quarta-feira, 22 de abril de 2015

terça-feira, 21 de abril de 2015

O conto do Castelão e do Carvoeiro

ou o homem transformado em mulher

Era uma vez, há muitos, muitos anos e numa terra muito, muito distante,  havia o costume de um Senhor Castelão, abrir o seu castelo, um dia por ano, a todos os camponeses, habitantes no seu domínio, que o quisessem visitar. Durante esse dia comeriam e beberiam os mais deliciosos manjares e bebidas, ouviriam as mais delicadas e harmoniosas músicas, usufruiriam das riquezas do castelo a seu bel-prazer.
Contudo, o rei punha uma condição: durante a estadia no castelo cada um dos seus súbditos deveria estar preparado para partilhar e contar uma história.
Ora um carvoeiro que há anos gostaria de fruir esse dia de festa e de fartura no castelo, nunca o tinha feito porque não tinha história alguma para contar. Nesse ano porém, encheu-se de coragem e foi, pensando que o Senhor, com tanta gente no castelo nesse dia, com certeza não lhe iria perguntar sobre a sua história.
Se bem o pensou, melhor o fez, misturou-se com os seus vizinhos e entrou no castelo. Ficou deslumbrado com tanta luz, tanta beleza e tão grande fartura de comidas e bebidas. Muitas músicas, danças e alegrias se sentiam naquele dia no castelo.
Às tantas chegou o Senhor do Castelo com a sua comitiva para solicitar a um ou a outro convidado que lhe contasse uma história. Ao chegar ao salão onde estava o carvoeiro, dirigiu-se-lhe directamente e pediu-lhe que contasse uma história.
O pobre do carvoeiro, aflito e muito envergonhado, baixou os olhos e disse baixinho que não sabia qualquer história, mas que abandonaria já o castelo.
Mas o Castelão, postando uma cara de zangado, disse que não o autorizaria a sair antes dele pagar a afronta feita. Assim, teria que ir para o lago que ficava junto ao castelo, onde estava um barco sua propriedade e haveria de remendar um buraco no fundo do mesmo até ao final do dia.
E o carvoeiro lá foi, acabrunhado e envergonhado por ter sido descoberto e por perder tão bonita festa.
Chegou à margem do enorme lago, lá descobriu o barco e viu que realmente deixava  mesmo entrar um pouco de água. E pôs-se a trabalhar. Tão entusiasmado estava que não reparou o aparecimento repentino de uma tempestade que fez agitar as águas, desencalhar o barco e o transportou no seu anterior para o centro do lago onde ficou à mercê da tormenta e em risco de perder a própria vida nas suas águas agitadas e profundas.
Durante um tempo que lhe pareceu uma eternidade andou ao sabor das vagas e dos ventos até o céu aclarar e o barco ir encalhar numa praia lindíssima, de areias finíssimas e douradas e com uma luminosidade feérica. A paisagem à sua volta era magnífica e indiscritível, tal a sua beleza… Extenuado saiu do barco e caiu no chão. Ao levantar a cabeça reparou que qualquer coisa tinha mudado: olhou para as mãos e não viu as habituais mãos calejadas e escuras de um carvoeiro, sentiu-se mais leve e despreocupado! Ao debruçar-se junto de um pequeno espelho de água tranquila, olhou a sua figura reflectida e viu que se tinha transformado numa formosíssima donzela!
Ainda atordoado com a inesperada e tão radical mudança pôs-se a andar pela praia. Entretanto chega um garboso cavaleiro junto dela que lhe diz ser dono daquelas terras e a convida para o seu palácio que está muito próximo.
Tão linda é a donzela que o cavaleiro se apaixonou por ela e a pediu em casamento, tendo ela aceitado.
Viveram felizes naquela terra de sonho durante anos, sem nada lhes faltar. A donzela entretanto foi mãe de duas lindas crianças que criou com todo o amor e afeição.
Ora, um dia, num fim de tarde ameno, tendo a donzela ido passear à praia, viu um barco meio abandonado e lembrou-se vagamente da sua chegada àquela terra. Resolveu subir para o barco. Nisto e repentinamente desenvolveu-se uma grande tempestade que levou o barco da praia para o meio do lago onde a donzela mal se conseguia segurar devido à forte ondulação, ao terrível vento e à chuva que caía intensamente e sem parar. Ao fim de algum tempo o barco bateu em terra firme, com o seu passageiro mais morto que vivo devido ao cansaço e pelo enorme esforço de se segurar com medo de não cair à água. Tinha então o barco chegado à margem do lago, junto a um castelo que se encontrava todo iluminado e de onde se ouviam músicas encantadoras.
Quem saiu do barco foi o carvoeiro que, admiradíssimo, seguiu em direcção ao castelo e entrou. Logo o Castelão o viu e se lhe dirigiu, perguntando:
– Então Carvoeiro?! Talvez agora já tenhas alguma história para contar!?...


OBSERVAÇÕES:

Conto tradicional escocês contado pela Prof.ª Isabel Cardigos no dia 8 de Abril de 2015 no CEAO / Universidade do Algarve: “Emily Lyle mo contou quando regressávamos de um congresso em Innsbruck (Áustria), enquanto o avião nos levava. Escocesa, dirigia uma revista (Celtic & Scottish Studies).”

Temos por outro lado, a informação do Dr. Luis Correia Carmelo, sobre o conto “o homem transformado em mulher”, diz ele:
“Eu ouvi esta história a Ben Haggarty, narrador inglês, que por sua vez a ouviu a Betsy Whyte, uma informante escocesa de uma família itinerante que foi muito famosa no movimento revivalista de narração no Reino Unido.
A história, tanto em estrutura, como em tema, remete-me sempre para outras, claro.
Passei por uma história semelhante (sem a transformação em mulher) na leitura de uma colecção de contos escoceses (uma reescrita, não uma recolha). No Mahabhârata figura uma narrativa parecida (também sem a metamorfose), mas que se assemelha muito à versão que conto, já que é a propósito de ir buscar água por ordem de alguém que a personagem se vê numa aventura fantástica, onde casa e tem filhos. Quando regressa, pouco tempo passou.
De outra forma, Jean Claude Carrière, na Tertúlia dos Mentirosos, inclui uma narrativa indiano de um rei que se transforma em mulher e vive a mesma experiência do personagem do nosso conto em questão. Infelizmente, como é hábito, o autor não nos deixa uma fonte precisa.”

Podemos também encontrar uma versão curtíssima em J. Krhisnamurti (1977), in “Liberte-se do Passado”, Ed. Cultrix, 5.ª Edição, São Paulo (pág. 65):
«Sou tentado a repetir a história de um grande discípulo que foi a Deus pedir que lhe ensinasse a verdade.
Disse o "pobre" Deus: "Meu amigo, hoje está fazendo muito calor; por favor, vai buscar-me um copo d'água". O discípulo sai e vai bater à porta da primeira casa que encontra e uma linda jovem lhe abre a porta. O discípulo dela se enamora, os dois se casam e têm vários filhos. Então, um dia começa a chover, a chover sem parar. Os rios se engrossam, as ruas se inundam, as casas são arrastadas pelas águas. O discípulo se agarra à mulher, põe sobre os ombros os filhos e. ao sentir-se arrastado pela torrente, brada: "Senhor, imploro-vos que me salveis". E o Senhor responde: "Que é do copo d'água que te pedi?" (...).»