sexta-feira, 12 de junho de 2009

SÃO JOÃO EM ÉVORA E NA TRADIÇÃO

«Ó Precursor, fizestel-a bonita!
Não que teu Christo, incarnação do Bem –
Não seja quem seja o teu Divino Anunciado.
O mal são os que após, sem mystica divina
Nem ternura christã, ou só humana,
Metteram a Jesus na cella da doutrina
Com as algemas do ódio manietado
Para depois manchar de falsa fé
O pobre homem que todo homem é»


Fernando Pessoa,
in “São João” (1)


Évora festeja desde há muito o dia de S. João. Deste antiquíssimo costume permaneceu principalmente a Feira de S. João, tal como nos habituámos a chamá-la desde o momento em que juntávamos as sílabas para tentar pelas primeiras vezes, balbuciando, a Comunicação através da Palavra. Momento tradicionalmente grandioso para as gentes de Évora e dos arredores, em que se faziam negócios e combinavam contratos; se compravam os fatos, o calçado, as mantas, as louças, os queijos e até os capotes alentejanos e as peças de fazenda; se adquiriam por atacado um nunca mais acabar de produtos para a casa e para o seu gasto durante o ano que agora re-começava... E para as crianças, as principais atracções eram os carrosséis e os carrinhos de choque; as farturas ou brenhóis e o algodão doce; eram as barracas de quinquilharias e de brinquedos; e era o Circo!... O Circo com os palhaços e os leões, os malabaristas e os equilibristas; eram as cores e a música, eram os cheiros, eram um nunca mais acabar de sentires e de desejos, de deslumbramento e de espantos... Era a Feira de São João.

Podemos ler no jornal eborense “Sul”, datado de 22 de Junho de 1882:

«Diz a tradicção que o santo popular costumava festejar o seu dia com tal estrondo, com tão ruidosas festas, que d’ahi procediam as trovoadas, que n’essa epocha do anno nos atormentavam os ouvidos. Deus, para pôr termo a taes excessos, condemnou-o a dormir durante os dias 23, 24 e 25, de modo que S. João não póde festejar o seu anniversario.
Allusivas ao somno, que a tradição menciona, conhecemos algumas quadras:

Se S. João bem soubera
quando era o seu dia,
viria do céu á terra
com prazer e alegria.

Desperta, João, desperta
que já chegou o teu dia;
vem ver como te festejam
com prazer e alegria.

S. João adormeceu
nas escadinhas do côro;
deram as freiras com elle
depenicaram-no todo.


Embora esteja condemnado a esse somno de tres dias, S. João não deixa de revolucionar, especialmente, as cabeças das raparigas, que na proxima noite de sexta-feira tentam a sorte, para ver se hão de morrer solteiras ou casadas.
Estas experimentam a alcachofra, aquellas a gema do ovo lançada no copo da agua; umas deixam ao sereno a bacia em que mergulharam as sortes onde estão escriptos os nomes dos mais queridos do seu coração, outras lançam á meia noite do alto das escadas o velho sapato que, se chega ao patamar, lhes dá a triste noticia de que hão de morrer solteiras, e, se fica parado em qualquer degrau, lhes annuncia quantos annos hão de esperar pelo matrimonio.
A noite d’amanhã é, pois, anciosamente esperada pelas que desejam saber se o escolhido do seu coração ainda estará muito tempo sem lhes pertencer.
Até á meia noite, hora destinada para se effectuarem taes crendices, reina o delirio dos bailes e dos descantes em volta da fogueira: e, depois d’uma pequena paragem, proseguem até manhã clara, para á noite reviver com o mesmo enthusiasmo.»


Sobre as festividades do São João de Évora, refere-nos o Professor José Leite de Vasconcellos, por ocasião de uma sua visita à cidade, na companhia de Gabriel Pereira no ano de 1888:
«(...).
Á hora marcada, no dia 23 de Junho, embarcámos no Terreiro do Paço (...). Em breve cortavamos, no mais agradável convivio, as agoas mansas do Tejo, para logo em seguida entrarmos no comboio do Barreiro, que, através de extensas planicies, charnecas e vinhas, nos conduziu sem incidente a Évora.
Das janellas do vagão avistavam-se ás vezes na orla extrema do horizonte fogueiras a arder. Eram as manifestações populares em honra do Precursor do Messias.

