ou o homem transformado em mulher
Era uma vez, há
muitos, muitos anos e numa terra muito, muito distante, havia o costume de um Senhor Castelão, abrir o
seu castelo, um dia por ano, a todos os camponeses, habitantes no seu domínio,
que o quisessem visitar. Durante esse dia comeriam e beberiam os mais
deliciosos manjares e bebidas, ouviriam as mais delicadas e harmoniosas
músicas, usufruiriam das riquezas do castelo a seu bel-prazer.
Contudo, o rei
punha uma condição: durante a estadia no castelo cada um dos seus súbditos
deveria estar preparado para partilhar e contar uma história.
Ora um
carvoeiro que há anos gostaria de fruir esse dia de festa e de fartura no castelo,
nunca o tinha feito porque não tinha história alguma para contar. Nesse ano
porém, encheu-se de coragem e foi, pensando que o Senhor, com tanta gente no
castelo nesse dia, com certeza não lhe iria perguntar sobre a sua história.
Se bem o
pensou, melhor o fez, misturou-se com os seus vizinhos e entrou no castelo.
Ficou deslumbrado com tanta luz, tanta beleza e tão grande fartura de comidas e
bebidas. Muitas músicas, danças e alegrias se sentiam naquele dia no castelo.
Às tantas
chegou o Senhor do Castelo com a sua comitiva para solicitar a um ou a outro
convidado que lhe contasse uma história. Ao chegar ao salão onde estava o
carvoeiro, dirigiu-se-lhe directamente e pediu-lhe que contasse uma história.
O pobre do
carvoeiro, aflito e muito envergonhado, baixou os olhos e disse baixinho que
não sabia qualquer história, mas que abandonaria já o castelo.
Mas o Castelão,
postando uma cara de zangado, disse que não o autorizaria a sair antes dele
pagar a afronta feita. Assim, teria que ir para o lago que ficava junto ao
castelo, onde estava um barco sua propriedade e haveria de remendar um buraco
no fundo do mesmo até ao final do dia.
E o carvoeiro
lá foi, acabrunhado e envergonhado por ter sido descoberto e por perder tão
bonita festa.
Chegou à
margem do enorme lago, lá descobriu o barco e viu que realmente deixava mesmo entrar um pouco de água. E pôs-se a trabalhar.
Tão entusiasmado estava que não reparou o aparecimento repentino de uma
tempestade que fez agitar as águas, desencalhar o barco e o transportou no seu
anterior para o centro do lago onde ficou à mercê da tormenta e em risco de
perder a própria vida nas suas águas agitadas e profundas.
Durante um
tempo que lhe pareceu uma eternidade andou ao sabor das vagas e dos ventos até
o céu aclarar e o barco ir encalhar numa praia lindíssima, de areias finíssimas
e douradas e com uma luminosidade feérica. A paisagem à sua volta era magnífica
e indiscritível, tal a sua beleza… Extenuado saiu do barco e caiu no chão. Ao
levantar a cabeça reparou que qualquer coisa tinha mudado: olhou para as mãos e
não viu as habituais mãos calejadas e escuras de um carvoeiro, sentiu-se mais
leve e despreocupado! Ao debruçar-se junto de um pequeno espelho de água
tranquila, olhou a sua figura reflectida e viu que se tinha transformado numa formosíssima
donzela!
Ainda
atordoado com a inesperada e tão radical mudança pôs-se a andar pela praia.
Entretanto chega um garboso cavaleiro junto dela que lhe diz ser dono daquelas
terras e a convida para o seu palácio que está muito próximo.
Tão linda é a
donzela que o cavaleiro se apaixonou por ela e a pediu em casamento, tendo ela
aceitado.
Viveram
felizes naquela terra de sonho durante anos, sem nada lhes faltar. A donzela
entretanto foi mãe de duas lindas crianças que criou com todo o amor e afeição.
