A geografia possível do antigo ritual da
entrada do Boizinho de São Marcos nas igrejas e nas ermidas do Alentejo no dia
da sua devoção – 25 de Abril
Rui Arimateia[1]
Identidade
e Tradição
A Identidade
Cultural de um povo manifesta-se e pode compreender-se através das suas
tradições mais enraizadas, mais profundas. Assim, para entendermos o Mistério Religioso mais profundo das
nossas antigas tradições culturais, vindas muitas vezes dos alvores da
civilização humana, só o poderemos compreender minimamente se estivermos
munidos de três ferramentas metodológicas muito especiais de abordagem e de
interpretação simbólicas, para a
desocultação dos significados mais profundos do Espírito Religioso de que se encontra imbuído.
As três ferramentas, são:
1.ª- A Poesia – pois esta permite-nos
falar a língua dos Deuses;
2.ª- A Imaginação Criadora –
permite-nos ouvir e entender a voz dos Deuses;
3.ª- A Analogia – permite-nos
compreender a intenção mais profunda nas diversas manifestações dos Deuses.
Os ritos e os
mitos são transmitidos entre os homens através de símbolos, de gestos e de
palavras; são autênticas mensagens vivenciais que formam a tradição, a
identidade, o sentimento colectivo, o legado da família, o património, etc. Contudo,
estão em risco de já não se lhes compreender o sentido mais profundo… o
significado mais íntimo, mais essencial, tornando-se necessariamente a
dramatização manifesta menos sentida e mais superficial.
Uma pergunta
impõe-se – o que é a Tradição?
Procurar saber
o que realmente significa a palavra tradição não será parecido com o gesto de
descascar uma cebola à procura da cebola?
As realidades
dos termos – Tradição, Mito, Identidade, Símbolo – são, nos nossos dias,
conceptualmente muito semelhantes.
O que mais me
satisfaz para explicar o seu significado mais operacional e me leva a melhor
entender a essência dessas palavras é o facto de todas elas funcionarem como que
uma espécie de TRANSPORTADORA! Uma
vez que, ao longo dos tempos e dos espaços, transportam consigo, na sua
essência, EXPERIÊNCIAS, MENSAGENS e SENTIMENTOS, mais ou menos crípticos, mas
passíveis de serem entendidos e transmitidos pelas diferentes gerações, ao
longo de séculos e séculos de relações comunitárias. Uma vez que sem comunidade
não existe transmissão…
No fundo, a
Tradição é o passado tornado vivo no nosso presente que construímos aqui e
agora, conforme nos ensina magistralmente o Prof Javier Marcos Arévalo num dos
seus trabalhos de reflexão sobre estas matérias da Tradição, do Património e da
Identidade:
“A tradição
seria algo como que o resultado de um processo evolutivo inacabado com dois
pólos dialecticamente vinculados: a continuidade recriada e a mudança. A ideia de tradição remete para o passado,
mas também para um presente vivo. Aquilo que do passado permanece no
presente isso é a tradição. A tradição seria, então, a permanência do passado vivo no presente.” [Arévalo, 2004]
Os
Povos e o Território
Inúmeros e
diversificados, com as suas idiossincrasias, foram os povos que habitaram o
território que hoje constitui Portugal, e particularmente o território
alentejano, apresentando cada qual as suas especificidades culturais e
religiosas, os seus costumes e mentalidades próprios.
Desde os
tempos pré-históricos que as populações autóctones do Alentejo, foram
continuamente contactadas e influenciadas por migrações de incontáveis tribos
do Centro e do Norte da Europa e também Norte de África. Enquadradas
civilizacionalmente por Romanos, por Visigodos, por Judeus, por Muçulmanos e por
Cristãos.
Todos estes
povos e civilizações teriam, em última análise, um anseio comum – o de
sobreviverem e o de legarem aos seus descendentes modos de vida menos austeros
e menos adversos do que aqueles que eles teriam suportado ao longo das suas peregrinações
e estadias pelos diferentes territórios atravessados e habitados.
A
Igreja, impotente para extinguir completamente o paganismo, santificou
numerosas crenças; (…). Os simpáticos deuses tópicos, tão queridos do povo
simples, transformaram-se em “santos patronos”, a quem os devotos não deixaram
de render o antigo culto, embora sob uma outra forma; (…).
Herdeira de inúmeros sistemas religiosos tão
diferentes, a nossa religião popular é propriamente uma amálgama; descobre-se
nela ainda elementos naturistas, animistas e politeístas.
