Sciencias & lettras
Eis como a
descreve a penna elegante do distincto escriptor o sr. Ramalho Ortigão, n’uma das suas
correspondências para a Gazeta de
Noticias do Rio de Janeiro.
«Antes da
abertura do caminho de ferro do sul, a viagem a Lisboa fazia-se em tres dias.
No primeiro ia se a Montemor, no segundo a Pegões, e no terceiro, como Vendas
Novas ficava perto de mais, pernoitava-se em Aldeia Gallega, esperando a falúa
da carreira ou o vaporsinho da manhã seguinte.
Os quatro
irmãos Cabreiras, – o Luiz, o Gabriel, o Antonio e o Romão – que tinham vindo
de Hespanha em pequenos com a mãe viúva, faziam as recovagens e transporte de
viajantes em carros alemtejanos entre Evora e Aldeia Gallega.
Na solida
carreta, toldada de lona encerada e pintada de verde, acamavam-se primeiramente
os sacos da mercadorias e os odres. Em cima da carga colocavam-se os colchões,
e sobre os colchões acomodavam-se os passageiros, com os alforges, o farnel e a
borracha com o vinho da jornada.
O Graviel, de barba feita para o caminho e
camisa lavada, prendendo o colarinho desgravatado com dous grossos botões
reboludos, o calção de briche novo, com fivelas e abotoadura de prata, a cinta
de lã escarlate, o chapéo com o diâmetro
de uma mó, armado de dous pampous, a
grande carteira de carneira verde – com a nota das encommendas dentro – na
algibeira interior do jaleco, sentava-se com garbo sobre a lança, entre as
mulas de troncos, dizia um monosyllabo ao gado, e tudo trotava alegremente por
ahi fora ao estrepito argentino dos guizos, entre os rolos da poeira
ennovelados no ar, ou sob a chuva, riscando o espaço n’uma pauta alvadia e
transversal entre as longas orelhas abanadas da parelha de guias.
Ora, há muita
gente em Evora que ainda hoje tem saudades das recovagens dos Cabreiras.
Ataca-lhes os nervos o bem conhecido silvo
da locomotiva, que tanto incremento
tem dado no paiz, não só ao commercio, mas á eloquencia parlamentar, e que
ainda ha pouco eu ouvi citar, na camara dos deputados, como sendo uma das mais
gloriosas conquistas do partido regenerador, querendo-se dar a entender ao
reconhecimento publico, que quando os comboyos andam, é o sr. Fontes Pereira de
Mello quem assobia.
Os simples
viajantes acham menos divertido os vagons de primeira classe, do que os carros
do Cabreira, e preferem abertamente ao entroncamento da Casa-Branca o antigo
encontrão do odre nos solavancos da estrada velha.
Chega a haver
antigos negociantes que, por baixo dos seus capotes ao fundo das lojas da rua
Ancha, para o próprio transporte das mercadorias, suspiram ainda pela tracção
do gado muar, como por uma terra de saudosa recordação da mocidade, jurando que
o extincto macho carroceiro, quando nas unhas de quem lhe soubesse falar á mão,
era muito mais ligeiro do que o vapor, em que tanto gosta de apitar a
rethorica, consideravelmente menos fervida no transporte comercial dos odres do
que na taverneação politica dos votos.
O caminho de
ferro – dizem ainda – ligando-as estreitamente com Lisboa, absorvem para a
capital a antiga importancia d’Evora como centro de provincia, e dissolveu uma
grande parte da intensidade da sua vida autonoma.
O novo theatro
sumptuoso e vastíssimo, se chegar a concluir-se, não terá quem o frequente,
porque todos os rapazes e todas as senhoras novas das ricas familias eborenses
preferirão ir a Lisboa ouvir a opera de S. Carlos, a comedia de D. Maria, ou a
opereta da Trindade, a gastar o seu dinheiro com os amadores da terra.
E o que
succederá com o theatro sucede com muitas outras fontes de trabalho, de
commercio e de industria local, que o caminho de ferro vai sucessivamente
empobrecendo e extinguindo.
Que demonio há
de fazer a modista, o alfaiate elegante, o mercador de chapéos de seda e de
pannos finos, o marceneiro, o joalheiro, o luveiro, o camiseiro, o relojoeiro,
etc., numa terra distante apenas seis horas de Lisboa, e lendo em cada manhã o Diario de Noticias do mesmo dia com o
programma dos espectaculos da noite, com o menu
dos restaurantes, com as reclames dos alfaiates e das costureiras da baixa e
com os annuncios do Gardé, da Emilia de Abreu, da Loja do Povo, da Aguia de
Ouro e do Cento e três?!...
Além disso, o
caminho de ferro encareceu em Evora o custo de todos os viveres, sugando-lhe
como por uma enorme bomba aspirante para o estomago de Lisboa todos os generos
alimenticios que n’ella abundavam: os frangos, os perús, os cabritos, os ovos,
as perdizes, os repolhos e as laranjas.
De resto, com
o no fundo das lamentações dos velhos retrogrados de Evora existe a melancólica
afirmação de um facto perfeitamente positivo, eu receio bem, ao deixal-a com
toda a minha sympathia de escriptor e de portuguez, que d’aqui a duas ou três
gerações esta velha cidade, tão litteraria e tão artistica, cujo esplendor
portanto tempo competiu com o de Lisboa, não venha a ser mais do que uma ruina
monumental e um duplo deposito das mais gloriosas tradições para a nossa
historia, e dos melhores géneros alimentícios para a nossa praça da Figueira.»
Ramalho Ortigão
in “Progresso do Alentejo”, III anno, n.º 269,
Évora, Quarta-feira, 28 de Abril de 1886.
Ramalho Ortigão
in “Progresso do Alentejo”, III anno, n.º 269,
Évora, Quarta-feira, 28 de Abril de 1886.
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