Quando os Moiros na Moirama
Festejam a S. João,

no dizer da trova, não admira que nas nossas populações esteja vivo o sentimento de respeito e veneração a elle, embora esta festa não seja de origem catholica, e se filie em velhos cultos naturalisticos: poucas festas tem mesmo significação tão bem conhecida e estudada.
Chegámos de noite. Na estação havia extraordinaria agglomeração de gente á espera de forasteiros que, como nós, iam á feira de S. João. (...).
Parte da feira tinha assento diante d’este templo [ermida de S. Brás].
(...).
Por todos os lados se erguiam barracas de panno com botequins improvisados, tendas de quinquilharias, lojas de dôce, - e se ouvia algazarra enorme e confusa, em que o habitante do extremo Sul do reino misturava a sua algaravia com as pragas rudes do calão dos Ciganos.
(...).

Depois atravessámos ruas tortas e estreitas, apesar de uma d’ellas se denominar pomposamente Rua Ancha, passámos debaixo de arcadas, silenciosas como claustros, e installámo-nos por fim em casa de Gabriel Pereira(...).
Apesar de ser vespera de uma grande feira de anno e noite de S. João, o casamenteiro das velhas e gracioso galanteador das moças, no interior de Evora não se percebia o menor ruido (...).
A minha illusão desvaneceu-se de pressa, porque, quando eu me preparava para dormir, começaram a passar na rua bandos de raparigas, que cantavam ao som de adufes, em toada monotona e prolongada:

S. João perdeu a capa
No caminho do estudo...
Ajuntem-se as moças todas,
Façam-lhe uma de velludo.

S. João, vós sois ôrives,
Porque é que não trabalhaes?
Quem me dera ser thesôro
Do dinhêro que gánhaes.

Esta toada, com o seu quê de mourisco, divergia muito das do Norte e centro do reino (Porto, Beira), que são mais alegres e mais vivas. Por fim tudo cahiu em silencio (...).(2)

Passando muito rapidamente pela tradição etnográfica portuguesa, verificamos que as Festas de São João constituem tradicionalmente a reminiscência de antiquíssimo rito pagão, muito anterior ao cristianismo que, tal como muitos outros, a Igreja assimilou à sua própria liturgia – constituem aquelas festas, na verdade, a adaptação cristã do longínquo culto do fogo através do qual os povos primitivos acompanhavam e celebravam a evolução solar ao longo das estações do ano. Neste caso, assinalavam com enormes fogueiras a passagem do solstício de Verão, em que o Sol atinge o seu máximo esplendor, e daí que o São João se celebre a 24 de Junho, com a abundância de fogueiras e folguedos à sua volta.

Refiramos algumas tradições curiosas recontadas por José Leite de Vasconcellos de Norte a Sul do País:
O Sol, ao nascer, na manhã de S. João, vem a dançar... dá três voltas... ou sete voltas...
Que festa haverá aí tão popular como a do São João? – “‘Té os moiros da Moirama/ Festejam a S. João.” (Do «Romanceiro» de Almeida Garrett).
A noite de São João é a noite das fantasias e do amor: as feiticeiras vão na casquinha de um ovo para a Índia; as mouras encantadas saem dos penedos e das fontes, e estendem os seus tesouros por sobre a relva verde à luz da lua...
Tudo nessa noite é reboliço e vida, tudo é juventude e amor...
Ao saltarem as fogueiras, nove vezes, com um ramo na mão, diz-se: – “Viva São João/Nosso Senhor nos dê muito pão!”, ou, saltam as moças nove vezes a fogueira e dizem de cada vez: – “Em louvor de São João/Que me dê um homem rijo e são!”, e ainda, pega-se numa bacia com água muito clara, passa-se nove vezes sobre a fogueira e depois miram-se na água; se virem a cara, chegam ao resto do ano, se não, não.
Pelo São João as moças saberiam o nome do futuro marido... queimavam alcachofras e ervas pincheiras ou deitavam ovos em água para saberem o futuro...
Por outro lado, as moiras encantadas aparecem cá fora, saídas das fontes e das grutas, são espíritos das Naturezas, despertados em época tão santa e especial - quando os frutos começam a aparecer. (3)