As ideias, e sobretudo as ideias religiosas,
raramente se extinguem: uma vez adquiridas pela alma humana, podem experimentar
mil mudanças, sofrer e confranger-se, mas resistem levantando-se sempre contra
o inimigo que as ataca.”
Nos primórdios
do Cristianismo a maioria das comunidades, principalmente as que viviam fora do
termo das grandes cidades, nos campos e nas aldeias, subsistiam através da
prática da agricultura e da criação de gado. Consequentemente foram por elas
reinventadas, renomeadas e reutilizadas ao longo dos séculos, diversas Entidades
Divinas Protectoras (os deuses tópicos,
segundo José Leite de Vasconcelos), substituídas, no catolicismo popular, pelos
Santos Oragos que, responsáveis pela produtividade e fertilidade
das terras e dos animais, beneficiavam, em última análise, as populações que
lhes erigiam templos e altares, celebrando, ao longo do ano, festas e romarias
e oferecendo-lhes ex-votos e orações…
numa corrente infindável de ofertas e de promessas… em troco de favores de
saúde e longevidade para pessoas, animais e plantas…
O Papa
Gregório I, no século VII, reconhecendo a maneira de sentir das populações,
nomeadamente das populações rurais e aldeãs, instruiu o clero no sentido de, se
se encontrasse entre aquelas populações simples, crenças pagãs profundamente
enraizadas, as quais não pudessem ser eliminadas facilmente, fossem
transformadas em práticas cristãs:
“(…) e como eles têm um costume que consiste
em sacrificar muitos bois ao Diabo, substituam-no por qualquer outra
solenidade, como um dia de Consagração ou os Festivais dos santos mártires…
nessas ocasiões podem construir abrigos de ramos para si próprios à volta das
igrejas que dantes foram templos, e celebrar a solenidade com festividades
devotas. Não devem sacrificar mais animais ao Diabo, mas podem matá-los para
comer e em louvor de Deus, e agradecer ao que concede todas as dádivas a
abundância de que gozam.” [Bancroft,
1991]
No caso das
Festas e Romarias dedicadas a São Marcos, foi criada, pelo espírito humano,
toda uma dramatização ritual, podendo nós descobrir nela os resquícios das
grandes Mitologias do passado pagão, tornadas mais persistentes e duradoiras enquanto
os homens permanecessem com a sede do Sagrado e com o grande desejo de viverem
e de sobreviverem, por mais vicissitudes que eventualmente pudessem ter sofrido,
ao longo de um punhado de milénios de evolução, na construção de civilizações e
culturas com as mais diversificadas tonalidades e colorações.
[Arimateia,1992,1993]
A
distribuição geográfica da Festa de São Marcos no território do Alentejo
No território
português, a Festa do Touro de São Marcos concentra-se preferencialmente no
nordeste alentejano, junto à raia extremenha
espanhola. Uma Festa quase clandestina… proibida pelas Constituições e
Visitações eclesiásticas mas, apesar de tudo, realizada em diversos lugares do
Alentejo… Assim como eram proibidas as festas com touros nos adros das igrejas…
Costume muito comum por todo o Alentejo.
Passo a referir os locais
onde, no Alentejo, se conhece notícia da existência do culto a São Marcos:
Montalvão,
Póvoa e Meadas, Nisa, Amieira, Tolosa, Santo António das Areias, Gáfete, Aldeia
da Mata, Portalegre, Alter do Chão, Alter Pedroso, Chancelaria, Seda, Avis,
Elvas, Pardais, Evoramonte, Évora, S. Marcos da Abóbada, Serpa, Vila Nova de S.
Bento, Alvalade, Sines, São Marcos da Ataboeira.
Em algumas
localidades não há senão pequenas referências num ou outro autor clássico da
Etnografia, sendo necessárias pesquisas locais mais aprofundadas.
O milagre da
mansidão do touro de São Marcos e o rito da entrada do touro ou bezerro na
igreja de Santo António das Areias e de outras igrejas e ermidas do Bispado de
Portalegre aconteceu regularmente até 1924. Interrompendo-se pela intervenção coerciva
do Bispo de Portalegre, D. Domingos Maria Fructuoso.
