do porteiro que nenhum dos seus
antigos confrades lá estava. À vista da sua insistência em afirmar que poucas
horas havia que dali saíra, perguntaram-lhe o nome do seu abade; foi então que,
consultados os anais da casa, se reconheceu que trezentos anos se tinham
passado entre a sua partida e chegada. Pouco tempo sobreviveu o santo homem à
estranha aventura, voando o seu espírito de aí a pouco para o seio de Deus.”
[O
Monge e o Passarinho – Uma Lenda Medieval, José Joaquim Nunes, Academia das
Sciências de Lisboa, Separata do «Boletim da Segunda Classe», Vol. XII,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919.]
“Fecunda a terra o sol do amor
perfeito. / Meu coração fica todo florido.” – Não remeterão
estes dois versos para a realidade inefável de uma passagem de uma
transformação… de uma Iniciação? Onde de novo faz todo o sentido o tempo sem
tempo!
Outros
poemas me saltaram à vista e ao sentimento:
O
teu amor não veio moça? Choras. – Utilização pelo
Autor de Metáforas. Imagens de grande riqueza poética a cantar o Amor.
A
família é quando se dorme. – O jogo simbólico da
luz com a sombra. Duas faces da mesma moeda. O Inefável… o indiscritível…
Novamente as crianças, aqui aparecem como intermediárias entre os homens e
Deus!
A
minha fé tem a medida do que sou / Que se passou na infância que não lembro
– Dois poemas que fundindo-os se constrói um soneto que trata de duas
realidades psicológicas determinantes na obra e na reflexão de António Telmo: a
assumpção da máxima “Eu sou o que sou”
e o facto da Memória encontra-se ligada em profundidade à Inteligência! Sem
inteligência não há memória e sem memória não acontece a inteligência…
A
mim próprio – poema em que se adivinha a luta humana
do eu e do não eu. A Gnose e as contradições da natureza humana em busca da
perfeição ou da Morte. “Não sei como
tentar e, se sei, temo / O fulgor essencial que mata ou cega.”
Uma
vez conheci pelo Espírito Santo
–
Conhecer é recordar e novamente a frase iniciática “Sou aquilo que sou” saltam-nos aos sentidos e fazem sentido enquadradas
pelo Espírito Santo o Senhor das Linguagens e dispensador do entendimento –
novamente a máxima platónica do “conhecer é recordar”, continuamente utilizada..
Mestria / Rotina
– poemas que remetem para a realidade simbólica ou menos simbólica da Maçonaria.
No primeiro poema, António Telmo dá-nos
a descrição sumária da vivência íntima da passagem do Grau de Companheiro para
o Grau de Mestre Maçon. Pondera a eficácia de todo o cerimonial…
No segundo poema, António Telmo, critica
o comportamento de maçons no interior da Maçonaria. Maçon porquê? Para quê?...
Levaram luz pr’a onde reina a treva
–
novamente António Telmo fala-nos sobre a autenticidade da
Maçonaria nos dias de hoje.
Lembremos, a propósito, um pequeno
trecho de António Telmo sobre o assunto:
“(…)
É espantoso como foi possível conservar, ao longo dos séculos, inalteráveis, no
que lhes é essencial, ritos e símbolos maçónicos, quando enormes forças, cá
dentro como lá fora, tudo têm feito para os adulterar e corromper (…).”
[António Telmo, in
A Terra Prometida, 2014, pág. 108].
Breve conclusão:
Diz-nos Carlos Aurélio, Amigo e Companheiro de
longa data de António Telmo que “A sua vida e a sua obra são metáforas mútuas, reflexos similares da
mesma alma inquieta por Deus e por Portugal, a sua criatividade é fértil porque
exposta à expectativa do espírito, ao espanto de se estar vivo.”
[Carlos Aurélio, António Telmo (1927-2010) e Vila Viçosa,
in “Callipole”, n.º 18, Ed. Câmara
Municipal de Vila Viçosa, 2010.]
Mais uma vez recorro às sábias palavras de
António Telmo quando refere que “Os
grandes poetas fazem-nos esquecer as imagens visuais com que nos falam. Tudo,
sob a sugestão encantatória do ritmo, se dissolve em sons, cheios de
«espírito», cada vez mais altos e profundos, em que ideias e sentimentos se
confundem numa mesma, única e indefinível vibração.”
*
* *
Termino com a leitura e a partilha de dois pequenos
poemas de Beatriz Serpa Branco exactamente sobre “o poeta”:
todo o poeta é profeta
só ele sabe antes do tempo
como acontece a verdade
e onde é verdade a cidade
aquela antiga cidade
da unidade e da altura
só ele sabe essa lonjura
terra em amor prometida
depois do tempo acabar
todo o poeta é profeta
só ele faz nascer o dia
antes de o sol o criar
*
* *
deixa a Visão ficar
deixa o poeta morar ah deixa
deixa que o poeta viva em ti
ele vem a acordar o poeta que em ti
era
e da infância esqueceste
pelos caminhos da terra
*
* *
Rui
Arimateia – Sesimbra, 10 de Dezembro de 2016.
Sessão
de apresentação do Vol. VI das Obras
Completas de António Telmo – VIAGEM A GRANADA SEGUIDA DE POESIA, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, dia
10 de Dezembro de 2016, 15:00.
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