Rocha Peixoto, outro eminente etnógrafo português, vê na crença das mouras encantadas, que nesta noite aparecem associadas à água a mostrarem tesouros escondidos, persistências da “simbólica do Sol renascendo da Terra e triunfando do Inverno; encanto: a luz dominada pela sombra; meadas de ouro: a vitória plena da luz.” (4)
Interessante é também a perspectiva de Dalila Pereira da Costa ao comparar numa sua obra (5) os Oráculos portugueses desde os tempos mais remotos com as fontes de São João:

“E se agora encararmos o testemunho sobre estas antigas práticas oraculares, perpetuadas nos costumes da noite de São João, veremos ainda que elas vêm, tal como outrora no paganismo, ligadas num todo às de finalidade salutar e de fecundidade, revelando o antigo culto naturalista da Deusa [Gê – a Terra Mãe, a Tellus Mater].
Se é sob a égide de S. João Baptista que elas se concentraram sobretudo, a razão não estará no facto do Santo Percursor estar ligado ao culto da água e ainda a um certo aspecto do sacerdócio feminino, de carácter orgiástico, como revelação de antigos ritos de fecundidade?: S. João surge nas margens do rio Jordão baptizando pela água, usando assim as qualidades regeneradoras e redentoras deste elemento, e, no fim, de sua vida, seu sacrifício e morte, virá ligado a uma mulher que encarna esse carácter orgiástico arcaico, Salomé, como sacerdotiza perfazendo num bailado de revelação, a epifania da nudez sagrada e secreta da deusa, com toda a sua força terrível.
Esta data marcada do solstício, aglutinando, concentrando em si a maior parte de todos os ritos pagãos desta religião, que outrora seriam detidos e praticados preponderantemente por um sacerdócio feminino. (...).”

Foi o dia de São João que entre nós concentrou toda a arte mântica ou adivinhatória do paganismo arcaico, vinda da nossa mais funda pré-história. Citado por Dalila Pereira da Costa (6), refere esta autora que Contador de Argote, numa sua obra datada de 1738, denominada De antiquitatibus Conventus Bracaraugustani, a propósito de um conjunto de cantinhos no penhasco do Cachão da Rapa, na margem direita do Douro, diz que as cores destas pinturas, vermelho escuro e azul, segundo o dizer do “vulgo, e, o que é mais, alguns homens nobres, e eruditos (...) se renovão todos os annos em dia de S. João Bauptista pela manhã, e que aparecem mais brilhantes (...)”.


Os cantinhos são quadriláteros divididos em quatro ou mais partes iguais; sinais gravados ou pintados em rochas, que eventualmente possam ter surgido ligados a uma remota arte mântica.

Refere ainda Contador de Argote que junto deste penhasco com estes caracteres, está uma gruta com um portal “e, entrando por elle dentro, se acha em pedra firme huma grande sala com assentos a roda, e no meio uma grande meza, tudo de pedra, segundo dizem pessoas que alli tem entrado, e affirmão ver-se desta sala uma porta que vay para outras mais para dentro” . E continua Dalila Pereira da Costa, “Que o testemunho de Argote, nos revelará um local de alta consagração e de fundo sentido na sabedoria detida então por uma elite sacerdotal dentro duma comunidade de povos, tudo aqui o indicará: a esta sala, para sua reunião, outras mais secretas se lhe seguiam, provavelmente indicando uma progressão iniciática (...)”.

As festividades de São João Baptista e de S. João Evangelista, respectivamente a 24 Junho e a 27 de Dezembro são coincidentes com os solstícios. Assim, periodicamente, somos levados a reflectir na importância simbólica e espiritual do fenómeno solsticial, inserido este no período de um ano e directamente relacionado com o posicionamento do Sol face à Terra, ou vice-versa. Com efeito, no Solstício de Inverno inicia-se a fase ascendente do ciclo anual; marcando o Solstício de Verão o início da fase ascendente. No simbolismo greco-romano têm o nome de portas solsticiais e são representadas pelas duas faces de Janus, que por sua vez, deram origem aos dois São João, de Inverno e de Verão. A porta invernal introduz a fase luminosa do ciclo enquanto que a porta estival está relacionada com o, a partir desse momento, progressivo obscurecimento.
Realidade Natural que se faz sentir desde os primórdios da Criação, foi contudo aproveitada pelos Homens Sages para fazer transportar para as vivências da Humanidade outras Realidades, qualitativamente superiores, estas de cariz mais Espiritual e ligadas às tradições dos Mistérios.
Nada melhor que o simbolismo de Janus – o das duas caras – para que pudesse ser transmitido aos homens o conceito de princípio permanente, pois que, este deus de cara dupla simbolizava o Uno Imanifestado que ligava o passado e o futuro no Único e Eterno Presente.
Os antigos iniciados romanos faziam representar Janus com duas caras, uma, jovem, simbolizando o ano crescente, a outra, velha, símbolo do ano moribundo. Contudo, porque símbolo do Sol, Janus não passava de uma realidade virtual, pois a Realidade Última, perene e inefável, teria que ser apreendida para além da manifestação dualística e exterior.