Apesar de
tudo, no dia 25 de Abril de 1997, nas Festas de São Marcos em Santo António das
Areias, aconteceu a reactualização do ritual da entrada do boizinho na Igreja
Matriz. A devoção popular a São Marcos continuava viva na memória e nos
sentimentos mais profundos da população das Areias.
Terra de
criadores de gado, onde a transumância acontecia por rotas milenares, região
farta de águas e cruzamento de antigos caminhos viários a partir nomeadamente
do século V da nossa Era. Condições mais do que suficientes para terem dado
origem a tradições religiosas arcaicas relacionadas com a Religião Popular
criada, vivida e interiorizada pelas populações do território das Areias. Com a
sacralização do Espírito do Lugar –
local onde acontece o encontro, a dramatização ritual, a festa, a troca, a
partilha e a consequente reprodução da Vida – a Romaria, a Festa e o culto a
São Marcos foi acontecendo e crescendo mantendo-se activa ao longo dos séculos…
A transição do
paganismo para o cristianismo, reorganizando os cultos ancestrais… foi muito
bem apresentada, como atrás citámos, por José Leite de Vasconcelos: Ao paganismo lusitano-romano sucedeu o
Cristianismo (…). A Igreja, impotente para extinguir completamente o paganismo,
santificou numerosas crenças. [Vasconcelos,1938].
A principal
característica do rito do tourinho de São Marcos, é a transformação do
temperamento bravio do animal em manso, a partir do momento em que ele
incorpora as invocações do sacerdote.
Era através da
voz, e empunhando firmemente o hissope, que o sacerdote lhe ordenava:
– Entra Marcos! Entra Marcos!
O bezerro é
intimado a parar à porta do templo e de seguida a dirigir-se pacificamente para
o seu interior.
Era este o
milagre de São Marcos: fazer com que um bezerro bravo, convidado a entrar no
templo pela água benta e pelo nome do Santo, se acalmasse e que, apesar da
multidão, febril de excitação e altitroante o rodeasse e o comprimisse, este
obedecia prontamente às palavras e aos gestos rituais do sacerdote.
Transformava-se
num boi bento, que não era sacrificado in
situ mas que no fundo retinha e manifestava, durante um curto período de
tempo, propriedades de cura… pelo menos para as crianças mais bravas. Em certos
locais (em Gáfete), o boizinho, após entrar na ermida, era benzido com água
benta e o sacerdote batia-lhe na cabeça com uma cruz de madeira. Mais tarde a
mesma cruz era usada para acalmar os meninos também com uma batida nas suas
cabeças…
É enorme a diversidade
cultural da Festa de São Marcos, nomeadamente em Portugal (Alentejo) e em
Espanha (Extremadura e Andaluzia). Contudo, encontramos a devoção a São Marcos,
com outras manifestações formais e performativas, por toda a Península Ibérica,
Açores, Canárias, por toda a América Latina de língua castelhana e ainda no
Brasil.
Como
curiosidade refiramos que, particularmente na Estremadura espanhola, este culto
a São Marcos, com a entrada do touro na igreja, teve um grande desenvolvimento,
com a notícia de muitos prodígios e milagres. Esta Festa foi proibida em
Espanha, por real provisão, a 6 de Abril de 1753. Mas foi tão somente em meados
do Século XIX que o costume do touro de São Marcos, foi suspenso
definitivamente. Anteriormente foi muito festejado nas localidades de Brozas,
Casas del Monte, Casas de Don Gómez, Pozuelo de Zarzon, Mirabel, Talayuela,
Trujillo e muito possivelmente naquelas povoações de Badajoz pertencentes ao
Priorado de S. Marcos.
Ainda hoje se
organizam as festas, com romaria e procissão na pequena ermida de S. Marcos de Seda/Chança,
concelho de Alter do Chão, onde ainda nos inícios do século XX se celebrava
intensamente o culto do boizinho de S. Marcos.
Por informação
de Susete Antunes, residente em Chancelaria (Concelho de Alter do Chão), é
referido que no dia 25 de Abril, se organizava todos os anos uma tradicional
festa e romaria no local da ermida de S. Marcos de Seda ou de Chança.
