A questão de legitimidade dos exames põe em
causa toda uma pedagogia.
Que pode
realmente «medir-se» em educação? Que representam os exames em relação a um
autêntico saber? Será que o desenvolvimento
multidimensional implicado nem processo educativo poderá traduzir-se em
termos de «aprovado» e «reprovado», na dimensão estreita e linear do sucesso e
do fracasso? Que é, afinal, Educação?
O simples
enunciado de toda esta problemática necessária contém já implícita a resposta
sobre o valor e a legitimidade dos exames.
Desaconselhados
por educadores e psicólogos, os exames são sinal de falhas profundas na
educação dos nossos dias, e de graves carências de toda uma civilização em
crise de autênticos valores.
A fome do
êxito, a pressa, a ambição, são vícios do nosso tempo que se traduzem em
valores falsos.
Quando se
pretende o utilitarismo, o sucesso, a «rendibilidade», as percentagens, o ser humano deixa de ser olhado como um
fim, e passa a instrumento da sua própria desumanização.
E assim se
vicia todo um processo educativo.
A tal vício,
nem os pais estão alertados. Antes, quando não esclarecidos, o cultivam,
pedindo à escola, através de exames e diplomas, a garantia de uma rápida
promoção económica, em vez de uma colaboração profunda e válida no processo de
maturação de seus filhos.
Assim lhes
estão criando condições de infelicidade e desencontro, substituindo os
autênticos valores da vida, pelo desejo de sucesso pessoal, fonte de
insegurança e de luta, numa civilização já saturada de competição e violência.
Nada mais
desumanizante que sobrepor a ambição do êxito aos valores do coração, encorajar o egoísmo em prejuízo da cooperação e
do amor.
E assim se vai
tornando a vida numa corrida a uma competição, onde vence o mais forte ou o
mais astucioso.
Os exames
reflectem esta crise de valores. Tornam-se, para muitos, provas de astúcia e
«esperteza» («Consegui enganar o professor»), e são, de facto, imperfeitíssima
avaliação de um reduzido número de capacidades intelectuais (por vezes só da
memória).
Não será isto
diminuir o homem? Numa aprendizagem de
convivência como é a escola, não deveriam as qualidades sociais (sentido da responsabilidade, compreensão e
simpatia, entre-ajuda) ser especialmente
encorajadas, a para da inteligência, da acção e da sensibilidade?
E não é com
todo um sistema de notas, classificações e exames, situações artificiais, que tais qualidades se estimulam e
valorizam.
Apesar da
recente e benéfica medida tendente a diminuir o número de examinandos, ainda só
uma escassa minoria dela aproveita. E, tal como existem, os exames são
contraproducentes. Focaremos, adiante as razões mais profundas. Por agora,
apontamos:
a)
as provas, pela própria natureza dos exames, são necessariamente
inadequadas;
b)
a inevitável e extrema subjectividade na sua
apreciação;
c)
presença de factores que afectam a delicada função de
julgar, como fadiga, saturação psicológica, número excessivo de provas em tempo
insuficiente.
(Em relação a a) e b), Ersílio Cardoso, em «Diário de
Lisboa», 11-12-70, apresenta dados e exemplificações criteriosos.
Para citar apenas um desses exemplos,
colhidos em inquéritos internacionais que detectaram a extrema subjectividade
de critérios de classificação, repetiremos que, relativamente a 6 examinadores,
as percentagens de examinandos que
obtiveram 10 valores, sobre 20, num tema de filosofia, variaram de 81% a 31%.
Em provas de História e Geografia, também a disparidade foi alertante.
Acrescentaremos ainda, sem mais comentários, que os 6 examinadores,
eram «professores experimentados e habituados há muitos anos a trabalhar
juntos». [Piéron, autor de um dos mais completos
estudos sobre exames, Ciência e Técnica
dos Exames, aconselha a «substituir, na medida do possível, a selecção por
meio de exame, por uma orientação contínuas fundada no conhecimento profundo de
cada personalidade, por meio de métodos objectivos» (pág. 207)].