Ora, um dia, num
fim de tarde ameno, tendo a donzela ido passear à praia, viu um barco meio
abandonado e lembrou-se vagamente da sua chegada àquela terra. Resolveu subir
para o barco. Nisto e repentinamente desenvolveu-se uma grande tempestade que
levou o barco da praia para o meio do lago onde a donzela mal se conseguia
segurar devido à forte ondulação, ao terrível vento e à chuva que caía
intensamente e sem parar. Ao fim de algum tempo o barco bateu em terra firme,
com o seu passageiro mais morto que vivo devido ao cansaço e pelo enorme
esforço de se segurar com medo de não cair à água. Tinha então o barco chegado
à margem do lago, junto a um castelo que se encontrava todo iluminado e de onde
se ouviam músicas encantadoras.
Quem saiu do
barco foi o carvoeiro que, admiradíssimo, seguiu em direcção ao castelo e
entrou. Logo o Castelão o viu e se lhe dirigiu, perguntando:
– Então
Carvoeiro?! Talvez agora já tenhas alguma história para contar!?...
OBSERVAÇÕES:
Conto tradicional escocês contado pela Prof.ª
Isabel Cardigos no dia 8 de Abril de 2015 no CEAO / Universidade do Algarve: “Emily Lyle mo contou quando
regressávamos de um congresso em Innsbruck (Áustria), enquanto o avião nos
levava. Escocesa, dirigia uma revista (Celtic & Scottish Studies).”
Temos por outro lado, a informação do Dr. Luis Correia Carmelo, sobre o conto “o homem transformado em mulher”, diz ele:
“Eu ouvi esta
história a Ben Haggarty, narrador inglês, que por sua vez a ouviu a Betsy
Whyte, uma informante escocesa de uma família itinerante que foi muito famosa
no movimento revivalista de narração no Reino Unido.
A história,
tanto em estrutura, como em tema, remete-me sempre para outras, claro.
Passei por uma história semelhante (sem a transformação em mulher) na leitura de uma colecção de contos escoceses (uma reescrita, não uma recolha). No Mahabhârata figura uma narrativa parecida (também sem a metamorfose), mas que se assemelha muito à versão que conto, já que é a propósito de ir buscar água por ordem de alguém que a personagem se vê numa aventura fantástica, onde casa e tem filhos. Quando regressa, pouco tempo passou.
Passei por uma história semelhante (sem a transformação em mulher) na leitura de uma colecção de contos escoceses (uma reescrita, não uma recolha). No Mahabhârata figura uma narrativa parecida (também sem a metamorfose), mas que se assemelha muito à versão que conto, já que é a propósito de ir buscar água por ordem de alguém que a personagem se vê numa aventura fantástica, onde casa e tem filhos. Quando regressa, pouco tempo passou.
De outra
forma, Jean Claude Carrière, na Tertúlia dos Mentirosos, inclui uma narrativa
indiano de um rei que se transforma em mulher e vive a mesma experiência do
personagem do nosso conto em questão. Infelizmente, como é hábito, o autor não
nos deixa uma fonte precisa.”
Podemos também
encontrar uma versão curtíssima em J. Krhisnamurti (1977), in “Liberte-se do Passado”, Ed. Cultrix, 5.ª Edição, São Paulo (pág.
65):
«Sou tentado a repetir a
história de um grande discípulo que foi a Deus pedir que lhe ensinasse a
verdade.
Disse o "pobre" Deus:
"Meu amigo, hoje está fazendo muito calor; por favor, vai buscar-me um
copo d'água". O discípulo sai e vai bater à porta da primeira casa que
encontra e uma linda jovem lhe abre a porta. O discípulo dela se enamora, os
dois se casam e têm vários filhos. Então, um dia começa a chover, a chover sem
parar. Os rios se engrossam, as ruas se inundam, as casas são arrastadas pelas
águas. O discípulo se agarra à mulher, põe sobre os ombros os filhos e. ao
sentir-se arrastado pela torrente, brada: "Senhor, imploro-vos que me
salveis". E o Senhor responde: "Que é do copo d'água que te
pedi?" (...).»
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