Antigamente
cumpriam-se promessas ao Santo, em que se ofereciam, para leilão: vitelos,
borregos, galinhas, bolos, folares, dinheiro, bordados, etc. A romaria começava
com a celebração da Missa às 12:00, de seguida todos merendavam e conviviam no
campo ao redor da ermida. Pelas 15:00 saía a procissão e contornava o cruzeiro,
voltando de novo para a ermida onde as oferendas eram benzidas e depois
leiloadas. Todos os anos era oferecido um vitelo que entrava na ermida, onde
era benzido junto ao altar, e entregue depois aos caseiros, (que viviam numa
pequena casa junto à ermida, hoje em ruínas) que o engordavam até ao ano
seguinte, sendo depois leiloado e vendido, revertendo esse dinheiro para a
manutenção da ermida. Estes caseiros viviam duma pequena horta, de algum gado e
ainda de esmolas. Deslocavam-se, habitualmente, uma vez por semana, às aldeias
próximas com uma pequena imagem de S. Marcos (que hoje se encontra recolhida na
sacristia na Igreja Matriz de Chança) para dá-la a beijar e pedir esmola para o
seu sustento. Esta imagem também era tradicionalmente requisitada pelos
criadores de gado quando este adoecia e necessitava do auxílio sobrenatural do
Santo Protector! [Antunes, 2011]
Corre um ditado
por terras de Alter que diz: “És como o
vitelinho do S. Marcos, só fazes o que queres!”. Como todos consideravam o
boi benzido, como protegido, deixavam-no comer em todas as pastagens ao redor,
e, ele fazia o que queria sem ninguém o incomodar.
Admiraram por acaso o seu lago, ou dormiram
na estalagem que fica no rocio mesmo ante a ermidinha de S. Marcos?
Estamos no dia vinte e cinco de Abril do ano
de 1838.
O povo, o senhor povo, a patulêa, o pé
fresco, ainda n’esse tempo assim não eram denominados; haviam somente dois
partidos: setembristas e chamorros!
A concorrência era extraordinária. Grupos e
grupos de povo paravam cheios d’enthusiasmo ao pé da ermida do santo. Do lado
de Alter Poderoso – Altieri, dos já corrompidos vocábulos latinos – descem pela
antiga via dos romanos, que de Merida atravessava as povoações extinctas das
raças primitivas indígenas, e das invasoras da Lusitânia. Conduzindo o
boisinho, que tinha de fazer n’esse dia o milagre de beijar o evangelho, feito
pelo mesmo santo, nos cornos de um toiro; e a seu turno de receber os ósculos
de milhares de pastores vindos de longas terras, e mesmo de muitos cidadãos da
localidade.
E até da antiga Amae Júlia era numerosíssimo
o concurso.
Porem, todos os povos, desde a vetustíssima
Scalabis Castrum procuravam a Ponte de Sôr, e Villa Formosa, atravessando suas
bellissimas pontes – tambem da via latina – onde ainda actualmente se descobrem
os vestígios de minas exploradas – parando só em Altieri – Alter do Chão – para
admirarem o boisinho.
Lá toca á festa.
As senhoras de Alter do Chão, com suas
riquíssimas saias pretas, talhadas com primor e gesto, coucas feitas de papelão
– similhante aos chapéus, que se usaram em 1836, cobertas de lucto eterno; com
suas mantilhas curtas da mesma cor, e seu véo também negro; voavam para a
ermidinha. As mulheres do povo, quasi todas lindíssimas, e de formas
inimitáveis, trajavam do mesmo modo, e assim, como por descuido, desejavam, que
os seus amores as vissem.
É hoje pois dia de S. Marcos – do senhor
San’Marcos, honra que lhe concedem n’este dia – pois não ficaria contente se
lhe não dessem uma senhoria. – Quase iamos rimando.
Uma musica tocava – se aquilo era tocar, e
esperava a entrada do boisinho, no meio da numerosíssima chusma de
espectadores!
Os foguetes, que restrugiam desde a vespora
á noite, e que extasiaram os admiradores com seu estridolo estourar, ainda
n’este momento eram as delicias da mor parte do auditório.
Que lindissima loucura!
Só um espectador manêta ria internamente de
tanto brilho!
Era sceptico: morreu sem o ser em 1862, dia
de S. Bartholomeu – dia em que o diabo anda á sôlta!
Vamos ao que importa, e os leitores e
leitoras saberão cruelissimas atrocidades que este phenomeno commetteu.
«Entra Marcos, entra, em louvor do senhor S.
Marcos!»
E o povo, com varinhas, tocava o boisinho
milagreiro, e acompanhava cada dóse com as palavras acima ditas.
O maneta ria constantemente.
O povo desesperado bramia surdamente, e de
uns para outros, pela bocca pequena, diziam:
«Quebramos a este faz formas, faztudo, o
outro braço?!...»