Por todas
estas razões, se introduzem factores de inexactidão e até de injustiça que,
embora involuntária, afecta
necessariamente o sentido de valores do adolescente.
Os exames
mostram como nos acomodamos a falhas extremamente graves no sistema educativo.
Uma, entre muitas outras, é a de uma educação que renunciou a si mesma.
Os exames não
apelam parta uma Educação, mas para
um «ensino», de feição utilitarista e
excessivamente intelectualizante.
O ser real, com os seus interesses,
tendências e necessidades, é esquecido, para ficar apenas um receptáculo vazio,
onde enormes doses de informação serão acumuladas… para serem esquecidas, num
processo espontâneo de saneamento mental.
O professor
fica reduzido a mero informador e classificador, com a função de «cumprir o
programa» e «preparar para exame», colaborando, como vítima também, neste
bloqueamento do processo educativo.
O sistema de exames é assim fonte de
tremendos erros pedagógicos:
- prejudica a relação educativa.
Em primeiro lugar, a relação
professor-aluno, tão essencial ao processo pedagógico. A preocupação com o
programa, quase sempre excessivo, com as notas e com o exame, rouba a
disponibilidade e a atenção mútua e desinteressada. Insidiosa muralha que, com
o número excessivo de alunos, mutuamente insensibiliza à compreensão e à
amizade.
A relação dos alunos entre si
também é atingida. A rivalidade é estimulada, gerando-se sentimentos de
insegurança e frustração.
Também são prejudicadas as relações
entre a família e o educando e entre
a família e a escola. Muitas crianças e adolescentes ficam traumatizados,
especialmente em relação à família, que nem sempre sabe aceitar e compreender
uma «reprovação», ou uma nota menos de acordo com a ambição familiar.
No caso da relação escola-família,
tão importante na obra educativa, a situação torna-se tensa quando o exame
ocupa o primeiro plano das atenções familiares. Atitudes de desconfiança e até
de animosidade são frequentes, para com o professor. E o clima transforma-se em
autêntica psicose colectiva, fruto de uma pedagogia falsa, completamente
alheada dos grandes valores humanos.
- encoraja a confusão generalizada entre
instrução e Educação, de modo a pretender-se apenas um diploma. É tudo… e
não é nada, para a realização do
jovem, como ser humano e social. Introduz-se assim uma falsa perspectiva entre
alunos e até professores, sobre o que é realmente essencial na obra educativa,
que terá de atingir a profundidade do ser.
Tal falta de sentido de valores, estimulando a superficialidade só pode
criar seres igualmente superficiais e infelizes.
-
não estimula à reflexão e à criatividade.
-
induz à passividade imitativa e à
excessiva memorização. Este excessivo esforço torna-se tanto mais absurdo,
quanto a informação é hoje extremamente acessível, por melhores meios. O
problema educativo reside em orientar o jovem, para o tornar capaz de saber o
que deve colher.
- afecta o equilíbrio psico-fisiológico do
adolescente, roubando ainda energia e tempo para a maturação educativa.
- exerce forte constrangimento, porque a
«aprendizagem» é imposta e não proposta.
Deste modo se atrofiam a espontaneidade e a curiosidade natural, que
definha perante doses maciças de informação, para a qual falta uma estimulação
adequada.
Substitui assim a alegria que
deveria estar ligada à relação educativa
e à aprendizagem verdadeira, pela
ansiedade e pelo medo, que bloqueia a inteligência e a compreensão.
- é contrário à verdadeira motivação, que
estimula sem prender aos resultados. A educação autêntica é desinteressada, não
procura o «êxito». Não leva à competição, nem a
pensar em termos de sucesso ou de fracasso, mas de realização humana.
-
contribui para o conhecimento
compartimentado, deformador do sentido
da vida e de uma visão interpretativa
e unificadora do homem e do mundo.
Os exames apelam para uma falsa especialização, prematura e mutiladora
da experiência vital do adolescente.
Que sentido faz, por exemplo, estudar, com todo o pormenor, o aparelho
digestivo da minhoca, da lagosta, do caracol, se não fizermos nada para
integrar o jovem no seu meio natural, sentindo-lhe a harmonia e a beleza?