«As festas ritualísticas dos dois São João, como em certa medida toda a celebração litúrgica, repousam pois sobre o seguinte postulado: o tempo cósmico e humano está sujeito à regeneração perene, sendo este vai-vem rítmico dos solstícios como que uma imagem e um reflexo sensível e natural desta lei universal .» (7)

Muito mais se poderia dizer e especular e argumentar, sobre as diferentes iniciações mistéricas, perante as diversas culturas e épocas, sobre superstições e realidades, sobre costumes bizarros e cultos atávicos, contudo, gostaria tão só referir alguns conceitos e realidades energéticas, porque ao meditá-los sinto a possibilidade de transformação de mim próprio, via um autoconhecimento que se pretende cada vez mais profundo.

O SOL, primeira realidade que, para mim, é fundamental, e elemento chave das Festas de S. João. Olho os solstícios como dois momentos cruciais no Ciclo da Natureza e do Ano. Associo realidade ligadas à transformação, à purificação, à mudança, ao crescimento e à colheita, à luz que combate as trevas - física, psicologica e espiritualmente. Arquétipo.

O FOGO, realidade ligada desde o primeiro momento com a criação, a manutenção da Vida e a Iniciação aos Mistérios da Humanidade. Associo a Terceira Pessoa da Trindade - o Espírito Santo, mas indissociável está o CRISTO e o BAPTISMO pelo Fogo. Arquétipo.

A FESTA, novamente a Iniciação aos Mistérios. A dramatização dos Rituais. A Consagração do Sol, do Fogo, da Natureza, do Cristo - enquanto Realidades Cósmicas. Vêm também as Fogueiras, a Magia Naturalista das Mouras e das Fontes, os Encantamentos e a Adivinhação, a Poesia, a Aldeia e o Paganismo. Arquétipo.

Todas as Realidades Arquetípicas, quando vividas com autenticidade, amor, tolerância, são Verdadeiras.
Tenhamos sempre em conta as palavras do Mestre Jesus, chegadas até nós pela palavra de S. João Evangelista:
«Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos ordenei. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor: chamei-vos amigos, porque vos manifestei tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que escolhestes a mim; fui eu que escolhi a vós e vos constituí, para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja duradouro, a fim de que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda. Isto eu vos ordeno: que vos ameis uns aos outros.» (8)

PAX PROFUNDA

Rui Arimateia
Évora, no mês de São João de 2009

NOTAS:
(1) FERNANDO PESSOA – Santo António, São João São Pedro, ‘ensaios’, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1986 (Introdução de Alfredo Margarido).
(2) J. LEITE DE VASCONCELLOS – Ensaios Ethnographicos, Vol.IV, Livraria Classica Editora, Lisboa, 1910 (pp. 317-320).
(3) LEITE DE VASCONCELLOS, José – Etnografia Portuguesa - Tentame de Sistematização, Vol.VIII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1982 (pp.378-425).
(4) PEIXOTO, Rocha – Etnografia Portuguesa, Col.’Portugal de Perto’,nº20,Publicações Dom Quixote,Lisboa, 1990 (pp.57-64).
(5) PEREIRA DA COSTA, Dalila – Da Serpente à Imaculada, Lello & Irmão Editores, Porto,1984 (pp.272-273).
(6) Op.cit., pp. 244-245.
(7) in SIETE MAESTROS MASONES – Simbolo, Rito, Iniciation, Ed. Obelisco, Barcelona, 1992 (p.203).
(8) Evangelho Segundo São João, XV,12-17.

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