A prudencia de alguns moderou os mais
exaltados, pois não prestaria o milagre se houvesse desordens.
O santo effectivamente foi bastante
festejado, praticando o boisinho bruscamente o milagre, e isso mesmo devido aos
impulsos do povo, e seus devotos.
As senhoras da coucas sahiram do
templosinho.
O povo resmungou todo o dia contra o maneta,
por mangar esturdiamente dos seus crédulos costumes.
Houve á tarde os invariáveis touros –
vaquinhas mansas da localidade – as quaes foram brutamente espicaçadas,
concedendo a competente auctoridade, licença com a innocentissima intenção de
se respeitarem os usos, e de se arranjarem alguns vinténs a favor dos
estabelecimentos de caridade!
Gostâmos d’isto.
Falleceram dois insignes toireiros no
hospital – ‘entre aquelles que beberam mais vinho.
A culpa não foi d’elles. É dos que apregoam
civilização e consentem que se pratiquem d’estas e de outras scenas barbaras.
No entanto que, os filhos dos lavradores,
fazem, pelas maxima parte, galla em não saberem ler nem escrever!
Não moralisâmos, porque estas idéas que aqui
estampâmos laboram em muitos cérebros!...”
As
proibições eclesiásticas
As proibições
Eclesiásticas em Espanha (Extremadura e Andaluzia), embora tivessem existência
anterior, foram somente eficazes a partir de meados do século XIX e, no
Alentejo, a partir de 1924, mais concretamente a partir da Diocese de
Portalegre, por imposição episcopal. Embora o Doutor Manuel Valle de Moura já
se tivesse pronunciado a partir da Inquisição de Évora, no ano de 1620, com a
publicação do livro “Incantationibus Seu
Ensalmis”. [Arimateia, 1992].
Este rito
religioso foi de facto proibido por todo o território da Diocese de Portalegre
em 1924, através de um aviso efectuado a todos os párocos das freguesias, por D.
Domingos Maria Fructuoso, com a finalidade de “suprimir abusos
condenáveis que com o correr do tempo se teriam introduzido na celebração” da
festa de São Marcos. O caso de Gáfete, foi paradigmático, demonstrando uma
grande tensão e confronto entre as populações locais e a hierarquia religiosa.
[Arimateia, 1992]
Enquadrou
juridicamente as proibições anteriores a publicação de Breve do Papa Clemente VIII a 10 de Março de 1598, dirigido a uma
Diocese de Bispo Civitatense (de
Ciudad Rodrigo), respondendo a solicitação deste último prelado. O Papa
condenava a prática do Rito de São Marcos, por considerá-la: uma prática
Supersticiosa, uma prática Escandalosa e uma prática Indecente. [Feijóo, 1755]
A evolução das
mentalidades e a Inquisição em Espanha (embora defensora do milagre de São
Marcos ainda durante o século XVI) bem como as polémicas que se fizeram sentir
ao longo dos séculos XVII e XVIII, levaram à irradicação definitiva de terras
de Espanha da Festa e Culto de São Marcos, por prática supersticiosa e contra
os Mandamentos da Santa Madre Igreja.
Os espanhóis
davam o nome de aldeia de “São Marcos” à povoação de Santo António das Areias,
devido à fama das festas ao Santo que provocava uma enorme ocorrência dos
vizinhos da raia extremenha, para
presenciarem a entrada do boizinho na igreja e para assistirem às touradas e
arraial.
O
Santo –
origens, atributos e virtudes
Sobre o Apóstolo São Marcos, podemos ler na obra
“Vidas e Paixões dos Apóstolos” [Brihuega, 1989], o seguinte:
“Sam
Marcos, evangelista, ante que se convertesse, foi sacerdote dos judeus.
Mais
converteu-o, depois, Sam Pedro, e bautizou-o, e foi seu discipolo, bem como Sam
Lucas, de Sam Paulo.
E, ao
tempo que Sam Pedro foi a Roma, foi Sam Marcos com el, ouvindo sempre a sua
preegaçom, e parando muito mentes em nas cousas que preegava, e contava / muito
do feito de Nosso Senhor Jesu Cristo.