As matérias das várias disciplinas deveriam ser olhadas como dimensões da vida, que levam o jovem a
crescer, multidimensionando o seu horizonte, numa crescente expansão de
consciência, a caminho de uma maturidade
integrativa.
-
leva a substituir a experiência e o saber
das coisas e dos seres por esquemas, fórmulas e definições, alheando da
relação com a vida.
O
adolescente precisa de observar, de estar atento à vida.
Mas
substitui-se essa experiência insubstituível pela memorização, a abstração e o
intelectualismo. E assim se priva o jovem de encontrar os seres, de lhes ser
sensível, de os conhecer e amar.
-
distrai da reflexão essencial sobre o Eu,
que leva ao auto-conhecimento, um dos valores mais altos de toda a Educação.
Autoconhecimento
que nasce da relação com o mundo, e é
fundamental à humanização do homem.
-
leva a subestimar o desenvolvimento da
sensibilidade e das qualidades sociais indispensáveis ao equilíbrio do
adolescente e à vida de relação.
A afectividade
é, no jovem, o centro de toda a evolução da personalidade. A cultura,
orientação e aproveitamento da sensibilidade impõem-se, pois, simultaneamente,
como um instrumento e um fim do processo educativo.
Uma sugestão
É urgente,
portanto, considerar todos estes problemas. Compreender bem um problema é já
estar a resolvê-lo.
E não podemos
continuar a aceitar os exames, sob pretexto de que são apenas um meio indispensável. Sabemos como, em
qualidade, os meios importam tanto como
os fins, porque os condicionam e modelam.
Educadores e
psicólogos conscientes propõem a substituição dos exames por outros meios, como
os chamados processos de avaliação
contínua, para que o adolescente (ou a criança) seja olhado como um caso humano.
Assim todo o
sistema de notas e classificações, que enferma de males semelhantes aos dos
exames, seria igualmente substituído. Termos como «aprovado» e «reprovado»
desapareceriam do vocabulário escolar.
Se a função de
julgar o aproveitamento educativo se estender por todo o tempo de vida na
escola, então será possível uma observação aprofundada. Se tal observação for
distribuída por equipas, constituídas por
professores realmente ligados ao jovem, pelo psicólogo , o médico e o assistente social que possam
olhar conjugadamente acriança ou o
adolescente sob os aspectos bio-psíquico e sócio-pedagógico, teremos então algo
que se aproxime de uma verdadeira acção educativa.
Se, além
disso, a família for chamada a colaborar efectivamente, e se, aos alunos mais
velhos forem também pedidas informações responsáveis sobre as suas próprias
dificuldades e desenvolvimento estaremos no início de um caminho em que a orientação do adolescente poderá de
facto realizar-se não só ao nível humano,
como vocacional.
Só assim se
não bloqueará o processo educativo, roubando-lhe o carácter desinteressado, e o
tempo para uma natural maturação, privando professor e aluno de disponibilidade
para uma relação que vale por si, e
afastando da vida e dos seus problemas essenciais, para a vacuidade da
mentalização estéril.
Vicia-se toda
s obra educativa quando há preocupação quase exclusiva com o treino intelectual
e técnico, a avaliar em exames, sem o mesmo cuidado e insistência em relação a
uma cultura sistemática da sensibilidade
e das qualidades sociais.
Só
desenvolvendo no jovem o poder de estar atento à vida e de compreender, e também a capacidade de ser sensível, à beleza, ao
sofrimento, o poder de compadecer-se com o que se passa à sua volta, e o desejo
de ajudar, o educaremos realmente.
Só assim se
não alienará a escola da vida. Alienação tanto mais grave quanto o homem
precisa urgentemente de um sentido da
vida que o estimule a uma maturidade
interactiva. Esta o empenhará num processo espontâneo de desenvolvimento,
individual e social, que o ajude à necessária transformação do mundo, pela
transformação de si.
OBS.:
Comunicação apresentada pela Autora no VI CONGRESSO DO ENSINO LICEAL, Aveiro,
1971.
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