E el
reteve-as mui bem em seu coraçom. E, porque Sam Marcos screvera já os seus
Evangelhos em Terra de Judea em na lingoagem dos judeus, rogaram-lhe todolos
cristãos qye eram em Roma que el screvesse um Evangelho de todo aquelo que
ouvira dizer a Sam Pedro e do que aprendera del. E el screveo seu Evangelho mui
pequeno e mui breve. E, dês que o houve scripto, mostrarom-no a Sam Pedro, e el
leu-o e deu-lhe sua outoridade e seu outorgamento, que devia a seer leudo bem
come aquela scritura em que nom havia senom verdade.”
Em relação ao “nosso” São Marcos, o do boizinho, em
termos de referências bíblicas e eruditas ao boi, estas são inexistentes a não
ser uma muito rápida referência, na obra atrás citada de Brihuela. Assim, no
capítulo 263.º, às páginas 362 e 363, “De como Sam Marcos foi arrastado e
açoutado, e apareceu-lhe Nosso Senhor e morreu”, poderemos ler:
“(…).
E enton
veo un dia de Pascoa, sete dias por andar d’Abril, e em aquel dia faziam eles
festa a un dos seus ídolos. E todos aqueles que o buscavam eram ali ajuntados,
e andarom-no tanto buscando que o acharom u stava cantando Missa.
E
deitarom-lhe bem ali un baraço na garganta, e levarom-no, fazendo-lhe muito
mal. E tragiam-no pela cidade, e doestando-o muito, e diziam:
-
Levemos este boi ao / lugar u matam os bois!
(…).
E a
manhãa sacaram-no do carcer e deitarom-lhe outra vergada o baraço na garganta,
e fezeram-no restrar, e, tragendo-o assi rastrando de ca e de la, iam bradando
empos el, e diziam:
-
“Trahite babulum ad loca buculi”, que quer dizer: “Levade esse boi ao lugar u
matam os bois”. (…).
Nesta referência parece-me interessante sublinhar o
facto do martírio de São Marcos ocorrer em Abril, durante a Páscoa e o facto de
certo modo haver a coincidência entre a morte do santo e o terem levado para o
“lugar u matam os bois!”, lugar de sacrifício onde o taurobólio acontecia…
Existem ainda outras referências, digamos assim,
eruditas, referindo o facto de São Marcos ter tido igualmente a autoria de
“milagres”. Segundo reza a obra Acta
Sanctorum, citada por Pedro A. D’Azevedo [1989] e que passo a citar o
resumo por este apresentado:
“(…).
Causava admiração aos habitantes da Apúlia, na Itália meridional, não chover
havia cinco annos no paiz, até que lhes foi revelado por certos religiosos, que
isso era motivado por não observarem a festa e São Marcos. Reuniram-se então
todos na Igreja por ocasião da mais próxima festa do santo onde “impetraram”
com orações os benefícios de São Marcos: e logo choveu com mais abundância do
que havia esperança, cessando a esterilidade da terra.
(…).”
As origens nebulosas das tradições de São Marcos
foram influenciadas pela arcaica religião Pagã (de pagus, relativo à aldeia, ao campo).
Marte
Silvanus foi deus romano da agricultura.
Posteriormente, São Marcos foi, por sua vez, o protector das colheitas, das
vinhas e das madeiras.
Será o rito do
Boizinho de São Marcos, originário dos antigos cultos romanos de Marte ou de
Diana, ou de quaisquer outros Deuses de outros Panteões? Este culto teve, e tem
ainda nas suas formas mais modernas, nas suas reminiscências, como finalidade
última a constituição e a construção da Romaria, onde desde sempre o Sagrado e
o Profano se juntavam e confundiam, e onde aquela se constituía como forte
factor de coesão social, garante, ao longo dos tempos, da sobrevivência física,
psíquica e espiritual do homem e da comunidade…
A Festa de São
Marcos, a 25 de Abril, coincide com a antiga Festa Romana Rubigalia, que era celebrada para pedir a protecção contra o rubigus – ferrugem – do trigo. Nesse
mesmo dia, no âmbito do ritual dos Mistérios de Isis, procedentes do Egipto e
fortemente implantados tanto na Grécia como em Roma – através da Alexandria,
local onde segundo os hagiógrafos cristãos se terá dado o martírio de São
Marcos – se celebrava a festa mistérica de Serapis. Era esta uma divindade sem
mito, puramente salvífica (de sôter,
salvador, um cognome de Júpiter), que vinha unir-se ao mito de Isis e Osíris,
tomando a personalidade do Deus despedaçado e as qualidades solares do boi Ápis
e note-se que Serapis, enquanto nome próprio, é uma união Osíris-Ápis. Serapis
era a divindade propiciatória da fertilidade da Terra – a deusa Mãe – e,
através dos ciclos agrários, da morte e da ressurreição do ser humano. Há que
fazer notar que os cultos Isíacos, como praticamente a totalidade dos ritos
mistéricos, tiveram na Hispânia uma enorme difusão. E cabe aqui recordar que o serapeu mais importante de entre os que
se descobriram na Península é o de Panóias, referido pelo Dr. José Leite de
Vasconcelos na sua obra “Religiões da Lusitânia”, e não longe dos lugares extremenhos onde Feijóo e o Padre Coria
confirmavam a presença activa do rito festivo do touro de São Marcos em obra
publicada em pleno Século XVIII. Tal como pode, pois, deduzir-se de todos os
dados dispersos surgidos nas festas que se celebram em torno de São Marcos, o
Evangelista teria passado a substituir, na data precisa, uma divindade serápica
que teria sido provavelmente venerada nos lugares onde posteriormente se
renderia culto ao santo. [Feijóo, 1755]
Várias
virtudes possuía o Santo e, além de padroeiro dos gados (das reses), pois tinha
como missão a de livrar os gados dos lobos e de moléstias…
Em algumas
localidades, no dia da Festa, enfeitava-se o altar de São Marcos com espadanas
que, depois de benzidas pelo pároco, eram dadas aos lavradores para que as
pendurassem nas árvores ou as espetassem no chão das searas ou das hortas a fim
de que as plantas prosperassem.
Hoje ainda,
sob a invocação de São Marcos, São Mamede, São Luís, Santo António ou outro
santo, os camponeses e lavradores levam o seu gado junto às capelas
respectivas, fazendo-o dar certo número de voltas às mesmas, antes de serem
benzidos pelo sacerdote.
Outros atributos de São Marcos: protector dos
campos, das colheitas e do gado vacum. O apaziguador de pragas (lagostins); o
amansador de meninos bravos; o propiciador da chuva…
No Brasil, diz-nos Câmara Cascudo que não houve
culto de São Marcos (tal como o conhecemos em Portugal), mas a sua figura está
presente no devocionário supersticioso de orações fortes, dedicadas justamente
à doma de touros bravos. Contudo, na tradição popular brasileira, as orações ao
santo foram utilizadas não só apenas para amansar animais bravos mas também
para “laçar” pessoas desejadas como amantes (para amansar corações…).
O Touro, o Homem
e a Cultura ao longo das Civilizações
A importância cultural e civilizacional do
Touro/Boi, na sua relação com o Homem, impõe-se desde as mais recuadas manifestações
artísticas da Pré-História – em Lascaux, em Cuenca e no Vale do Côa… O Touro
sempre esteve ligado à própria sobrevivência física do homem…
A representação escultórica de um eventual antigo
culto do touro no III Milénio a.C. manifesta-se abundantemente na Arte Antiga
que chegou até aos nossos dias, no Egipto e em Creta…
O boi Ápis no Egipto, antiga divindade agrária,
simbolizava a força vital da natureza e a sua força geradora; e as
representações de jogos com os Touros nas Civilizações pré-helénicas de Creta.
A Civilização Greco-Romana deixou-nos um
extraordinário legado mitológico sobre o Touro. O rapto de Proserpina, por
Plutão, assim como a representação dos mitológicos trabalhos de Hércules (na
imagem vemos a luta do Herói capturando o touro de Creta, o Sétimo trabalho de Hércules), são dos exemplos mais
representativos.
Por outro lado, o Deus Mitra dos Romanos, através
da religião mitríaca, deixou vestígios por todo o território português,
nomeadamente no Alentejo.
O Mito de Teseu e Ariadne descreve-nos o herói
enfrentando e vencendo o Minotauro do Labirinto de Creta.
Simbólica e mistericamente, o Labirinto foi construído
de modo a chegarmos sempre ao seu Centro. A questão de encontrarmos ou não o
Minotauro no Caminho para o Centro e a questão de o dominarmos ou não durante a
nossa Demanda é outra conversa! A natureza do Minotauro confunde-se com a nossa
própria natureza e a escolha é única e exclusivamente nossa, e como na fábula:
teremos de decidir se alimentamos o touro/lobo mau ou o touro/lobo bom... para,
mais uma vez, conseguirmos sobreviver!...
Denominamos vulgarmente por
Presépio (palavra de origem latina que significa "local onde se recolhe o
gado") aquela representação lúdica da cena do nascimento do Menino Jesus,
com todo um enquadramento poético e bucólico. Nomeadamente descrevendo a presença
do Menino, entre dois animais (boi e burro) acompanhado de Sua Mãe e por José
e, perante eles, pastores, anjos e Reis (Magos) a adorá-Lo e a oferecer-Lhe
presentes.
Diz-nos José Leite Vasconcelos: “Quando se lançam as sementes à terra, chega-se ao
focinho do boi a cesta que as contém, para este as bafejar, e a sementeira
produzir, porque o boi bafejou Cristo no presépio (passim no
Minho e Douro).” [Vasconcelos, 1986]
O Milagre de Santa Maria narrado por Afonso X na
Cantiga n.º 144 – “Como Santa Maria guardou de morte un ome bõo, en
Prazença, dun touro que vera polo matar.” O costume do Touro Nupcial, na Idade
Média, resumia-se ao seguinte: o noivo tinha de tourear um touro junto à casa
da noiva colocando-lhe bandarilhas decoradas por esta e sacrificando-o. A
prenda da noiva, associada ao sangue do touro bravo, garantiria a fertilidade
do matrimónio…
Representações pictóricas do touro na Arte Zen (Japão)
e em Picasso (Guernica). O touro na Astrologia – a Constelação de Touro.
Manifestações artísticas dos nossos tempos que reactualizam o significado
essencial do antigo animal mítico.
Nos trabalhos da lavoura: no arar os campos, no
carrego do cereal, por todo o Portugal foram utilizados bois. Na faina da pesca
de mar – a arte xávega tradicional com o carrego dos barcos para o mar… um sem
acabar de relações entre homem e boi/touro.
As chegas
de bois no Minho e em Trás-os-Montes.
A capeia arraiana no Sabugal. As
touradas e as garraiadas como festas eminentemente populares por todo o país. A
festa, a terra, o sangue, a força, a fertilidade… tudo relacionado e atado
pelas arcaicas religiões tradicionais e que chegaram de modo mais ou menos
profano aos nossos tempos.
Conclusão
O tempo longo
do Rito/Mito do Touro [de São Marcos] ainda permanece inscrito nas memórias
e nos genes das populações das aldeias e das vilas por esse Alentejo fora… e
manifesta-se pela aceitação das práticas possíveis para as mentalidades dos
tempos de hoje…
A problemática
da Religião Popular foi abordada de modo a permitir uma outra abordagem que
foque de um modo integrado essa Realidade nos seus diferentes mas
complementares factores constituintes: a Romaria, o Templo, o Mito, o
Sacerdote, o Crente, a Fé, a Unidade, o Deus, a Vida, os Santos, os Ritos, a
Tradição…
Realidade
multifacetada cujo fio condutor tem o poder de a dominar, de a compreender e de
a transformar, fio esse que é afinal o próprio Homem…
Afinal o que é
a Religião senão a “técnica” que o homem encontrou ou inventou para ultrapassar
a sua própria efemeridade e atingir a imortalidade?! Isto é, encontrar um
factor de coesão grupal que permita dar continuidade à própria espécie humana,
à sua memória, ao seu Ser, que no fundo se encontra ligado a tudo o que
constitui o Universo…
Em épocas
primevas o homem não se considerava em absoluto a medida de todas as coisas.
Sabia que a sua vida era enquadrada, assim como a das plantas e flores e
animais, por “estações”, por ritmos e pulsações, por ciclos de grandeza
cósmica, ontem conhecidos e respeitados, mas hoje já praticamente esquecidos ou
ignorados. A estes ritmos cósmicos ajustava ele, inteligentemente, a sua
actividade criadora e a sua vida em comunidade.
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Rui Arimateia – Centro de Recursos da Tradição Oral e do Património
Imaterial do Concelho de Évora, 17 de Março de 2017 [ rui.arimateia@gmail.com ].
Texto completo com as ilustrações publicado in CADERNOS DO ENDOVÉLICO - 3 (Da Arqueologia à Etno-Botânica e da Etnografia à Etno-Literatura), Edições Colibri/Centro de Estudos do Endovélico - Câmara Municipal do Alandroal, Lisboa, 2017.
[1] Centro de Recursos da Tradição Oral e do
Património Imaterial do Concelho de Évora